domingo, 9 de outubro de 2011

"Uma menina negra, uma Iyá-mi e as Geledés"

Hoje vou te falar das meninas meu caro leitor, e devo confessar que eu já estava com saudades dessa nossa conversa de domingo, sobre nós mulheres negras. Nunca imaginei que tivéssemos tanto a dizer e agora fico preocupada de nunca mais deixar de falar. Sei que em algum momento isso vai ter que acabar, mas não sei como será e seria bom que você também me dissesse algo, pois às vezes parece que falo sozinha, como louca, enquanto você age como um psicanalista Lacaniano, ai calado, podia ao menos mandar um recado.

Este ano muitas coisas boas aconteceram e tiveram o protagonismo das mulheres negras da Bahia em muitas delas. Acho que há uma preocupação cada vez maior com nossas coisas, com nossos sentimentos, um reconhecimento da necessidade de um cuidado maior com nós mesmas. Agradeço isso a nossa irmandade, pois certamente nos reconhecemos no olhar e temos assistido o renascimento de nossas lutas na juventude e até nas crianças, as meninas.

Por isso hoje vou dedicar essa história às meninas, digo isso pensando em uma menina em particular que poderia ser minha filha, mas não é. Tenho certeza que você também a conhece leitor e vai balançar a cabeça afirmativamente quando começar a descrevê-la.

Ela mora nas imediações de um terreiro de candomblé, na sua rua, onde em frente tem também uma igreja evangélica e em sua família tem pessoas que frequentam as duas denominações religiosas. Isso a confunde às vezes e ela não sabe se pede a benção de Jesus ou dos Orixás. Sua avó diz que isso não é um problema para os deuses, então ela sorri e segue.

Mas na escola tudo fica mais complicado. Este ano ela começou a freqüentar uma escola no bairro. Na verdade dois rapazes, adeptos do terreiro, resolveram pagar a escola pra ela estudar, pois sua família é muito pobre e não parecia haver uma preocupação dos pais com este tipo de educação.

Essa menina tem apenas seis anos e quando nasceu sua mãe não sabia ao certo quem era seu pai, tudo iria depender das características que ela apresentasse ao nascer. Infelizmente, para a mãe, ela nasceu com a cara do homem mais pobre e preto da sua comunidade. Nasceu uma menina negra retinta, com enormes olhos negros e um cabelo revoltado, destes que não aceita pentes criados para cabelo de branco. Um cabelo com identidade negra, personalidade e autonomia.

Sua mãe chorou e não gostou dela logo de cara, pois sabia que a sociedade não a trataria com delicadezas, não respeitaria sua infância, seus sonhos seriam sufocados, disso sua mãe sabia. Mas, pior que isso sua mãe não sabia o que fazer para transformar o que ela já previa, ela não aprendeu a agir de outra forma e também assim o fazia, e, mesmo como mãe, foi a primeira a não a tratar com delicadeza, a não respeitar a sua infância e a sufocar seus sonhos. Pensava que assim a fortaleceria antes que qualquer um a machucasse, sua mãe foi a primeira a castigá-la sem dó.

Para fugir da mãe ela gostava de ficar no terreiro, pois lá tinham outras crianças com quem brincava, muitos doces, comidas quando estava com fome e a atenção dos mais velhos a lhe falar. Mas mesmo no terreiro as pessoas a achavam muito feia. Seus olhos assustadores arregalados, sua boca carnuda e grande, sua pele retinta e sempre suada, seu cabelo indomado e principalmente suas atitudes.

Era uma criança destemida, determinada, atenta, observadora, inteligente e apesar de tudo alegre. Mas, fazia muitas perguntas a todos e queria estar nos lugares onde todos estavam, onde os outros nem sempre queriam sua companhia.

Felizmente ela tinha uma avó que a amava. Era sua avó que lhe penteava os cabelos fazendo tranças e graciosos penteados. Era ela que lhe costurava vestidos nas cores votivas dos orixás que seriam festejados. Sua avó lhe contava histórias, músicas, ensinava a dançar a dança dos orixás. Quando outras crianças a machucavam ela corria e procurava seu colo, se enroscava na saia da velha e chorava, era sua avó que lhe enxugava as lágrimas e lhe apoiava.

Sua avó dizia para ela ter paciência e não permitia que seu coração se enchesse de mágoas, falava para ela desculpar as outras crianças, pois eram crianças mal educadas. Sussurrava em seu ouvido que ela era a menina mais linda e mais querida, que mamãe Oxum a amava.

À medida que foi crescendo sua avó lhe contou dúzias de histórias. Nas noites de festa no terreiro ela chegava toda arrumada, algumas vezes chegava ainda enxugando as lágrimas e ficava atenta a tudo que acontecia observando na dança dos orixás as histórias que avó narrava.

Mas quando Oxum ou Iemanjá chegavam, ela sorria se emocionava e corria, se ajoelhava, batia a cabeça no chão e ia para os braços do orixá, que a abraçava bem apertado, passava as mãos no suor e com ele banhava seu rosto, depois punha a mão no peito e demonstrava ter por ela muito amor e respeito. Ela retribuía em sorrisos, carícias, beijos e carinhos e o orixá seguia com ela de mãos dadas, uma cena linda de se ver e difícil de ser narrada.

Crescendo foi ficando cada vez mais esperta. As pessoas diziam que ela era danada, não respeitava ninguém, era ousada e respondona, tinha uma língua afiada.

Um dia conversando comigo, me contou muitos casos que ouviu e não entendeu e coisas que duvidava, acho que confiava em mim e percebia que jamais lhe mentiria. Por isso sempre me dizia “é verdade tia?”. Embora não fôssemos parentes todos para ela pertenciam a sua família.

Mas as histórias que mais gostava eram as que sua avó contava. Então pedi que me relatasse, pois estava escrevendo histórias de mulheres negras. Ela arregalou seus grandes olhos e sorriu com sua farta boca, cheia de dentes branquinhos e disse “é verdade tia, histórias de nós mulheres negras e você conta pra quem?” Dito isso, faço agora o relato da história que ela me contou que provavelmente ouviu de sua avó.

Tudo começa com um lugar que era freqüentado só por mulheres negras, onde essas mulheres eram todas felizes e viviam dançando, tinham filhos, mas se nascessem homens elas doavam e só ficavam com as mulheres.

As mais velhas eram rainhas e mandavam em tudo. De vez em quando faziam festas que duravam dias, nessas festas os homens podiam participar desde que viessem fantasiados de mulheres. Nos dias de trabalho essas mulheres andavam como as outras e ninguém sabe deste lugar que elas criaram só pra elas. Para se reconhecerem elas usavam colares de contas de diferentes cores, gostavam de perfumes, músicas, doces e de muitas crianças.

Quando alguém morria, ou acontecia algo ruim elas faziam feitiços e essa festa para afastar a tristeza. Essa festa é como o xirê, e como é uma festa muito bonita os orixás descem e também participam, mostrando que gostaram e depois vão embora. Depois desse relato, que ela me pediu que contasse para mulheres negras, saiu correndo e foi tentar brincar com as outras meninas.

Espero que você tenha gostado meu caro leitor, mas eu fiquei particularmente impressionada com o universo simbólico, resignificado que habita a cabeça daquela menina. Quanto de nós existe em nossas crianças e o que temos feito para tornar o mundo um lugar melhor para elas?

Mas a história que ouvi desta menina tem um mito de fundação, ela falava das Geledés que foi originalmente uma sociedade feminina secreta, de caráter religioso, mas que realmente existiu nas sociedades tradicionais Yorubás. Tais sociedades expressavam o poder feminino sobre a fertilidade, pois sem mulher não há vida, sem a fertilidade o mundo pára de crescer e essa era uma das piores pragas para um povoado ou região africana. Essas mulheres tinham o conhecimento de métodos contraceptivos, tinham consciência dos seus direitos sexuais e reprodutivos.

A Sociedade Geledés era composta por mulheres acima da idade da menopausa. Elas eram consideradas Iya-mi, nossas mães. Como tal eram temidas como Aje, feiticeiras. As pragas duma mãe são as mais temidas nas sociedades Yorubás.

O poder das mulheres mais velhas na Sociedade Yorubá é essencialmente ligado a menopausa. A menstruação é concebida como o poder generativo da mulher. Nessa concepção, o sangue da menstruação leva todas as impurezas perigosas para fora da mulher. Quando a menstruação pára, esse sangue é guardado dentro da mulher formando um reservatório de poder antigerativo e anti-conceptivo, ou seja, o poder de destruir, jogar pragas e fazer feitiços.

Elas tinham o poder sobre o bem-estar da comunidade. Em suas festas celebravam a sabedoria das mais velhas e nestes festivais os homens realmente participavam, tocando, dançando, mas com uma máscara na cabeça e vestidos como mulheres. A dança e a música eram partes integrantes das cerimônias e se desenrolavam em dias de festa.

Sem o poder feminino que tem a mulher, sem o princípio de criação não brotam plantas, os animais não se reproduzem, a humanidade não tem continuidade. Logo, o princípio feminino é o princípio da criação e preservação do mundo: sem a mulher não existe vida, devendo, por isso, a mulher ser reverenciada e neste culto Geledés temos representada a relação com a reverência que os homens têm para com as mulheres, já que somente elas criam, transformam e modificam as coisas e eles, por reconhecerem isso, se vestem como mulheres e festejam junto com elas.

Essa era uma sociedade secreta de caráter matriarcal que também existiu na Bahia, dizem que desapareceu no início do século XIX, mas depois da história que ouvi de Ingrid creio que ela ainda persiste em nosso imaginário e pode ressurgir diante de situações em que se faça necessário evocarmos feitiços e poderes, para nos socorrer nos sonhos e em momentos de aflição.

Então, nós mulheres negras temos muitos desafios e entre estes o de agirmos como o pássaro Sankofa, com os pés no chão voltados para a frente seguindo em direção ao futuro, com as meninas e o olhar para trás para não perdermos de vista nossa trajetória como nossas Iyá-mi.

Por isso, muitas de nós, precisamos ser como as Geledés e desde meninas, negras como a noite, construirmos lugares onde possamos ser nós mesmas, onde possamos ter o respeito dos homens e onde possamos ser felizes, dançar, cantar e nos fortalecer enquanto mulheres, lugares como um Terreiro de Candomblé nos sonhos de Ingrid.

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