Existem Histórias e Histórias, coisas que nos são contadas de diferentes formas. Coisas que aprendemos como sendo a verdadeira história, coisas que descobrimos como escondidas e entrelaçadas em nossas histórias e as que mais me interessam: coisas que dizem respeito a nossas histórias contadas da nossa perspectiva, de diferentes lugares.
Acontece que os livros de história se responsabilizaram por nos revelar, através de dados cientificamente pesquisados, versões de uma história comum, para que aprendamos e saibamos nossas origens, nossas escolhas, nossas trajetórias, nossos fracassos e nossas vitórias.
Deste ponto de vista, os livros e seus autores estão imbuídos de um compromisso maior que nós, seus leitores e expectadores, que é de nos registrar como seres que fazem parte de uma história maior. Nosso compromisso, às vezes, é de lê-los e de através desta leitura nos conhecer um pouco e aos outros, mas é também de desconfiar de certas histórias...
Comprometi-me nesse espaço em contar histórias a partir da perspectiva de algumas mulheres negras da Bahia, pessoas que conheci em minha infância e depois em minha trajetória de vida. Casos de pessoas comuns que talvez, nunca venham a fazer parte de um livro tradicional de histórias.
Refletindo sobre isso, esta semana, conversando com uma de minhas interlocutoras preferidas, que não por acaso é minha mãe, ela me revelou um pequeno fragmento da sua história muito interessante que vou contar neste espaço.
Ela trabalhou desde sua infância como empregada doméstica em algumas casas de família em Salvador, desta experiência guarda muitas lembranças e muitas histórias que viveu e que suas colegas, domésticas em outras casas, lhe contavam.
Essa história envolve famílias conhecidas da cidade, na época em que quem governava o Brasil era Getúlio Vargas. Tal presidente tornou-se muito popular entre as empregadas domésticas por ter instituído alguns direitos trabalhistas que impactaram na vida das pessoas trabalhadoras comuns e de suas famílias. Muitas discussões foram trazidas para o cenário da luta de classes e das desigualdades de gênero a partir das decisões políticas deste governante.
Aqui na Bahia, neste período, ficamos sob o governo de interventores enviados por Getúlio para controlar as decisões dos poderes locais, um destes interventores foi o oficial Renato Onofre Pinto Aleixo, do qual, segundo minha mãe, o povo da Bahia comentava:
“Renato é nome de homem,
Onofre santo de mulher,
Pinto que sai do ovo,
E Aleixo que diabo é?”
Tal interventor foi um dos que mais perseguiu os Terreiros de Candomblé da Bahia. Havia um Terreiro no Caminho de Areia, que naquela época era maré, diz minha mãe: ali no local onde hoje funciona a Escola Tiradentes, o Terreiro era constantemente atacado pela cavalaria a mando deste interventor (essa é uma história a parte), Pinto Aleixo foi sucedido pelo oficial Juracy Magalhães.
Magalhães, era cearense e ocupou o governo do Estado da Bahia em três mandatos (o primeiro, iniciado como interventor, foi depois referendado pela Assembléia Legislativa – aqui considerado como mandato único, dado não ter existido solução de continuidade). Juracy Magalhães era Tenente do Exército quando assumiu o governo, nomeado pelo ditador Vargas - cargo que alcançou por ter sido um dos articuladores do Golpe que acabou, no Brasil, com a República Velha.
Juracy era então um jovem tenente, de apenas 25, quase 26 anos. A sua condição de "forasteiro" apenas agravou a reação dos velhos caciques da política local, que armaram-lhe grande oposição. Mas desde então revelou grande habilidade para contornar estes desafios, saindo deles ainda mais fortalecido.
Juracy levava também uma vida secreta, fora informante do FBI durante o último governo Vargas. Um fato digno de nota foi que, durante este seu mandato, ocorreu a primeira prisão do futuro líder de esquerda, Carlos Marighela, por haver escrito um poema onde criticava-o.
No local onde fora a casa do tribuno Cezar Zama, na Praça de Piedade, Juracy edificou a sede da Secretaria de Segurança Pública - órgão centralizador em Salvador, da repressão, no regime totalitário que então vivia o país.
No seu segundo mandato, Juracy se celebrizou por ter legalizado o jogo do bicho que passou a ser fonte de recursos para as obras assistenciais do governo. Sebastião Nery que lhe fazia oposição através de seu jornal panfletário, escreveu um dia o seguinte artigo: "A VELHA QUE VENDEU O PINICO PARA JOGAR NO BICHO".
O povo cantou a vitória de Juracy através da seguinte modinha, aqui cantada por minha mãe:
“Da raça forte e varonil, orgulho do nosso Brasil,
De Ruy Barbosa a Castro Alves para a Bahia governar,
em Juracy vamos votar.
Em Juracy Magalhães, por tudo isso e aquilo
em Juracy vamos votar para a Bahia governar.
Cacau, Petróleo e Paulo Afonso são as riquezes da Bahia,
Tens as mãos de Juracy como sua garantia.
Este ilustre brasileiro é candidato dos primeiros
para a Bahia governar em Juracy vamos votar.
Ela me contou que nessa época as mulheres de famílias abastardas iam à missa na Catedral da Sé. Nesta Praça também funcionava a Escola de Medicina e em um destes dias de missa as mulheres chegaram de bonde e o vento levantou o vestido de uma delas, essa atitude do vento foi bastante saudada e aprovada pelos estudantes de Medicina, que assobiaram e disseram muitas piadas para tais mulheres.
Entre essas senhoras estava a esposa do interventor Juracy Magalhães, que ao saber do ocorrido mandou a polícia deter os estudantes no prédio da Secretaria de Segurança Pública, solicitando que se retratassem com as mulheres. No dia seguinte o interventor foi ao local onde estavam os presos esperando o pedido de desculpas, mas foi recebido pelos estudantes com as calças abaixadas mostrando-lhes as nádegas.
Diante de tal ofensa o interventor determinou mais um dia prisão aos estudantes e autorizou castigos corporais aos líderes deste movimento, além de fome e banhos de água gelada, dentre estes estava Simões Filho, irmão de Jorge Simões, dono do Jornal “A Tarde”. Simões Filho ficou com uma deficiência na perna por conta de tais agressões.
Por outro lado, conta minha mãe, as famílias dos estudantes também se mobilizaram e solicitaram a intervenção de Dom Augusto Alvaro da Silva, o Cardeal da Silva, que foi a procura do interventor e negociou a finalização desta situação.
Do Cardeal da Silva minha mãe diz que se lembra muito, pois ele parecia uma assombração, era alto, braaaaanco, magro e se vestia todo de branco.Tal Cardeal veio ao Bonfim fazer uma crisma coletiva e entre as crismadas moradoras da invasão, estava minha mãe. Segundo ela o Cardeal era muito temperamental e teve várias divergências com as freiras e madres chegando mesmo a agredir fisicamente uma delas com tapas no rosto.
Ela me relatou ainda que o interventor, oficial do exército, Juracy Magalhães, tinha um filho homossexual, esse rapaz casou-se contra sua própria vontade, por determinação do pai. Nesse período a família vivia em uma casa no Mont Serrat, onde minha mãe trabalhou, um tempo, como doméstica.
O jovem, filho de Juracy, sofria constantes ataques homofóbicos do pai e em um dia de desespero, chegando em casa a noite depois de uma festa, se apossou do revólver de um dos segurança e disparou contra sua própria cabeça vindo em seguida a falacer, a caminho do hospital. Desde então, o pai foi perdendo sua força política e se afastando deste cenário.
Substituindo Juracy Magalhães foi eleito Otávio Mangabeira com o apoio de Juracy, ao final do mandato de Otávio Mangabeira concorreram Juracy Magalhães e Régis Pacheco, nesta eleição Otávio Mangabeira resolveu apoiar Régis Pacheco que ganhou a eleição. Diante deste fato a população da época fez uma modinha inspirada na música “Juazeiro” de Luiz Gonzaga, a modinha dizia:
“Mangabeira, Mangabeira me responda por favor,
Mangabeira meu amigo cadê o meu eleitor?
Diz Mangabeira, porque me traíste assim?
Diz Mangabeira nem teu voto foi pra mim?
- Foi feitiço, foi despacho, creio em supertição.
Dei um boi a Rei dos Astros e perdi a eleição.
Ai Mangabeira porque me traíste assim?
Diz Mangabeira nem teu voto foi pra mim”
Como você pode ver meu caro leitor são muitas histórias que podem ser reinterpretadas a partir da visão do povo, nas suas modinhas e provérbios e nos seus fuxicos, nos bastidores, subterrâneos e nas entrelinhas das histórias que são contadas do ponto de vista dos que detêm o poder. Viva a memória de nossas mais velhas por não deixarem morrer as nossas histórias.
Mas, me responda caro leitor dá pra acreditar na memória desta velha senhora?
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