sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A HISTÓRIA DAS NOSSAS ÁRVORES GENEALÓGICAS


Rebanho de sacanas! Bom mesmo é buscar ser feliz e só isso deveria bastar, os pensamentos de Madalena eram estes naquele início de ano em sua comunidade. Ela ganhou presentes de natal como poucas pessoas da rua e sua preocupação não incluía o peso do comércio nas demandas natalinas. Madalena morava na comunidade do Barro Vermelho, ela era uma das poucas crianças negras com pai dentro de casa.

O pai de Madalena era alfaiate, um homem bonito digno, sempre bem vestido. Andava rotineiramente com uma calça de linho bem cortada e bem engomada, com uma boina na cabeça, óculos, uma fita métrica no pescoço e uma agulha na boca. Seu atelier ficava no Pelourinho e para lá seguiam os homens de dinheiro da cidade alta em busca do seu corte preciso. Ele se chamava Bionor e costurava desde pequeno, aprendeu o ofício com o pai.

Sr. Bionor era um homem respeitado na comunidade, pois vivia para a família, o candomblé e seu trabalho. Eles tinham cinco filhos, quatro meninos e Madalena a caçula. Jorge era o mais velho e ajudava o pai no ofício de alfaiate além de aprender saxofone na filarmônica da igreja, Osvaldo e Antonio Carlos eram mabaços, um jogava capoeira e o outro queria ser cabelereiro. Os mabaços e Madalena eram nossos companheiros de brincadeiras.

Para nós, crianças sem pai, aquela era uma família estranha, na hora do almoço eles corriam para ir almoçar em casa, pois o pai queria todos na mesa, a noite alguns iam a igreja com a mãe e nos finais de semana de obrigação, todos iam ao terreiro. Sr. Bionor era Ogã de Oxumaré da casa de Joana, os meninos já estavam aprendendo a tocar como alabês e isso enchia de orgulho esse pai. Mas o mais estranho era Madalena toda dengosa e enfeitada, como um bibelô,  nós achávamos ela muito chata, por tudo chorava e corria pra casa, então colocamos um apelido nela: Boca de Afôfô, porque ela vivia inventando histórias...

Talvez o leitor não compreenda o significado desta situação, pois para muitas famílias, durante muito tempo e mesmo em algumas culturas, a presença paterna é condição inclusive para ser considerada “família”, mas isso não se aplica às famílias negras de Salvador. Isso não se aplicava às famílias negras de comunidades como a do Barro Vermelho, onde ter pai dentro de casa era uma vaidade, quase uma superstição.

Essa era a discussão das mulheres no salão de beleza de Conceição numa tarde quente de sábado. Algumas até consideravam que ter um homem dentro de casa atrapalhava, não significava necessariamente ter um companheiro, um pai e davam exemplo de certos “homens” e ao falarem sobre esse tipo de homem elas entortavam a boca em diferentes posições e todas compreendiam. Então como poderia ser considerada uma “família”? Outras comentavam que isso não importava, pois essa consideração pode realmente variar e derivar em muitas configurações diferentes de família.

Então “família” era aquela que você considerava como família, mas sem dúvida a ausência dos homens mesmo quando estão presentes era uma das questões duras que um dia teríamos que enfrentar. Afinal a maioria das famílias era chefiada exclusivamente por mulheres, mas tiveram a participação dos homens no momento de conceberem os filhos, logo depois os homens partiam sem nenhuma responsabilidade sobre tais crianças e ninguém sabia por que eles faziam isso.

Para estas mulheres havia ali um problema, que desembocava na violência presente na vida dos jovens negros, pois os meninos acreditavam que a responsabilidade por suas famílias agora era deles e numa sociedade machista, cedo partiam para uma vida arriscada na busca de se mostrarem homens para suas comunidades, tinham que passar por processos de iniciação cada vez mais cedo e mais complexos, a fim de serem considerados adultos e capazes de manter a família que quisessem.

Neste ponto, fiquei pensando no peso dessa situação nas nossas trajetórias de vida. Lembrei-me de uma conversa que tive com o professor John Thornton, em Boston, quando ele me mostrou a árvore genealógica de sua família. Uma enorme árvore com galhos espalhados pelo mundo. Sua origem era europeia, Suíça e Irlandesa, os Thornton foram fundadores dos EUA. Muitos fugiram da Europa, segundo professor John, por conta do racismo e da intolerância religiosa, pois eles pertenciam a um segmento religioso bastante perseguido na Suíça e seu grupo étnico também era bastante perseguido na Irlanda. Tudo isso dava pra contar só de ver sua árvore.

Uma árvore traduzia vários significados e histórias de vida que se desencadearam em novas e variadas perspectivas de famílias. O professor John, por exemplo, estava agora casado com Linda, uma mulher negra caribenha e tinham como filhas duas meninas negras, afro americanas. Ele me falou também das várias situações de racismo enfrentadas por ele como homem branco, que tais situações geralmente se davam quando ele estava na companhia de pessoas negras: suas filhas, sua esposa, seus amigos e mesmo seus alunos negros.

Quando andava sozinho pelos lugares ele nunca foi abordado, nunca se sentiu vistoriado, mas na companhia dos negros muitas vezes foi abordado de forma discriminatória, então ele compreendia o racismo e imaginava quão difícil para os negros era viver numa sociedade racista e ele como homem branco também sabia o que sua pele lhe proporcionava de privilégios dentro dessa mesma sociedade.

Mas, sua árvore me fez refletir e pensar em nossas árvores genealógicas. Achei fantástica a ideia de como poderíamos reconstruí-las? Que importância teria para nós, negros e negras da diáspora, a reconstrução destas árvores? O que nos seria revelado ao final desta construção? Que outras histórias tais árvores contariam ao nosso povo? Creio que este seria um trabalho histórico e terapêutico no sentido de nos fazer resgatar nossas identidades e de nos vermos como parte da natureza, árvores que somos.

Mas, a verdade é que apresentaram para nós, negros da diáspora, outra árvore, aquela do esquecimento no Senegal, no Porto de Goré. Antes de deixar o porto de Ouidah (na atual República do Benin, África), os negros escravizados eram levados à Árvore do Esquecimento – plantada pelo rei Agadja em 1727. Depois de nove voltas dadas pelos homens – as mulheres davam sete – origens, identidade cultural, lembranças de suas moradas e de suas localizações geográficas perdiam-se no limbo.

A memória era reconhecida pelos mercadores de escravos como uma poderosa arma de resistência. O poder da Árvore só pôde ser questionado por um único motivo: a sobrevivência da raiz identitária africana na diáspora.

Era preciso simbolicamente, esquecer quem era e assumir uma nova identidade, vazia de lembranças de suas histórias de vida. A lembrança geralmente provocava depressão na população escravizada, tal doença eles chamavam de “Banzo”, e muitos negros morreram dessa doença.

Talvez por isso nos fosse contada uma história vazia de nós mesmos, uma história vazia de brilhantes trajetórias de heróis e heroínas negras vitoriosas ou vencidas, nos contaram uma história de mão única que nunca fez sentido e que agora temos a tarefa de reconstruir.

Entretanto, nem tudo foi perdido, pois, dar voltas em uma árvore não foi suficiente para esquecermos quem somos, aliás, isso começou a ser resolvido quando três mulheres africanas chegaram aqui e reorganizaram meticulosamente as histórias de vida do seu povo. O trabalho terapêutico foi duro: cantaram canções, reelaboraram unguentos, banhos, beberagens, curas, aromas e devolveram para nossas bocas as palavras engolidas, nos contaram as histórias esquecidas, preencheram nossos sonhos com outras aventuras e refizeram nossas árvores genealógicas perdidas. Replantaram nosso universo de inúmeras árvores.

Através delas conhecemos nosso passado de glórias e de infortúnios como todo povo. Conhecemos nossos reinados devastados, príncipes, princesas, reis, rainhas, fortunas em búzios, especiarias, valores, tecidos e ouro. Soubemos das receitas de inúmeros feitiços, conhecimentos, saberes, práticas e habilidades, reaprendemos nossas comidas, músicas festejos e alegrias. Devolveram o sorriso que já não mais existia, cuidaram do “Banzo” com o único remédio possível que tinha: o amor.

Mas, o principal que elas fizeram, sabendo muito bem o que estavam fazendo, foi nos reerguer como povo negro na diáspora, civilizando-nos e preenchendo de fé o nosso desejo de liberdade. Restabeleceram um mundo retirado das cinzas do racismo, povoaram nossa memória com o imaginário de antigos reinados africanos daquela época até os dias de hoje, sem dúvida uma terapia poderosa, sem bulas, prescrições, nem receitas, um modelo negro de promover saúde, sem deixar uma linha escrita ou uma árvore desenhada, replantaram florestas.

Elas devolveram nossas almas de modo que a cada toque daquela música, a cada aroma daquelas folhas, unguentos, feitiços, a cada sabor e cheiro de suas comidas, a cada movimento daquela dança no ritmo de suas músicas o mundo perdido retorna mais vivo do que nunca e nossas árvores vão sendo ritualmente refeitas, vemos e sabemos por exemplo, que pertencemos a família do rei de Oyó, Xangô era seu nome.

Ele era um rei poderoso que teve muitas mulheres e conquistou muitas terras, inúmeras histórias nos foram contadas sobre ele. Também sobre outros reis como Ogum, que guerreou e venceu todas as batalhas ao lado de seu irmão Oxóssi. Suas histórias nos falavam também do protagonismo das mulheres negras, bravas guerreiras, como Oyá que acompanhou seus maridos e lutou nas guerras, ou Oxum que através do feitiço venceu muitos exércitos e mesmo sobre Iemanjá, que naufragou tantos navios e consolou tantos dos nossos, aqueles que preferiram morrer em suas águas a se tornarem escravos de outros povos.

Isso tudo Madalena sabia, por isso não acreditava que a violência fosse capaz de desfazer sua família, ou de levar seus irmãos, ela sabia coisas que outras crianças como nós ainda não entendíamos, por isso não se importava com a inveja que tínhamos do seu pai.

Um dia Madalena nos contou uma dessas histórias e foi mágico, percebemos e aprendemos que nós também tínhamos pai, ninguém neste universo recriado por ela viveria sem essa “família”, eu aprendi que meu pai era Ogum, que ele foi um grande general, aprendi que ele vivia dentro de mim e me conduzia por todos os caminhos por onde já passei, passo e passarei.

“Famílias chefiadas exclusivamente por mulheres” são assim chamadas nossas famílias, a das crianças do Barro Vermelho, mal sabem eles quantos príncipes, reis e generais dividem essa tarefa com essas mulheres, mal sabem eles que quando se constrói uma floresta genealógica dessas, dificilmente sucumbimos.

Mas, queria agora poder falar com Madalena e perguntar a ela sobre que fetiço fazer para sobrevivermos em uma sociedade que mata diariamente, sem piedade, nossas jovens árvores e destrói velhas bibliotecas?

quinta-feira, 26 de julho de 2012

O Batizado da Menina Gêge

Hoje era dia de festa na comunidade do Barro Vermelho, era o batizado de Marinalva, afilhada de Maria Helena, a Gêge. Para essa realização a madrinha reservou uma data específica no calendário da igrejinha local. Pois é caro leitor, Marinalva de Béssem, afilhada de Maria Helena do Gêge, feita em Cachoeira aos oito anos de idade, hoje ia ser batizada na igreja de São Jorge, numa paróquia católica local.

Nessa época já havia muita intolerância religiosa e a tensão se dava entre católicos e candomblecistas, muito mais da parte dos católicos que dos outros. Hoje o salão de beleza estava cheio, até as crianças queriam fazer os cabelos com ferro quente. Minha tia reclamava muito diante de tanto trabalho e tanta zoada. Pra completar ela ligava o rádio, afim de não perder o programa de Sr. Joãozinho da Goméia, pois hoje ele ia ensinar uma simpatia para mulher que traía e não queria ser pega pelo companheiro. As mulheres riam e falavam muito alto. Minha tia mandava as crianças saírem, quando iam falar coisas que não eram permitidas às crianças ouvirem, então íamos pra rua.

Fomos ver a arrumação na casa de Marinalva. Perguntavam a Maria Helena porque batizar a menina numa igreja católica se ela era Gêge. Maria Helena respondia com perguntas: E porque não? Quem construiu essa igreja? Você sabe o que ela tem na fundação? A casa estava sendo toda enfeitada com flores, angélica, rosas, folha de pitanga e em cima da cama estava o vestido que Marinalva ia vestir feito por sua madrinha.

Era um vestido branco, todo no rechilieu bordado, combinando laço, bolsa e sapato. Nesse ponto é importante relembrar ao leitor a importância da estética para nós mulheres negras, esta é particularmente uma estética centrada em símbolos e valores que nos constituem, nos reintegram entre os nossos. É uma estética extremamente complexa, pois diz respeito ao que somos, nossa identidade mais remota; ao que somos para o grupo a que pertencemos, nossa identidade coletiva e ao que devemos representar em público, nossa identidade social. Some-se a isso o fato dessa menina ser uma Gêge.

Ai é preciso entender que esse povo sempre foi e ainda é muito meticuloso. Minha tia dizia que eles são “cheios de nó pelas costas”, eu imagino que isso diga respeito a uma natureza quase anfíbia, de ser mutante, mas num processo de transmutação exotérica que supera o entendimento profundo que outros grupos étnicos possam ter da natureza humana/divina do ser.

Desconfio que nós mulheres negras, precisamos entender um pouco das nações que convivem aqui no Brasil, particularmente na Bahia e em se tratando dos que aqui primeiro chegaram, precisamos bater a cabeça e buscar compreender muito mais os menos entendidos: os Gêges. Os Gêges sempre foram vistos como inimigos, por parte dos povos conquistados pelos reis de Daomé. Quando os conquistadores eram avistados pelos nativos de uma aldeia, muitos gritavam dando o alarme “Pou okan, djedje hum wa!” ("Olhem, os Gêges estão chegando!). Quando os primeiros daomeanos chegaram ao Brasil como escravos, aqueles que já estavam aqui reconheceram o inimigo e gritaram: “Olhem os Gêges estão chegando” e a antipatia se instalou entre estes.

Os Gêges se espalharam pelo Brasil, fundaram várias dinástias, mas se mantiveram reservados, por conta das implicações do passado, dái a dúvida, a desconfiaça, a reserva dos demais frente aos Gêges e dos Gêges frente aos demais. Mas, esse é um mistério que muitos resolveram também enfrentar, pois aqui na condição de povos escravizados essas diferenças não contavam, erámos todos negros/escravos e aos poucos, um povo foi conhecendo melhor o outro e percebendo suas tradições e crenças, uma coisa foi sendo incorporada a outra e a mistura se deu entre os povos negros.

Daí Maria Helena não via problema em ir a missa, ou em batizar sua afilhada na igreja, afinal o que era uma igreja católica diante da complexidade das religiões negras? Para ela era mais um tipo de crença que conferiria a jovem um melhor trânsito, maiores conhecimentos, ampliaria seus saberes inicáticos e fortaleceria sua identidade ao perceber melhor as diferenças entre cada mitologia, era mais um ingrediente da mistura.

Alguns negros da comunidade achavam errado, pensavam que Maria Helena queria agradar aos brancos, afinal ela trabalhava pra eles, fazia festa de aniversário e convidava os brancos para um dia só deles. Ela era uma preta que agia de forma muito escorregadia e perigosa entre o mundo dos brancos e dos negros, de modo que nem os brancos confiavam nela, nem os pretos, mas todos certamente a temiam.

Para o batizado de Marinalva vieram os parentes de Cachoeira e até a família biológica da menina. Rosa também estava aflita e alegre por rever seus amigos, compadres e parentes. A única pessoa que estava triste era a princesinha Marinalva. De vez em quando ela suspirava, outras vezes silenciava, ficava parada olhando pro tempo e errava tudo que começava. A madrinha logo suspeitou e perguntou o que estava acontecendo para ouvir da boca de Marinalva. Ela só falou pra Maria Helena, ela estava sentindo que o orixá se aproximava, sentia o corpo tremer, o coração disparar, a vista escurecer e uma voz sussurrar uma cantiga de cobra que Marinalva há muito não escutava. Maria Helena então lhe deu água, falou em seu ouvido e mandou que ela fosse brincar.

Fomos todos com Marinalva correr pícula, pular corda e de repente vieram correndo avisar que a polícia estava na rua de cima e que prenderam Pai Onorato, um velho babalorixá de uma antiga casa do bairro. Naquele tempo era assim. A polícia prendia pai de santo, prendia atabaque e quem quer que se metesse no fato. Fomos correndo ver o que se passava e no lugar muita gente olhava, o velho pedia que o deixassem em paz e os policiais entraram e quebraram tudo no terreiro, segundo eles, a mando do delegado.

Foi um salseiro danado, logo foram chamar o padre, mas este não quis se meter e foram chamar Maria Helena, por ser mais velha e mais respeitada na comunidade. Diante do policial Maria Helena parecia uma menina, pois era baixinha e o homem era enorme. Mas ela não titubeou, olhou fundo no olho do homem e em seguida praguejou, como só um Gêge sabe fazer!

Disse que via toda vida dele diante dos seus olhos frios, ele foi um menino covarde, apanhou e chorou em muitas noites sozinho, mas que ao ganhar aquela farda, cheia de estrelas e colarinho, passou a agir como bicho. Um negro que se respeita procura saber sua história, sua origem, sua memória e deve defender aquilo que lhe mantém firme, não o que lhe fragiliza e lhe põe de joelhos diante do mundo. Um policial negro precisa refletir sobre seu papel, seu exemplo e a quem serve quando age sem pensar.

Os policiais não quiseram ouvir e continuaram a quebrar, mas de repente diante do assentamento de Oxumaré, de dentro da fonte saiu uma cobra atravessando o barracão na direção do soldado. O bicho se enrolou na perna do guarda enfezado, o povo correu com medo se espalhando, gente pra todo lado, só ficaram Maria Helena e o guarda que de preto ficou branco completamente assustado.

Então, Maria Helena perguntou a ele o que deveria fazer para se livrar da cobra, pois tinha certeza que ele sabia, porque viu tudo em seus olhos, tudo que lhe foi ensinado. O guarda soltou um ilá, pegou a cobra com as mãos e caiu ao chão transformado. Lembrou da sua infância, pois ainda na barriga da mãe ele também tinha sido iniciado.

A cobra entrou num buraco e o homem em prantos foi amparado pelo povo, Maria Helena o levou pra um quarto e lá eles demoraram, quando saíram ele estava recomposto, chamou seus camaradas e foram embora cabisbaixos.

O clima se estabilizou na comunidade e os preparativos da festa continuaram, mas Marinalva sumiu e quando a encontraram estava deitada na cama, com uma estrela na mão da farda do policial que a cobra tinha arrancado.

Arrô Bô Bô!

domingo, 25 de março de 2012

O Homem, o Menino e o Cavalo



Hoje ela teve que ouvir que os homens também têm boas histórias, incríveis histórias de grandes, fantásticos homens. Essa avaliação veio, é claro, de pessoas de quem ela gostava muito e que sabiam valorizar bons casos a partir do caráter singular, que cada um de nós pode apresentar. Mas estamos na Bahia onde gente com tais características são maioria, homens e mulheres repletos de belas e tradicionais histórias, disso não tenho dúvidas. O interessante são as coisas que se perdem, as histórias que não registramos e não nos chega se não houver registro.

Numa sociedade como a nossa é preciso se dar ao trabalho de registrar tais histórias, mesmo porque não há interesse dos grupos hegemônicos em determinados fatos e para os contra-hegemônicos existem poucos espaços onde essas narrações ecoem e despertem curiosidade. Ou seja, não podemos esperar que queiram saber sobre nossas histórias, mas nós precisamos conhecê-las. Portanto, se não quiser que ninguém saiba não me conte suas histórias.

Ela despertou seu interesse pelas experiências das mulheres, por ser mulher e por estar mais próxima destas. Mas os grandes homens também fazem histórias que mudam o rumo dos ventos, até porque todos eles saíram de grandes mulheres. Um destes homens de quem ela ouviu falar foi alguém assim.

Diante dele peço licença às mulheres e busco na memória algumas de suas façanhas que já me contaram, ou ouvi faz muito tempo. O leitor pode estar curioso, mas pode também não acreditar que já existiu alguém assim na Bahia. Mas, o mais fantástico é que ainda existem e nascem todos os dias pessoas como essa.

Ele pertencia a uma família católica e quando criança foi coroinha da igreja do Paço, numa pequena cidade do Recôncavo baiano, mas quando nasceu era muito fraco e sua família achava que ele não sobreviveria à próxima epidemia, por conta disso levaram-no para ser iniciado no Candomblé para, como se diz até hoje, “ser cuidado”. Ele foi feito numa casa Angola de uma Iyalorixá bastante respeitada e famosa na cidade de Cachoeira.

Depois com a morte de sua Iyalorixá, refez o santo numa casa Ketu, mudando de nação ainda criança. Menino foi morar na capital abandonando cedo à casa dos pais. Mesmo indo de encontro à vontade de seu pai ele fugiu de casa e na capital foi tentar sobreviver começando cedo a trabalhar, em um armazém no Pelourinho. Um homem no corpo de um menino, alguém que não veio ao mundo a passeio e que sabia para onde ir, viveu intensamente seu destino e, portanto sua trajetória começou bem cedo. Seu nome era João e como era baixinho e muito jovem chamavam-no de Joãozinho.  

Entretanto, Joãozinho sofria de fortes dores de cabeça e passou muitas noites em claro chorando e sofrendo sem conseguir dormir. Muitas vezes acordava assustado com os sonhos que tinha onde aparecia sempre um menino pequeno e preto correndo e sorrindo, indo ao encontro de um homem montado a cavalo que seguia na direção da lua.

Certa vez, contou seu sonho a uma baiana de acarajé que tinha um ponto em frente a loja onde ele trabalhava e ela resolveu levá-lo num terreiro de Candomblé, no Engenho Velho da Federação. Ainda adolescente ele se assumiu como homossexual, pois percebeu-se fascinado pelo professor de geografia e literatura, no Colégio Central da Bahia. Depois que provou do amor de um homem ele não quis mais saber de mulheres, pois como amante se entendia muito melhor com os homens.

Muito jovem começou a receber um caboclo. Os caboclos não são Orixás, mas espíritos encantados, originários das religiões indígenas, sem relação direta com a África. Esses candomblés de caboclo foram alvo do desprezo do povo de Ketu, zelosos de sua “pureza” africana porque, nessa época, havia um empenho por parte de influentes intelectuais em firmar a idéia de que havia nos terreiros Ketu uma certa “pureza” e maior “nobreza”, com relação às raízes africanas e isso deixava Joãozinho muito triste.  

Ele era um dos poucos homens que frequentava o salão de beleza na casa de Cora. Ia lá sempre que podia, para pintar o cabelo, afim de mudar o visual, às vezes espichava a ferro, outras vezes fazia tranças em Nagô. Ele era um homem vaidoso, muito belo e cobiçado. As mulheres ficavam ouriçadas com a presença dele no salão, todas queriam paquerá-lo e ouvir suas histórias de experiências picantes. E embora João gostasse muito das mulheres, admirava-as, mas não como amantes.

O certo é que ele foi considerado um homem adiante de seu tempo: negro que alisava e pintava os cabelos por vaidade, sem se preocupar com a polêmica de poder ou não colocar ferro quente na cabeça de um iniciado; homem que não se envergonhava de ser homossexual na homofóbica Bahia; pai-de-santo que afrontava os princípios de que homens não podiam “receber” o Orixá em público, tornando-se famoso pela sua dança; incorporava ao Candomblé a entidade indígena do Caboclo Pedra Preta; adepto de Angola, numa cidade dominada pela cultura jeje-nagô; babalorixá jovem, numa sociedade dominada por iyalorixás mais velhas o que, segundo seus filhos-de-santo, ativou o despeito das mães de santo tradicionais da Bahia.  

Seu sonho era ser famoso, artista, bailarino, ou jornalista. Assim ele foi até a rádio Sociedade da Bahia e por lá começou um programa de rádio que ia ao ar todos os domingos, pela manhã. Nesses programas ele respondia cartas de ouvintes e recomendava tratamentos diversos para todos os tipos de males, de acordo com a recomendação de seu caboclo. Dessa forma tornou-se mais famoso que o Cardeal da Silva. Suas recomendações eram repassadas de boca em boca e a Feira de São Joaquim passou a vender mais que nunca as ervas recomendadas por ele.

Seu primeiro terreiro foi num bairro chamado Ladeira de Pedra. Lá, tocava indiferentemente Angola e Ketu, o que contribuía – e muito – para aumentar o escândalo em torno de seu nome. Um dia despediu-se de Salvador e foi morar no Rio de Janeiro, na sua despedida fez uma festa no Teatro Jandaia, apresentando ao público pagante danças típicas do Candomblé, escândalo final para os adeptos baianos, e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde abriu casa em Duque de Caxias, Baixada Fluminense.  

Seu terreiro era feito com modestas instalações, no entanto aquele local na Baixada Fluminense, foi ficando cada vez mais famoso, pela presença dele e pela grande quantidade de templos afro-brasileiros que ali passaram a se localizar. No novo endereço atendia políticos, embaixadores, consules, presidentes artistas e pessoas ricas da sociedade carioca.

O próprio João nunca revelou os nomes de seus filhos ou clientes; seus filhos de santo é que espalharam essas notícias, orgulhosos do status da casa de seu pai. Costas quentes ou não, o caso é que ele nunca teve seu terreiro invadido pela polícia, nem jamais foi preso, ao contrário do que acontecia com diversas casas naquela época.  

Contam que chegou a fazer despacho para Exu em plena Praça XV, no Rio de Janeiro. O caso é que tornou-se o primeiro pai-de-santo realmente conhecido no Brasil. Sabia do poder da imprensa e manteve relações com publicações importantes, deixando-se fotografar com os trajes dos Orixás.

Utilizando-se deste recurso, foi um dos primeiros que mandava colar nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias papéis e cartazes onde se divulgava todo o calendário semanal do terreiro, como por exemplo: Segunda-feira: dia de distribuições de sopas e agasalhos aos pobres, festa para Obaluaiê e Gira para Exus. Quinta-feira: dia de festa à Iansã, Oxóssi e Ogum. Sexta e Sábado: Festas de confirmação de Iaôs e atendimento médico, sábado à tarde.  

A comunidade aparecia em peso, e mesmo os que não freqüentavam o Candomblé iam para ver as festas. Ele transformou sua casa num centro comunitário onde o povo da Baixada livremente frequentava e encontrava abrigo. Grande parte daqueles que freqüentavam não eram filhos de santo, e sim pessoas que estavam naquele momento fascinadas pelo grande movimento de popularização do Candomblé na cidade do Rio de Janeiro e pela figura de João.

 A noção de pertencimento ao culto dos Orixás era visível no terreiro, era uma espécie de associação mística ao campo religioso, em que os laços de associação do indivíduo, com a forma de culto se redefinia a cada divulgação das festas de Candomblé, tanto na imprensa carioca como nos mercados populares da Baixada Fluminense. E dessa forma a população assumiu cada vez mais este pertencimento, com orgulho, auto-estima, devoção e admiração por aquele fascinante pai de santo.  

Certa vez João resolveu participar do carnaval carioca vestido de mulher. O assunto rendeu uma polêmica terrível com outros babalorixás e chefes de terreiros da Umbanda. Ele brigou pelo seu direito ao livre-arbítrio, declarando que jamais permitiria que qualquer outro pai ou mãe de santo se intrometesse em sua vida.

Ele nunca deixou de atender através do seu caboclo, que segundo ele: “o caboclo me deu tudo, se como e bebo foi ele que me deu, ele é meu marido, meu pai, meu filho, sem ele não saberia quem sou e na presença dele muitas vezes me confundo, pois somos um único ser habitando este cavalo, muitas vezes em um só tempo”.


Quando completou vinte e cinco anos de santo ele voltou a ter seu misterioso sonho com o pequeno menino correndo atrás do homem a cavalo em diração à lua. Daí resolveu voltar à Bahia e deu “obrigação” com uma famosa mãe de santo daqui. Veio fazer a obrigação dele; tirar a mão de Vumbi e fazer bodas de prata. Mas ele não só fez sua obrigação com esta Iyalorixá, como foi o primeiro homem que ela permitiu que vestisse o Orixá e dançasse em público “virado” no santo em sua casa.


Porém, é fato que, embora até o fim da vida continuasse tocando tanto Angola quanto Ketu, a partir desse processo passou a orientar seus filhos de santo para que seguissem uma orientação única, optando entre Ketu e Angola.


No dia 18 de março teve novamente aquele sonho, mas dessa vez viu o menino que o levava até o homem montado a cavalo, em direção à lua e viu seu rosto no rosto do homem que conduzia o cavalo. João entendeu que não havia mais mistérios, era Oxóssi, era seu caboclo e era ele. O homem, o menino e o cavalo.

 Morreu aos 56 anos, 40 dos quais dedicados ao Candomblé. Cofou no dia 19 de março, dia de São José, dia de plantar milho na Bahia, oito dias antes de completar 57 anos. Por estranha coincidência, no dia de sua morte sua roça em Duque de Caixas iria promover o Lorogun - uma das grandes cerimônias do Candomblé que significa o fechamento do terreiro para o período da Quaresma.

Foi sepultado no cemitério de Duque de Caxias, num dia em que uma chuva de proporções míticas caiu sobre o Rio de Janeiro e exatamente na hora em que seu ataúde baixava à sepultura raios e trovões rasgaram o céu. Para os adeptos, uma manifestação de Iansã recebendo seu filho, que culminou com muita gente “virando no santo” em pleno cemitério.

Depois, os assentamentos de Joãozinho da Goméia foram transferidos para uma nova Goméia, em Franco da Rocha, São Paulo, onde os ibás de seu Oxóssi e de sua Iansã estão sendo devidamente cuidados e “alimentados”, e podem ser visitados pelos adeptos que fazem parte da familia de santo até hoje.

Essa é parte da história de um grande homem, que se fez homem ainda menino, renascendo a partir de uma nova iniciação, recriando um universo a partir de seus sonhos, reorganizando a sociedade a partir da possibilidade de novas vivências comunitárias, reinventando o conceito de ser e tempo no seio da mais tradicional das religiões e em plena ditadura.  

Tudo isso, meu caro leitor, só pra você lembrar que não existem limites para alma do povo negro da Bahia.
 

 

domingo, 11 de março de 2012

"UMA HOMENAGEM ÀS MULHERES NEGRAS"


A cada dia que passava ela sentia-se mais diferente e distante das outras. Suas amigas não percebiam, mas ela sabia que seria difícil continuar com aquelas amizades por mais tempo, pois muito do que elas apreciavam não fazia mais parte do elenco de coisas pelas quais ela  se interessava agora.

Andava distraída e se aborrecia com situações aparentemente bobas, nesses momentos seu coração acelerava e sua mente avisava que continuar naquela direção não seria bastante prudente.

As piores coisas que presenciava, ouvia, ou lhe relatavam e o que chamava a sua atenção eram as situações de racismo, de discriminação de mulheres, homens, crianças e idosos negros.

Aquilo parecia inadmissível de acontecer, mas ainda assim, acontecia. E o mais interessante é que as pessoas conhecidas, aparentemente boas pessoas, que se consideravam brancas, ou quase brancas, não viam dessa mesma forma. Com estes pensamentos e com lágrimas nos olhos, por ter passado por uma situação de discriminação racial, ela entrou naquela tarde de sábado no salão de beleza.

O espaço da casa onde as mulheres faziam o cabelo foi sendo modificado com o tempo. Se antes era só um canto na cozinha de Cora, agora era um vão inteiro. Os serviços também se ampliaram e mesmo mantendo a tradição do clássico espichamento a ferro, surgiram também penteados feitos de tranças, chamados de “afro”, produtos químicos poderosíssimos, entrelaces, mega hair, implantes com fibra e com cabelo natural, “Black-power”  etc.

O salão cresceu e a clientela também aumentou: crianças, adolescentes, mulheres adultas e idosas, todo tipo de mulher preta passou a procurar o estabelecimento. Apareceram novidades para cabelos crespos em produtos químicos e técnicas afro-americanas, que passaram a fazer parte do mundo das mulheres negras baianas. Era como se o universo de tais mulheres e de seus cabelos fosse o mesmo em todo o globo.

Posso afirmar que a partir do cabelo, iniciou-se um diálogo perdido no corte produzido pelo processo de escravização, entre as mulheres negras da diáspora e da África, uma comunicação, diria eu, interplanetária, bem acima do pescoço e do raciocínio lógico, pura intuição?

Havia nessas novas formas de utilizar os cabelos, aproximações com países africanos, jamaicanos, latino-americanos e com os EUA, numa comunicação transatlântica. As mulheres negras baianas pesquisavam em revistas importadas, filmes, internet, telenovelas, enfim, o mundo poderia ser descrito a partir de suas cabeças. E dessa forma, quase intuitiva, estabeleceu-se o diálogo silencioso das madeixas crespas, que, para quem quisesse entender a partir daí, muitas interpretações poderiam ser feitas.

Assim, quando uma de nós encontrava uma mulher com o cabelo espichado a ferro, entendia que havia ali uma tradição, talvez um motivo justo, ou uma questão de auto-estima mal resolvida. Já aquelas que usavam cabelo rastafári, andavam de cabeça erguida e entendia-se que sabiam algo que compartilhavam entre elas. As mulheres com cabelo Black dialogavam bem com as de cabelo trançado, como se pertencessem a grupos diferentes, mas ao mesmo tempo muito próximos.

Já as que faziam implantes, para muitas outras, estavam ainda num processo de procura da identidade, perdida entre sua imagem real e a projetada, mas sem dúvida, a imagem projetada muitas vezes era bastante real e com esta, para tais  mulheres, o diálogo era bem mais fácil.

Meu caro leitor, realmente não é fácil entender as mulheres negras, não fomos feitas para sermos facilmente definidas, somos extremamente complexas e demasiadamente a frente dos tempos, para certos padrões socialmente impostos de mulheres.

Fomos feministas antes de tal conceito ser pensado, reinventamos uma religião para o nosso povo não enlouquecer, ou perder seus laços. Sobre as sociedades matriarcais somos  nós que experienciamos, guerrear ao lado dos homens até hoje estamos, viver nossas sexualidades, corajosamente tentamos, assumir solitariamente as famílias e a criação de nossos filhos nós majoritariamente lideramos.

Mas, o espaço de se entregar a outras mulheres no momento em que seus cabelos são transformados é um espaço mágico, atua como nosso divã, chega a ser terapêutico. Quando o penteado nos agrada saímos do salão curadas e felizes.

Outras vezes, quando o tratamento capilar não é satisfatório saímos do salão derrotadas, por isso, nesse momento se alguém perguntar algo idiota pode receber uma resposta bastante calorosa e violenta e não vai nem entender o porquê. Mas, o salão também era o lugar onde ela ouviu naquela semana inúmeros casos de racismo que se passaram entre as mulheres.

Quando uma delas acabava de contar uma coisa, a outra logo emendava com algo mais terrível ainda. Isso a fez refletir em tomar a decisão de que algo precisava ser feito em termos de denúncia, pois não cabia mais aceitar esse tipo situação. De fato, muitos dos casos já traziam em si a solução, pois as mulheres contavam a reação e a atitude que tiveram e isso servia também de aprendizado, de lição para as demais.

Ela começou a pensar que seria interessante ter um lugar que fizesse essa transformação unindo as mudanças na estética com as modificações numa atitude mais posicionada em torno da negritude, pois tudo isso junto fortalecia a auto-estima das mulheres negras.

Um caso interessante foi contado por Nadja. Ela era uma mulher negra muito bonita, tinha uma pele aveludada e brilhante, suas formas eram muito cheias e arredondadas, uma mulher gordinha e aparentemente muito alegre. Nadja usava um cabelo Black power, ela contou da situação que vivenciou em uma loja de departamento quando procurava comprar uma roupa e no momento em que foi fazer o pagamento enfrentou uma fila enorme. Mas na hora em que ia pagar uma mulher branca, tomou a sua frente e ignorou completamente o objetivo da fila. Nadja tocou na mulher e disse a ela que havia uma fila, que ela não poderia ignorar isso, mesmo porque, ela era uma mulher negra, grande e não era possível que não estivesse sendo vista.

Diante desta fala, Nadja contou que a mulher branca a agrediu jogando a roupa na cara dela, que se assustou frente a tal reação, mas também reagiu empurrando a mulher que se desequilibrou e caiu. Ao levantar a mulher ainda tentou agredi-la com xingamentos racistas, dizendo que não admitia ser tocada por uma negra, fedida e mal educada. Nadja então partiu pra cima da mulher sem enxergar mais nada. Elas foram separadas pelos seguranças da loja e logo após se acalmarem seguiram seus caminhos separadamente. Ela não prestou queixa de racismo, pois não sabia onde procurar tal serviço.

Ao ouvir essa história todas deram risadas e falaram já ter presenciado ou vivido coisas parecidas. Dora, que usava seu cabelo trançado em Nagô, relatou que foi ao médico e que foi muito mal atendida, que o profissional mal a olhou e já foi logo dizendo que pessoas da sua raça tinham muitos problemas de saúde, trazidos da África. Diante desta situação ela afirmou que saiu do consultório sentindo-se bem pior do que quando entrou.

Inês contou que estava ali exatamente fazendo o cabelo para melhorar a aparência, pois foi procurar emprego e disseram a ela que uma pessoa com aquele cabelo “duro” jamais conseguiria um bom trabalho em Salvador.

Joelma, que usava seu cabelo alisado a ferro, disse que foi tentar estacionar seu carro em um local público, mas o guardador não deixou afirmando que estava ali guardando a vaga para “alguém”, portanto ela não poderia estacionar ali. Ela então ficou surpresa de saber que ela não era “alguém”, com o perfil esperado pelo guardador para ocupar aquela vaga.

Isabel afirmou que uma “gringa” perguntou a ela onde comprar cabelo rastafári, pois ela queria utilizar aquele cabelo e não sabia onde consegui-lo. Ao que Isabel respondeu que existem coisas no mundo que não são vendidas e mesmo que fossem não teriam o mesmo valor, muito menos o mesmo resultado...

Luiza, que usava mega hair no cabelo, contou que foi a uma delicatessen e sentou em uma mesa para lanchar, quando foi abordada por uma mulher branca idosa, que a mandou sair por ser esse o lugar onde ela sempre sentava para ler seu jornal. Luiza respondeu dizendo que de agora em diante ela deveria aprender a sentar-se em outro lugar. A mulher branca ficou descontrolada por ter sido confrontada por uma negra e começou a gritar xingamentos racistas, ao que Luiza calmamente respondeu dizendo: Bom, agora a senhora vai aprender mais duas coisas: 1. Racismo é crime e 2. A justiça também foi feita para punir pessoas brancas, dito isto partiu indo a delegacia mais próxima, onde deu sua queixa, ao que a mulher branca teve que posteriormente se defender e responder até hoje.

Denise, que usa seu cabelo com dreads, foi ao banco, retirou tudo que era de metal da bolsa e colocou no lugar apropriado para tais itens, mas mesmo assim a porta giratória não permitia sua passagem. Ela ficou extremamente irritada, principalmente ao perceber que outras pessoas, inclusive com chaves e outros objetos metálicos nas mãos passavam tranquilamente, pela referida porta. Ela então bloqueou a passagem e disse que só sairia dali depois de falar com o gerente da agência. Criou dessa forma, uma fila enorme e quando o gerente chegou ela disse-lhe poucas e boas sobre a situação que se caracterizava como racismo. O gerente mandou abrir a porta e silenciou diante do vexame causado.

Vilma, que usa o cabelo rastafári, relatou que foi a uma loja, utilizando seu turbante branco, pois estava de obrigação. Por conta disso as atendentes da loja se recusavam em  atendê-la, quando uma delas finalmente se aproximou, foi logo informando o preço do objeto, como se ela não tivesse condições de comprar.

Karine, que usa alisante no cabelo, falou que trabalhava como psicóloga em uma unidade de saúde municipal, onde os pacientes não acreditavam que ela fosse “a psicóloga”.

Enfim, muitas foram as situações relatadas e ela começou a registrar tais casos e a freqüentar cada vez mais o salão de beleza, recolhendo essas informações e elaborando aos poucos artigos que trouxessem para o público em geral, as histórias e experiências de vida na perspectiva das mulheres negras baianas.

Assim, meu caro leitor, se você conhece outros casos ou mesmo vivenciou tais situações, por favor, nos relate, pois sua experiência pode servir de referência para esse levantamento e através da socialização dessas informações podemos nos fortalecer cada vez mais, refletindo e aprendendo com nossas próprias vivências.

Mas, uma coisa realmente já vem acontecendo. E essa é uma percepção do ponto de vista das mulheres negras, graças as transformações estéticas, principalmente a partir de seus cabelos, elas observam que as pessoas agem de forma diferenciada diante de mulheres que usam certos tipos de penteados. Então, nossos cabelos também integram nosso repertório de lutas e emancipação diante de uma sociedade negra, mas secularmente sexista e racista como a de Salvador.

Por esse ponto de vista, temos que considerar os espaços dos salões de beleza, como o da casa de Cora, como espaços de empoderamento das mulheres negras.

Tais espaços sempre existiram desde quando nossas ancestrais trançavam os cabelos de suas filhas, ou de quando aprendemos sozinhas a cuidar deles, ou quando nos iniciamos como Iaôs e os cabelos passam também por um processo de renovação e renascimento, fortemente ligado ao renascimento de nossas identidades.

Meu caro leitor é muito importante perceber tais transformações como históricas. Elas se realizam a partir de um processo de questionamentos e de novos entendimentos que só ampliam nossos diálogos. Um diálogo interno com nós e nosso corpo, externo com as outras mulheres e com a sociedade de forma geral ou com o Atlântico Negro, que sempre nos pertenceu e nos atravessa.

Viva nós, nossa força e a força das águas!

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

"A História de Cândida Memória de Elefante"

Existem Histórias e Histórias, coisas que nos são contadas de diferentes formas. Coisas que aprendemos como sendo a verdadeira história, coisas que descobrimos como escondidas e entrelaçadas em nossas histórias e as que mais me interessam: coisas que dizem respeito a nossas histórias contadas da nossa perspectiva, de diferentes lugares.

Acontece que os livros de história se responsabilizaram por nos revelar, através de dados cientificamente pesquisados, versões de uma história comum, para que aprendamos e saibamos nossas origens, nossas escolhas, nossas trajetórias, nossos fracassos e nossas vitórias.

Deste ponto de vista, os livros e seus autores estão imbuídos de um compromisso maior que nós, seus leitores e expectadores, que é de nos registrar como seres que fazem parte de uma história maior. Nosso compromisso, às vezes, é de lê-los e de através desta leitura nos conhecer um pouco e aos outros, mas é também de desconfiar de certas histórias...

Comprometi-me nesse espaço em contar histórias a partir da perspectiva de algumas mulheres negras da Bahia, pessoas que conheci em minha infância e depois em minha trajetória de vida. Casos de pessoas comuns que talvez, nunca venham a fazer parte de um livro tradicional de histórias.

Refletindo sobre isso, esta semana, conversando com uma de minhas interlocutoras preferidas, que não por acaso é minha mãe, ela me revelou um pequeno fragmento da sua história muito interessante que vou contar neste espaço.

Ela trabalhou desde sua infância como empregada doméstica em algumas casas de família em Salvador, desta experiência guarda muitas lembranças e muitas histórias que viveu e que suas colegas, domésticas em outras casas, lhe contavam.

Essa história envolve famílias conhecidas da cidade, na época em que quem governava o Brasil era Getúlio Vargas. Tal presidente tornou-se muito popular entre as empregadas domésticas por ter instituído alguns direitos trabalhistas que impactaram na vida das pessoas trabalhadoras comuns e de suas famílias. Muitas discussões foram trazidas para o cenário da luta de classes e das desigualdades de gênero a partir das decisões políticas deste governante.

Aqui na Bahia, neste período, ficamos sob o governo de interventores enviados por Getúlio para controlar as decisões dos poderes locais, um destes interventores foi o oficial Renato Onofre Pinto Aleixo, do qual, segundo minha mãe, o povo da Bahia comentava:

Renato é nome de homem,
Onofre santo de mulher,
Pinto que sai do ovo,
E Aleixo que diabo é?”

Tal interventor foi um dos que mais perseguiu os Terreiros de Candomblé da Bahia. Havia um Terreiro no Caminho de Areia, que naquela época era maré, diz minha mãe: ali no local onde hoje funciona a Escola Tiradentes, o Terreiro era constantemente atacado pela cavalaria a mando deste interventor (essa é uma história a parte), Pinto Aleixo foi sucedido pelo oficial Juracy Magalhães.

Magalhães, era cearense e ocupou o governo do Estado da Bahia em três mandatos (o primeiro, iniciado como interventor, foi depois referendado pela Assembléia Legislativa – aqui considerado como mandato único, dado não ter existido solução de continuidade). Juracy Magalhães era Tenente do Exército quando assumiu o governo, nomeado pelo ditador Vargas - cargo que alcançou por ter sido um dos articuladores do Golpe que acabou, no Brasil, com a República Velha.

Juracy era então um jovem tenente, de apenas 25, quase 26 anos. A sua condição de "forasteiro" apenas agravou a reação dos velhos caciques da política local, que armaram-lhe grande oposição. Mas desde então revelou grande habilidade para contornar estes desafios, saindo deles ainda mais fortalecido.

Juracy levava também uma vida secreta, fora informante do FBI durante o último governo Vargas. Um fato digno de nota foi que, durante este seu mandato, ocorreu a primeira prisão do futuro líder de esquerda, Carlos Marighela, por haver escrito um poema onde criticava-o.

No local onde fora a casa do tribuno Cezar Zama, na Praça de Piedade, Juracy edificou a sede da Secretaria de Segurança Pública - órgão centralizador em Salvador, da repressão, no regime totalitário que então vivia o país.

No seu segundo mandato, Juracy se celebrizou por ter legalizado o jogo do bicho que passou a ser fonte de recursos para as obras assistenciais do governo. Sebastião Nery que lhe fazia oposição através de seu jornal panfletário, escreveu um dia o seguinte artigo: "A VELHA QUE VENDEU O PINICO PARA JOGAR NO BICHO".

O povo cantou a vitória de Juracy através da seguinte modinha, aqui cantada por minha mãe:

“Da raça forte e varonil, orgulho do nosso Brasil,
De Ruy Barbosa a Castro Alves para a Bahia governar,
em Juracy vamos votar.
Em Juracy Magalhães, por tudo isso e aquilo
em Juracy vamos votar para a Bahia governar.
Cacau, Petróleo e Paulo Afonso são as riquezes da Bahia,
Tens as mãos de Juracy como sua garantia.
Este ilustre brasileiro é candidato dos primeiros
para a Bahia governar em Juracy vamos votar.

Ela me contou que nessa época as mulheres de famílias abastardas iam à missa na Catedral da Sé. Nesta Praça também funcionava a Escola de Medicina e em um destes dias de missa as mulheres chegaram de bonde e o vento levantou o vestido de uma delas, essa atitude do vento foi bastante saudada e aprovada pelos estudantes de Medicina, que assobiaram e disseram muitas piadas para tais mulheres.

Entre essas senhoras estava a esposa do interventor Juracy Magalhães, que ao saber do ocorrido mandou a polícia deter os estudantes no prédio da Secretaria de Segurança Pública, solicitando que se retratassem com as mulheres. No dia seguinte o interventor foi ao local onde estavam os presos esperando o pedido de desculpas, mas foi recebido pelos estudantes com as calças abaixadas mostrando-lhes as nádegas.

Diante de tal ofensa o interventor determinou mais um dia prisão aos estudantes e autorizou castigos corporais aos líderes deste movimento, além de fome e banhos de água gelada, dentre estes estava Simões Filho, irmão de Jorge Simões, dono do Jornal “A Tarde”. Simões Filho ficou com uma deficiência na perna por conta de tais agressões.

Por outro lado, conta minha mãe, as famílias dos estudantes também se mobilizaram e solicitaram a intervenção de Dom Augusto Alvaro da Silva, o Cardeal da Silva, que foi a procura do interventor e negociou a finalização desta situação.

Do Cardeal da Silva minha mãe diz que se  lembra muito, pois ele parecia uma assombração, era alto, braaaaanco, magro e se vestia todo de branco.Tal Cardeal veio ao Bonfim fazer uma crisma coletiva e entre as crismadas moradoras da invasão, estava minha mãe. Segundo ela o Cardeal era muito temperamental e teve várias divergências com as freiras e madres chegando mesmo a agredir fisicamente uma delas com tapas no rosto.

Ela me relatou ainda que o interventor, oficial do exército, Juracy Magalhães, tinha um filho homossexual, esse rapaz casou-se contra sua própria vontade, por determinação do pai. Nesse período a família vivia em uma casa no Mont Serrat, onde minha mãe trabalhou, um tempo, como doméstica.

O jovem, filho de Juracy, sofria constantes ataques homofóbicos do pai e em um dia de desespero, chegando em casa a noite depois de uma festa, se apossou do revólver de um dos segurança e disparou contra sua própria  cabeça vindo em seguida a falacer, a caminho do hospital. Desde então, o pai foi perdendo sua força política e se afastando deste cenário.

Substituindo Juracy Magalhães foi eleito Otávio Mangabeira com o apoio de Juracy, ao final do mandato de Otávio Mangabeira concorreram Juracy Magalhães e Régis Pacheco, nesta eleição Otávio Mangabeira resolveu apoiar Régis Pacheco que ganhou a eleição. Diante deste fato a população da época fez uma modinha inspirada na música “Juazeiro” de Luiz Gonzaga, a modinha dizia:

“Mangabeira, Mangabeira me responda por favor,
Mangabeira meu amigo cadê o meu eleitor?
Diz Mangabeira, porque me traíste assim?
Diz Mangabeira nem teu voto foi pra mim?
- Foi feitiço, foi despacho, creio em supertição.
Dei um boi a Rei dos Astros e perdi a eleição.
Ai Mangabeira porque me traíste assim?
Diz Mangabeira nem teu voto foi pra mim”

Como você pode ver meu caro leitor são muitas histórias que podem ser reinterpretadas a partir da visão do povo, nas suas modinhas e provérbios e nos seus fuxicos, nos bastidores, subterrâneos e nas entrelinhas das histórias que são contadas do ponto de vista dos que detêm o poder. Viva a memória de nossas mais velhas por não deixarem morrer as nossas histórias.

Mas, me responda caro leitor dá pra acreditar na memória desta velha senhora?

domingo, 9 de outubro de 2011

"Uma menina negra, uma Iyá-mi e as Geledés"

Hoje vou te falar das meninas meu caro leitor, e devo confessar que eu já estava com saudades dessa nossa conversa de domingo, sobre nós mulheres negras. Nunca imaginei que tivéssemos tanto a dizer e agora fico preocupada de nunca mais deixar de falar. Sei que em algum momento isso vai ter que acabar, mas não sei como será e seria bom que você também me dissesse algo, pois às vezes parece que falo sozinha, como louca, enquanto você age como um psicanalista Lacaniano, ai calado, podia ao menos mandar um recado.

Este ano muitas coisas boas aconteceram e tiveram o protagonismo das mulheres negras da Bahia em muitas delas. Acho que há uma preocupação cada vez maior com nossas coisas, com nossos sentimentos, um reconhecimento da necessidade de um cuidado maior com nós mesmas. Agradeço isso a nossa irmandade, pois certamente nos reconhecemos no olhar e temos assistido o renascimento de nossas lutas na juventude e até nas crianças, as meninas.

Por isso hoje vou dedicar essa história às meninas, digo isso pensando em uma menina em particular que poderia ser minha filha, mas não é. Tenho certeza que você também a conhece leitor e vai balançar a cabeça afirmativamente quando começar a descrevê-la.

Ela mora nas imediações de um terreiro de candomblé, na sua rua, onde em frente tem também uma igreja evangélica e em sua família tem pessoas que frequentam as duas denominações religiosas. Isso a confunde às vezes e ela não sabe se pede a benção de Jesus ou dos Orixás. Sua avó diz que isso não é um problema para os deuses, então ela sorri e segue.

Mas na escola tudo fica mais complicado. Este ano ela começou a freqüentar uma escola no bairro. Na verdade dois rapazes, adeptos do terreiro, resolveram pagar a escola pra ela estudar, pois sua família é muito pobre e não parecia haver uma preocupação dos pais com este tipo de educação.

Essa menina tem apenas seis anos e quando nasceu sua mãe não sabia ao certo quem era seu pai, tudo iria depender das características que ela apresentasse ao nascer. Infelizmente, para a mãe, ela nasceu com a cara do homem mais pobre e preto da sua comunidade. Nasceu uma menina negra retinta, com enormes olhos negros e um cabelo revoltado, destes que não aceita pentes criados para cabelo de branco. Um cabelo com identidade negra, personalidade e autonomia.

Sua mãe chorou e não gostou dela logo de cara, pois sabia que a sociedade não a trataria com delicadezas, não respeitaria sua infância, seus sonhos seriam sufocados, disso sua mãe sabia. Mas, pior que isso sua mãe não sabia o que fazer para transformar o que ela já previa, ela não aprendeu a agir de outra forma e também assim o fazia, e, mesmo como mãe, foi a primeira a não a tratar com delicadeza, a não respeitar a sua infância e a sufocar seus sonhos. Pensava que assim a fortaleceria antes que qualquer um a machucasse, sua mãe foi a primeira a castigá-la sem dó.

Para fugir da mãe ela gostava de ficar no terreiro, pois lá tinham outras crianças com quem brincava, muitos doces, comidas quando estava com fome e a atenção dos mais velhos a lhe falar. Mas mesmo no terreiro as pessoas a achavam muito feia. Seus olhos assustadores arregalados, sua boca carnuda e grande, sua pele retinta e sempre suada, seu cabelo indomado e principalmente suas atitudes.

Era uma criança destemida, determinada, atenta, observadora, inteligente e apesar de tudo alegre. Mas, fazia muitas perguntas a todos e queria estar nos lugares onde todos estavam, onde os outros nem sempre queriam sua companhia.

Felizmente ela tinha uma avó que a amava. Era sua avó que lhe penteava os cabelos fazendo tranças e graciosos penteados. Era ela que lhe costurava vestidos nas cores votivas dos orixás que seriam festejados. Sua avó lhe contava histórias, músicas, ensinava a dançar a dança dos orixás. Quando outras crianças a machucavam ela corria e procurava seu colo, se enroscava na saia da velha e chorava, era sua avó que lhe enxugava as lágrimas e lhe apoiava.

Sua avó dizia para ela ter paciência e não permitia que seu coração se enchesse de mágoas, falava para ela desculpar as outras crianças, pois eram crianças mal educadas. Sussurrava em seu ouvido que ela era a menina mais linda e mais querida, que mamãe Oxum a amava.

À medida que foi crescendo sua avó lhe contou dúzias de histórias. Nas noites de festa no terreiro ela chegava toda arrumada, algumas vezes chegava ainda enxugando as lágrimas e ficava atenta a tudo que acontecia observando na dança dos orixás as histórias que avó narrava.

Mas quando Oxum ou Iemanjá chegavam, ela sorria se emocionava e corria, se ajoelhava, batia a cabeça no chão e ia para os braços do orixá, que a abraçava bem apertado, passava as mãos no suor e com ele banhava seu rosto, depois punha a mão no peito e demonstrava ter por ela muito amor e respeito. Ela retribuía em sorrisos, carícias, beijos e carinhos e o orixá seguia com ela de mãos dadas, uma cena linda de se ver e difícil de ser narrada.

Crescendo foi ficando cada vez mais esperta. As pessoas diziam que ela era danada, não respeitava ninguém, era ousada e respondona, tinha uma língua afiada.

Um dia conversando comigo, me contou muitos casos que ouviu e não entendeu e coisas que duvidava, acho que confiava em mim e percebia que jamais lhe mentiria. Por isso sempre me dizia “é verdade tia?”. Embora não fôssemos parentes todos para ela pertenciam a sua família.

Mas as histórias que mais gostava eram as que sua avó contava. Então pedi que me relatasse, pois estava escrevendo histórias de mulheres negras. Ela arregalou seus grandes olhos e sorriu com sua farta boca, cheia de dentes branquinhos e disse “é verdade tia, histórias de nós mulheres negras e você conta pra quem?” Dito isso, faço agora o relato da história que ela me contou que provavelmente ouviu de sua avó.

Tudo começa com um lugar que era freqüentado só por mulheres negras, onde essas mulheres eram todas felizes e viviam dançando, tinham filhos, mas se nascessem homens elas doavam e só ficavam com as mulheres.

As mais velhas eram rainhas e mandavam em tudo. De vez em quando faziam festas que duravam dias, nessas festas os homens podiam participar desde que viessem fantasiados de mulheres. Nos dias de trabalho essas mulheres andavam como as outras e ninguém sabe deste lugar que elas criaram só pra elas. Para se reconhecerem elas usavam colares de contas de diferentes cores, gostavam de perfumes, músicas, doces e de muitas crianças.

Quando alguém morria, ou acontecia algo ruim elas faziam feitiços e essa festa para afastar a tristeza. Essa festa é como o xirê, e como é uma festa muito bonita os orixás descem e também participam, mostrando que gostaram e depois vão embora. Depois desse relato, que ela me pediu que contasse para mulheres negras, saiu correndo e foi tentar brincar com as outras meninas.

Espero que você tenha gostado meu caro leitor, mas eu fiquei particularmente impressionada com o universo simbólico, resignificado que habita a cabeça daquela menina. Quanto de nós existe em nossas crianças e o que temos feito para tornar o mundo um lugar melhor para elas?

Mas a história que ouvi desta menina tem um mito de fundação, ela falava das Geledés que foi originalmente uma sociedade feminina secreta, de caráter religioso, mas que realmente existiu nas sociedades tradicionais Yorubás. Tais sociedades expressavam o poder feminino sobre a fertilidade, pois sem mulher não há vida, sem a fertilidade o mundo pára de crescer e essa era uma das piores pragas para um povoado ou região africana. Essas mulheres tinham o conhecimento de métodos contraceptivos, tinham consciência dos seus direitos sexuais e reprodutivos.

A Sociedade Geledés era composta por mulheres acima da idade da menopausa. Elas eram consideradas Iya-mi, nossas mães. Como tal eram temidas como Aje, feiticeiras. As pragas duma mãe são as mais temidas nas sociedades Yorubás.

O poder das mulheres mais velhas na Sociedade Yorubá é essencialmente ligado a menopausa. A menstruação é concebida como o poder generativo da mulher. Nessa concepção, o sangue da menstruação leva todas as impurezas perigosas para fora da mulher. Quando a menstruação pára, esse sangue é guardado dentro da mulher formando um reservatório de poder antigerativo e anti-conceptivo, ou seja, o poder de destruir, jogar pragas e fazer feitiços.

Elas tinham o poder sobre o bem-estar da comunidade. Em suas festas celebravam a sabedoria das mais velhas e nestes festivais os homens realmente participavam, tocando, dançando, mas com uma máscara na cabeça e vestidos como mulheres. A dança e a música eram partes integrantes das cerimônias e se desenrolavam em dias de festa.

Sem o poder feminino que tem a mulher, sem o princípio de criação não brotam plantas, os animais não se reproduzem, a humanidade não tem continuidade. Logo, o princípio feminino é o princípio da criação e preservação do mundo: sem a mulher não existe vida, devendo, por isso, a mulher ser reverenciada e neste culto Geledés temos representada a relação com a reverência que os homens têm para com as mulheres, já que somente elas criam, transformam e modificam as coisas e eles, por reconhecerem isso, se vestem como mulheres e festejam junto com elas.

Essa era uma sociedade secreta de caráter matriarcal que também existiu na Bahia, dizem que desapareceu no início do século XIX, mas depois da história que ouvi de Ingrid creio que ela ainda persiste em nosso imaginário e pode ressurgir diante de situações em que se faça necessário evocarmos feitiços e poderes, para nos socorrer nos sonhos e em momentos de aflição.

Então, nós mulheres negras temos muitos desafios e entre estes o de agirmos como o pássaro Sankofa, com os pés no chão voltados para a frente seguindo em direção ao futuro, com as meninas e o olhar para trás para não perdermos de vista nossa trajetória como nossas Iyá-mi.

Por isso, muitas de nós, precisamos ser como as Geledés e desde meninas, negras como a noite, construirmos lugares onde possamos ser nós mesmas, onde possamos ter o respeito dos homens e onde possamos ser felizes, dançar, cantar e nos fortalecer enquanto mulheres, lugares como um Terreiro de Candomblé nos sonhos de Ingrid.