domingo, 11 de março de 2012

"UMA HOMENAGEM ÀS MULHERES NEGRAS"


A cada dia que passava ela sentia-se mais diferente e distante das outras. Suas amigas não percebiam, mas ela sabia que seria difícil continuar com aquelas amizades por mais tempo, pois muito do que elas apreciavam não fazia mais parte do elenco de coisas pelas quais ela  se interessava agora.

Andava distraída e se aborrecia com situações aparentemente bobas, nesses momentos seu coração acelerava e sua mente avisava que continuar naquela direção não seria bastante prudente.

As piores coisas que presenciava, ouvia, ou lhe relatavam e o que chamava a sua atenção eram as situações de racismo, de discriminação de mulheres, homens, crianças e idosos negros.

Aquilo parecia inadmissível de acontecer, mas ainda assim, acontecia. E o mais interessante é que as pessoas conhecidas, aparentemente boas pessoas, que se consideravam brancas, ou quase brancas, não viam dessa mesma forma. Com estes pensamentos e com lágrimas nos olhos, por ter passado por uma situação de discriminação racial, ela entrou naquela tarde de sábado no salão de beleza.

O espaço da casa onde as mulheres faziam o cabelo foi sendo modificado com o tempo. Se antes era só um canto na cozinha de Cora, agora era um vão inteiro. Os serviços também se ampliaram e mesmo mantendo a tradição do clássico espichamento a ferro, surgiram também penteados feitos de tranças, chamados de “afro”, produtos químicos poderosíssimos, entrelaces, mega hair, implantes com fibra e com cabelo natural, “Black-power”  etc.

O salão cresceu e a clientela também aumentou: crianças, adolescentes, mulheres adultas e idosas, todo tipo de mulher preta passou a procurar o estabelecimento. Apareceram novidades para cabelos crespos em produtos químicos e técnicas afro-americanas, que passaram a fazer parte do mundo das mulheres negras baianas. Era como se o universo de tais mulheres e de seus cabelos fosse o mesmo em todo o globo.

Posso afirmar que a partir do cabelo, iniciou-se um diálogo perdido no corte produzido pelo processo de escravização, entre as mulheres negras da diáspora e da África, uma comunicação, diria eu, interplanetária, bem acima do pescoço e do raciocínio lógico, pura intuição?

Havia nessas novas formas de utilizar os cabelos, aproximações com países africanos, jamaicanos, latino-americanos e com os EUA, numa comunicação transatlântica. As mulheres negras baianas pesquisavam em revistas importadas, filmes, internet, telenovelas, enfim, o mundo poderia ser descrito a partir de suas cabeças. E dessa forma, quase intuitiva, estabeleceu-se o diálogo silencioso das madeixas crespas, que, para quem quisesse entender a partir daí, muitas interpretações poderiam ser feitas.

Assim, quando uma de nós encontrava uma mulher com o cabelo espichado a ferro, entendia que havia ali uma tradição, talvez um motivo justo, ou uma questão de auto-estima mal resolvida. Já aquelas que usavam cabelo rastafári, andavam de cabeça erguida e entendia-se que sabiam algo que compartilhavam entre elas. As mulheres com cabelo Black dialogavam bem com as de cabelo trançado, como se pertencessem a grupos diferentes, mas ao mesmo tempo muito próximos.

Já as que faziam implantes, para muitas outras, estavam ainda num processo de procura da identidade, perdida entre sua imagem real e a projetada, mas sem dúvida, a imagem projetada muitas vezes era bastante real e com esta, para tais  mulheres, o diálogo era bem mais fácil.

Meu caro leitor, realmente não é fácil entender as mulheres negras, não fomos feitas para sermos facilmente definidas, somos extremamente complexas e demasiadamente a frente dos tempos, para certos padrões socialmente impostos de mulheres.

Fomos feministas antes de tal conceito ser pensado, reinventamos uma religião para o nosso povo não enlouquecer, ou perder seus laços. Sobre as sociedades matriarcais somos  nós que experienciamos, guerrear ao lado dos homens até hoje estamos, viver nossas sexualidades, corajosamente tentamos, assumir solitariamente as famílias e a criação de nossos filhos nós majoritariamente lideramos.

Mas, o espaço de se entregar a outras mulheres no momento em que seus cabelos são transformados é um espaço mágico, atua como nosso divã, chega a ser terapêutico. Quando o penteado nos agrada saímos do salão curadas e felizes.

Outras vezes, quando o tratamento capilar não é satisfatório saímos do salão derrotadas, por isso, nesse momento se alguém perguntar algo idiota pode receber uma resposta bastante calorosa e violenta e não vai nem entender o porquê. Mas, o salão também era o lugar onde ela ouviu naquela semana inúmeros casos de racismo que se passaram entre as mulheres.

Quando uma delas acabava de contar uma coisa, a outra logo emendava com algo mais terrível ainda. Isso a fez refletir em tomar a decisão de que algo precisava ser feito em termos de denúncia, pois não cabia mais aceitar esse tipo situação. De fato, muitos dos casos já traziam em si a solução, pois as mulheres contavam a reação e a atitude que tiveram e isso servia também de aprendizado, de lição para as demais.

Ela começou a pensar que seria interessante ter um lugar que fizesse essa transformação unindo as mudanças na estética com as modificações numa atitude mais posicionada em torno da negritude, pois tudo isso junto fortalecia a auto-estima das mulheres negras.

Um caso interessante foi contado por Nadja. Ela era uma mulher negra muito bonita, tinha uma pele aveludada e brilhante, suas formas eram muito cheias e arredondadas, uma mulher gordinha e aparentemente muito alegre. Nadja usava um cabelo Black power, ela contou da situação que vivenciou em uma loja de departamento quando procurava comprar uma roupa e no momento em que foi fazer o pagamento enfrentou uma fila enorme. Mas na hora em que ia pagar uma mulher branca, tomou a sua frente e ignorou completamente o objetivo da fila. Nadja tocou na mulher e disse a ela que havia uma fila, que ela não poderia ignorar isso, mesmo porque, ela era uma mulher negra, grande e não era possível que não estivesse sendo vista.

Diante desta fala, Nadja contou que a mulher branca a agrediu jogando a roupa na cara dela, que se assustou frente a tal reação, mas também reagiu empurrando a mulher que se desequilibrou e caiu. Ao levantar a mulher ainda tentou agredi-la com xingamentos racistas, dizendo que não admitia ser tocada por uma negra, fedida e mal educada. Nadja então partiu pra cima da mulher sem enxergar mais nada. Elas foram separadas pelos seguranças da loja e logo após se acalmarem seguiram seus caminhos separadamente. Ela não prestou queixa de racismo, pois não sabia onde procurar tal serviço.

Ao ouvir essa história todas deram risadas e falaram já ter presenciado ou vivido coisas parecidas. Dora, que usava seu cabelo trançado em Nagô, relatou que foi ao médico e que foi muito mal atendida, que o profissional mal a olhou e já foi logo dizendo que pessoas da sua raça tinham muitos problemas de saúde, trazidos da África. Diante desta situação ela afirmou que saiu do consultório sentindo-se bem pior do que quando entrou.

Inês contou que estava ali exatamente fazendo o cabelo para melhorar a aparência, pois foi procurar emprego e disseram a ela que uma pessoa com aquele cabelo “duro” jamais conseguiria um bom trabalho em Salvador.

Joelma, que usava seu cabelo alisado a ferro, disse que foi tentar estacionar seu carro em um local público, mas o guardador não deixou afirmando que estava ali guardando a vaga para “alguém”, portanto ela não poderia estacionar ali. Ela então ficou surpresa de saber que ela não era “alguém”, com o perfil esperado pelo guardador para ocupar aquela vaga.

Isabel afirmou que uma “gringa” perguntou a ela onde comprar cabelo rastafári, pois ela queria utilizar aquele cabelo e não sabia onde consegui-lo. Ao que Isabel respondeu que existem coisas no mundo que não são vendidas e mesmo que fossem não teriam o mesmo valor, muito menos o mesmo resultado...

Luiza, que usava mega hair no cabelo, contou que foi a uma delicatessen e sentou em uma mesa para lanchar, quando foi abordada por uma mulher branca idosa, que a mandou sair por ser esse o lugar onde ela sempre sentava para ler seu jornal. Luiza respondeu dizendo que de agora em diante ela deveria aprender a sentar-se em outro lugar. A mulher branca ficou descontrolada por ter sido confrontada por uma negra e começou a gritar xingamentos racistas, ao que Luiza calmamente respondeu dizendo: Bom, agora a senhora vai aprender mais duas coisas: 1. Racismo é crime e 2. A justiça também foi feita para punir pessoas brancas, dito isto partiu indo a delegacia mais próxima, onde deu sua queixa, ao que a mulher branca teve que posteriormente se defender e responder até hoje.

Denise, que usa seu cabelo com dreads, foi ao banco, retirou tudo que era de metal da bolsa e colocou no lugar apropriado para tais itens, mas mesmo assim a porta giratória não permitia sua passagem. Ela ficou extremamente irritada, principalmente ao perceber que outras pessoas, inclusive com chaves e outros objetos metálicos nas mãos passavam tranquilamente, pela referida porta. Ela então bloqueou a passagem e disse que só sairia dali depois de falar com o gerente da agência. Criou dessa forma, uma fila enorme e quando o gerente chegou ela disse-lhe poucas e boas sobre a situação que se caracterizava como racismo. O gerente mandou abrir a porta e silenciou diante do vexame causado.

Vilma, que usa o cabelo rastafári, relatou que foi a uma loja, utilizando seu turbante branco, pois estava de obrigação. Por conta disso as atendentes da loja se recusavam em  atendê-la, quando uma delas finalmente se aproximou, foi logo informando o preço do objeto, como se ela não tivesse condições de comprar.

Karine, que usa alisante no cabelo, falou que trabalhava como psicóloga em uma unidade de saúde municipal, onde os pacientes não acreditavam que ela fosse “a psicóloga”.

Enfim, muitas foram as situações relatadas e ela começou a registrar tais casos e a freqüentar cada vez mais o salão de beleza, recolhendo essas informações e elaborando aos poucos artigos que trouxessem para o público em geral, as histórias e experiências de vida na perspectiva das mulheres negras baianas.

Assim, meu caro leitor, se você conhece outros casos ou mesmo vivenciou tais situações, por favor, nos relate, pois sua experiência pode servir de referência para esse levantamento e através da socialização dessas informações podemos nos fortalecer cada vez mais, refletindo e aprendendo com nossas próprias vivências.

Mas, uma coisa realmente já vem acontecendo. E essa é uma percepção do ponto de vista das mulheres negras, graças as transformações estéticas, principalmente a partir de seus cabelos, elas observam que as pessoas agem de forma diferenciada diante de mulheres que usam certos tipos de penteados. Então, nossos cabelos também integram nosso repertório de lutas e emancipação diante de uma sociedade negra, mas secularmente sexista e racista como a de Salvador.

Por esse ponto de vista, temos que considerar os espaços dos salões de beleza, como o da casa de Cora, como espaços de empoderamento das mulheres negras.

Tais espaços sempre existiram desde quando nossas ancestrais trançavam os cabelos de suas filhas, ou de quando aprendemos sozinhas a cuidar deles, ou quando nos iniciamos como Iaôs e os cabelos passam também por um processo de renovação e renascimento, fortemente ligado ao renascimento de nossas identidades.

Meu caro leitor é muito importante perceber tais transformações como históricas. Elas se realizam a partir de um processo de questionamentos e de novos entendimentos que só ampliam nossos diálogos. Um diálogo interno com nós e nosso corpo, externo com as outras mulheres e com a sociedade de forma geral ou com o Atlântico Negro, que sempre nos pertenceu e nos atravessa.

Viva nós, nossa força e a força das águas!

Um comentário:

  1. As histórias e biografias realmente me encantaram, é muito envolvente e saudável conhecer mulheres tão intensas. Realmente uma leitura gratificante. Sou mulher, sou negra, mato um leão por dia e acredito, sinceramente acredito que não estou por aqui de passagem. Axé !

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