domingo, 10 de novembro de 2013

AS INTOCÁVEIS

A vida dos brancos é diferente da vida das famílias negras, em muitas coisas, em outras são muito parecidas, muitas vezes não nos conhecemos e, portanto, não sabemos em que diferimos ou em que nos parecemos. Arbitrariamente acreditamos que os brancos têm uma vida melhor, que compartilham ideias comuns, alguns pensam que eles se reúnem para tramar contra os negros, que aproveitam melhor a vida e que provam, comem e saboreiam as melhores coisas do mundo só por serem brancos.

 
Acredito que muitas dessas coisas realmente acontecem, ou que pelo menos, muitos assim agem e fazem acontecer, daí não ser esse um sentimento arbitrário. Nós, pessoas negras trazemos em nossos corpos/pele e espirito, histórias e marcas dessa relação covarde, maléfica e muitas vezes determinante em nossa condição de vida. Experiências que ouvimos contar, presenciamos e até passamos e que nos tornam brancos e negros seres quase intocáveis.

 
Por isso os brancos deveriam entender quando alguém que mora em uma comunidade majoritariamente negra, como a do Barro Vermelho, que vive e se relaciona com as coisas comuns que acontecem às pessoas negras dessa comunidade, compartilham os mesmos sonhos e projetos de superação, de luta pela sobrevivência diária, de fé em divindades, saberes reinventados para driblar as armadilhas impostas pelas relações desiguais, para vencer a ausência de políticas públicas.

 
E mesmo que terminam por compartilhar misérias, infortúnios e vitórias, deveriam compreender como tais pessoas dividem um universo próprio, simbólico, com linguagens para além das barreiras da língua, encruzilhadas onde nos encontramos para entoar canções que dizem respeito a nossos sentimentos mais profundos, nossa “arte”, música, dança, literatura, nossas expressões culturais, representam de diferentes formas nossas histórias e a história dessa relação, são armas contra a discriminação e para a superação imaginária e factual das desigualdades.

 
De tal modo que quando nos colocamos diante dessas artes, as interpretações são diversas, as leituras, são múltiplas, mas de uma coisa sabemos: não há folclore em nenhuma delas.

 
É impressionante como os brancos se dedicam em minimizar essa produção cultural foclorizando-a para servir de produto de exportação, ou para comercializá-la. Outras vezes, na maioria das vezes, tratam de certo modo que transformam aquela produção em algo que lhe sirva de abrigo, renomeando, se apropriando dessa arte como de sua criação e ai investindo e capitalizando-a para obterem, como sempre, lucro e mais valia da produção negra.

 
Acontece que nós negros também nos apropriamos de muita coisa da cultura “branca” reinterpretando e ressiginificando para nossa visão de mundo, a diferença é que isso não gera para nós um valor a mais, lucro, ou seja, verdadeiramente, não nos apropriamos de seus produtos e sim de suas sobras, daquilo que não lhes serve mais, ou que no final acabam por dar lucro a eles mesmos, pois não perdem nada com isso.

 
Pensando assim Conceição manteve-se quase calada naquele sábado. Enquanto fazia o cabelo de algumas mulheres, ela só cantava. O feijão estava no fogo e o cheiro da feijoada se misturava ao de cabelo quente, o dia também estava quente e ela gostaria de estar na praia ao lado de uma cerveja bem gelada.

 
Conceição imaginava que a cerveja era um produto criado pelos brancos, era de origem alemã, então ela pensava que essa foi uma boa criação, uma bebida que se adaptava tão bem ao calor dos trópicos, que não era muito cara, de modo que muitas pessoas poderiam ter acesso a dita cuja. Uma cerveja bem gelada sempre caía bem em dias como aquele, o problema é que muitos homens negros gastavam todo seu salário no consumo desta e de outras bebidas alcoólicas e isso invariavelmente resultava em conflitos nas famílias negras, pois esse era um gasto que muitas não poderiam ter.

 
Mas como viver essa realidade sem uma droga? Ou melhor, como enfrentar um dia atrás do outro sem uma alegria artificial por alguns momentos, fornecida por algo além, algo saboroso, inebriante, que lhe enchia de coragem, sonhos, ilusões? Naquele momento Conceição compreendeu os homens negros e ai ela cantou outra música. Quando cantava sempre tinha um significado, suas canções eram recados, mensagens pra quem entendia seus pensamentos e seu coração.

 
Quando estava triste ela cantava músicas tristes, sua entonação era quase um choro, um lamento, nesse momento ela cantava boleros, Cartola, Pixinguinha, Nelson, Angela Maria. Quando saudosa ela cantava Gonzagão, forrós, Marinês e sua Gente, Dominguinhos. Quando feliz ela cantava sambas Noel, Elza, Dorival cantava e muitas vezes dançava com o ferro de cabelo na mão. Gosto de me lembrar dela assim, porque nesse momento ela me tirava pra dançar, rodopiava e me largava na sala e dizia: samba neguinha! E eu inventava minha dança e todas riam de meus passos desengonçados.

 
Assim nos socializamos nas comunidades negras, sempre ao lado de nossas mais velhas. Quando recebia o primeiro pagamento me mandava ir correndo comprar uma cerveja, bem gelada e todas bebiam, cantavam e contavam seus casos.

 
Dona Ondina estava preocupada com o caso de seu filho menor o Dirceu, ele estava com uma coceira que não passava com nada, depois de amanhecer em frente ao posto médico ela conseguiu uma consulta e descobriu que o menino tinha “Bicho Geográfico”, coisa que se pega em terreno onde tenha outros bichos como gato, cachorro, coisa de menino que brinca na terra. Todas ficaram assustadas, pois onde mais suas crianças iriam brincar? Teriam que aprender a conviver com o Bicho Geográfico, quem sabe assim aprenderiam geografia, mas era preciso tratar da tal enfermidade e foi o que Dona Ondina ensinou a todas.

 
Dona Arminda começou a falar dos seus patrões os “B” da cidade alta, esse sem dúvida era um assunto que todas gostavam, pois compartilhavam experiências comuns. Arminda também era lavadeira e você não tem ideia, meu caro leitor, da ciência que era preciso ter para lavar as roupas dos brancos antes da máquina de lavar. Nessa época a máquina de lavar eram elas, as mulheres negras do Barro Vermelho. Arminda contava que as roupas vinham muito fedorentas, pois ficavam guardadas, misturadas, inclusive com toalhinhas de menstruação das mulheres, pois naquele tempo não havia absorventes.

 
As lavadeiras lavavam tudo, desde pano de chão, de prato, a roupas das mais delicadas e intimas. As toalhas de menstruação eram fervidas com ervas aromáticas e alvejantes naturais que as lavadeiras conheciam, as camisas de linho também eram alvejadas com outras ervas, anis, alfazemas, muitas roupas brancas ficavam quarando ao sol e depois elas levavam para o rio e enxaguavam com bastante água corrente. Depois de todo esse trabalho vinha à fase de engomar a roupa com goma feita bem fininha, daí colocavam pra secar para só depois passar o ferro que era a brasa, pesado e muito quente. Ainda bem que dona Arminda tinha os braços grossos e fortes e suas filhas ajudavam a engomar, os meninos iam entregar as trouxas. Ela tinha quase uma lavanderia em casa.

 
Nesse momento Conceição cantava Clementina “Ensaboa mulata ensaboa...tô ensaboando” e elas brindavam com cerveja. Cora contava das suas idas e vindas nas casas da cidade alta em minha companhia. E eu repassava minhas experiências nas casas dos brancos para as demais crianças do Barro Vermelho, eram como histórias, as crianças queriam saber o que os brancos faziam para ter aqueles cabelos lisinhos? Ou como fazer para ter tantos brinquedos, o que eles comiam, bebiam ou faziam pra se divertir?

 
Sim meu caro leitor, aprendíamos desde cedo a diferenciar a vida dos brancos de nossas vidas, aprendíamos que erámos intocáveis, e eu relatava de forma segura que:

 
“Eles comem comida fraca, arrozinho, macarrão, poucos comem feijão, a carne que eles comem é sempre molinha, nunca comem carne com osso. O peixe quase não tem espinha e a galinha sempre é de granja, nunca de quintal como a nossa.” Eles não comem miúdos, charque, café preto, sempre tem leite e eles comem diariamente queijo, coisa que nós criança do Barro Vermelho só comíamos no natal, quando minha tia fazia um caixa que ela pagava o ano inteiro para comermos um queijo cuia no final do ano, com um prazer inenarrável.

 
“Para cuidar do cabelo elas têm uma infinidade de shampoos, cremes e loções e não precisam passar pelo ferro quente, ele é lisinho assim naturalmente, lavam esse cabelo quase todo dia, mas não adianta muito, pois sempre estão com piolho e minha tia me manda tomar cuidado e não encostar minha cabeça na delas, aliás não posso encostar muita coisa nelas: minha mão, meu pé, meu corpo, somos intocáveis, apenas, olho, reparo e sinto. Um dia uma delas me tocou, pegou minha mão e me levou pra brincar com elas, foi um choque minha pele quente naquela pele fria. Olhei pra minha tia e ia pedir ajuda pelo susto, mas ela balançou a cabeça afirmativamente e me deixou ir com a menina.”

 
No seu quarto “cachinhos dourados” tinha todos os brinquedos possíveis, parecia uma loja, mas o que mais chamou minha atenção foi uma vitrola onde ela colocava discos e ouvíamos músicas: Noel, Cartola, Gonzagão, Pixinguinha, Angela, Elza, ela só não tinha Clementina. Fiquei estarrecida imaginando o que Conceição iria pensar daquilo e cantei, cantei, dancei e tirei “cachinhos dourados” pra dançar, rodopiei com ela na sala e a soltei gritando: dança neguinha!

 
Daí, não vi mais nada, foi só o choro da menina que caiu no chão e Cora me pegando pelo braço e dizendo mais uma vez: eu não te disse pra não tocar nela?
 
Éramos e ainda somos intocáveis.


domingo, 20 de outubro de 2013

A História de como Ossaim cuidou da Epidemia de Febre Tifóide das Mulheres Negras

 As coisas parecem ser muitas vezes sonhos, ilusões, dejávu, premonições que nos chegam de forma simples, nas palavras que quase falamos e vemos brotar da boca de alguém; ao sentir saudade de uma pessoa que surge de repente em sua frente, aparentemente do nada; de visitar novos lugares sabendo exatamente a imagem que surgirá ao dobrar uma esquina; ou provar uma fruta desconhecida e sentir um sabor antigo, bastante conhecido; de sentir aromas que remontam a cenários; de beijar ou transar com alguém que se desejou muito, mas que te toca e acaricia exatamente como sonhastes; de antever mudanças no tempo antes do noticiário; ou, a que mais me aflige, de não gostar de pessoas e coisas antes mesmo de ser apresentado a essas; ou até mesmo o contrário, de amar certas pessoas e coisas muito antes de conhecê-las.
Não sei meu caro leitor, mas isso é coisa constante na vida das mulheres negras, sensações que de tão frequentes não surpreendem, nem incomodam mais, apenas se tornam parte da natureza do ser, que quando sonha, acorda mais preparado para os acontecimentos diários, pois já viveram tais situações de diversas formas enquanto dormiam.

Não saberia que nome dar a essas experiências, mas sei que de tanto ouvi-las, senti-las e percebê-las em mim e em outras pessoas, penso que elas mereceriam um estudo, talvez, ou uma conversa franca mais séria a respeito.

Por outro lado, quando ouço Carmelita contar seus sonhos e acontecimentos dessa natureza, me aproximo dela, fecho os olhos enquanto ela conta e me arrepio invariavelmente diante das sensações que mexem comigo a partir da sua experiência, na verdade, até já preparo meu corpo para essa onda de arrepios.

Carmelita nem sabe disso, ela não é minha amiga, até tenho reservas com relação a ela. Mas quando ela chega no salão eu me aproximo, me calo e escuto sua voz e seus casos. Sua voz por si só já é um encantamento, ela fala baixo, rouco, pausado, suspira em certos momentos e o desfecho dos seus casos não são concretos, pois nos deixam sempre sem saber a que conclusão chegar. Observo que outras mulheres sentem o mesmo que eu quando ela fala, e ficam encabuladas logo em seguida querendo concluir o que ela não explicou direito.

Para você ter uma ideia, meu caro leitor, certa vez Carmelita nos contou que ouviu de outra pessoa, que em sua cidade estava tendo uma onda de Febre Tifoide muito forte, nesse lugar muitas pessoas até tinham morrido de Tifo, mas o mais impressionante é que as pessoas que sobreviveram à febre perderam seus cabelos. As pessoas eram negras, todas negras, mas tinham os cabelos muito lisos e ficaram carecas por um tempo após a febre, depois, quando os cabelos voltaram a nascer, cresceram extremamente crespos e elas tomaram aquilo como um castigo divino.
Daí em diante a discussão crescia entre as mulheres no salão, pois muitas conheciam e afirmavam terem visto casos parecidos, mas ninguém sabia o que significava ou como se dava esse processo, ou mesmo se haveria como revertê-lo. Carmelita afirmava que isso se deu com ela, pois segundo sua mãe ela tinha um cabelo que não dava uma volta, mas depois de sobreviver a Tifo, se transformou numa mulher negra de cabelos crespíssimos.
Enquanto Conceição fazia o cabelo dela ia pensando nos benefícios da Tifo para o seu negócio, afinal de contas se todas elas tivessem o cabelo liso, não precisariam alisá-los. Joanete pensava no que aconteceu com todos os brancos de cabelo liso e que tiveram Tifo, ou será que essa era uma doença só de negros? Cora achava Carmelita mentirosa demais, pois ela conhecia toda sua família e não havia uma pessoa se quer de cabelo liso para comprovar essa transformação.

Mãe Joana ria e dizia que cabelo crespo é que é bom, pois não nega a origem e ainda prova que resistiu a Tifo.  Maria Helena acreditava seriamente na história e contava mais casos a respeito, mas incluía a doença que originou a calvície dos homens (essa depois eu conto). E eu, aprendiz de feiticeira, pensava em descobrir através da ciência o elemento endurecedor de cabelos contidos na Tifo e quem sabe transformá-lo em um spray e borrifar em todos os cabelos lisos que encontrasse pela frente, pois desse modo ajudaria Conceição a fazer mais cabelos crespos.

Por conta desses casos e situações foi que Conceição resolveu comprar um livro que decifrava todos os sonhos. Assim, à medida que as mulheres contavam seus sonhos no salão, ela consultava o livro e dava o veredito dos significados, pois não suportava essas histórias sem um final concreto e feliz.

Mas, teve um caso que ela não encontrou respostas no tal livro, foi um caso contado por Zulmira. Nesse ponto, preciso descrever quem era Zulmira para que você melhor compreenda meu caro leitor. Ela era uma mulher que teve Paralisia Infantil, segundo minha mãe. Uma mulher negra, magra e que por conta da paralisia tinha uma perna mais fininha que a outra. Ela trabalhava como lavadeira e passava pela Rua do Barro Vermelho carregando suas trouxas de roupa sempre mancando, por conta da perna.

Zulmira frequentava o terreiro de Joana, ela era filha de Ossaim e contam que esse orixá recebeu de Olodumaré o segredo das folhas. Ossaim sabia que algumas delas traziam a calma, vigor, outras, a sorte, a glória, ou ainda as doenças, acidentes e a miséria. Ossaim cuidava da saúde de todos através das folhas, mas ele próprio também mancava, ele tinha uma perna só e embora isso não fosse um problema para sua mobilidade, pois ele estava em todos os lugares com o vento, ainda assim muita gente duvidava do seu poder de curar, pois pensavam que ele deveria curar a si mesmo, se realmente fosse um bom curandeiro.

Mas Ossaim sabia que suas limitações de saúde o faziam era muito mais capaz de compreender o sofrimento dos outros, por ele próprio saber conviver com sua doença e esse era seu segredo, um fundamento.

Então, Zulmira de Ossaim ao ouvir a história de Carmelita contou que na verdade não foi a febre que causou a queda de cabelos e sim a vaidade e o desprezo pelos outros negros que havia naquela comunidade, como existe até hoje por parte de alguns brancos. Para corrigir esse problema foi mandado um vento que varreu da cabeça de algumas pessoas os cabelos lisos e trouxe os crespos.

Por conta disso, as mulheres negras tinham a oportunidade de refletir a partir de seus cabelos, de se encontrar para cuidar de si e das outras e de criar penteados revolucionários que expressam a revolução de suas ideias, mas muitas ainda insistem em manterem-se alisadas, para experimentar outras texturas e ampliar seus conhecimentos sobre o olhar do outro a partir das diversas possibilidades de experiências estéticas possíveis. E também, para contribuir com a sustentabilidade de pessoas como Conceição, esse é outro segredo, nós mulheres negras atuamos melhor em rede, um fundamento.

Como você pode ver caro leitor, cada mulher interpreta o que Carmelita diz e ressignifica no seu universo, agora me diga sobre sua experiência, você conheceu alguém que teve Febre Tifóide, dormiu de cabelo liso e acordou com o cabelo crespo?

Ou mesmo alguém de Ossaim, que ao viver a experiência da doença se torna alguém melhor em cuidar dos outros?

Essas eram questões que eu registrava a partir das histórias das mulheres negras daquele salão, pois eu pensava em também escrever meu livro dos sonhos. Um livro diferente do de Conceição, mas um livro para nós mulheres negras, com questões, provérbios, respostas, ensinamentos, conhecimentos e saberes repassados por elas, as mulheres do Barro Vermelho.

sábado, 14 de setembro de 2013

A História de nossas lágrimas

Acho que havia algo de errado com aquela mulher preta...
Andando, correndo pela rua alagada, pulando poças de lama, eu fugia pelo mundo a fora e meus pensamentos não saiam dela. Como pode tratar tão bem àquelas pessoas brancas, que nem são seus filhos e ser tão pouco carinhosa com seus próprios filhos pretos?
 
Ela se chamava Glória e trabalhava como doméstica na casa de uma família da cidade alta, já por muitos anos. Tinha quatro filhos e criava as crianças sozinha.
 
Trabalhava como doméstica e lavadeira nos finais de semana, de vez em quando fazia também faxina em algumas casas chiques do centro. Seus filhos tinham doze, dez e oito anos. Lindas crianças, negras como a noite, abandonadas pelo pai, como a maioria das crianças da Rua do Barro Vermelho.
 
As mães pensavam que os homens não nos faziam falta, só a elas como mulheres, elas sim, podiam chorar e sofrer por eles, não nós. Estavam enganadas, mas não nos consultavam e não podíamos dizer nada, e, ai da criança que reclamasse ou chorasse clamando pelo pai... Essa estava fadada a sofrer bem mais castigos que as outras, por fazê-las lembrar suas faltas.
 
A filha mais velha de Glória chamava-se Margarida e já estava trabalhando como babá na casa de uma família branca, por isso a casa de Glória ficava entregue nas mãos de Helena sua filha do meio, que tomava conta dos irmãos menores Antonio e Augusto, os mabaços.
 
Quando Glória chegava do trabalho cobrava de um tudo de Helena, queria ver tudo arrumado, limpo, deveres de casa feitos, e a menina só tinha dez anos. Brigava, falava por horas das coisas mal feitas e muitas vezes não deixava Helena ir brincar na rua, só por castigo e Helena nem chorava.
 
Na casa dos brancos, Glória não era assim, tinha palavras doces para as crianças e “sim senhora” pros patrões. Cuidava das crianças, contando historinhas, cantando cantigas para ninar seus sonhos, lavava suas roupinhas, corpo branquinho, cabelo loirinho, ria de suas histórias, consolava seus medos, fazia pirão de caldo para amolecer suas comidas, esperava que dormissem para sair, cheirava suas peles, cuidava de seus machucados com bálsamos por ela mesmo preparados e quando adoeciam não saia de seu lado.
 
Dona Glória fazia o cabelo também com Conceição, sempre que lhe sobrava tempo. As mulheres achavam que ela era um exemplo, por criar seus filhos assim na corda curta, sem sair, sem brincar, sem correr, sem cair e sem chorar.
 
Aliás, chorar era um problema para as crianças negras, quando isso acontecia mandavam calar, entupir, engolir, gargalhar, não havia lugar para lágrimas, fraquezas, consolos, ou demonstrações de medo, fragilidades, sonhos, não para nós crianças do Barro Vermelho. As mulheres punham o dedo na boca, olhavam sérias e diziam quase sussurando: calem-se agora!
 
Um dia Dona Glória nos levou na casa de sua patroa, era aniversário de uma das crianças brancas e Dona B convidou os filhos da empregada. Foram muitas recomendações para ter cuidado com o comportamento e ai de nós se algo saísse errado. Lá observamos como Dona Glória era com eles, tão meiga e delicada, simpática e cuidadosa.
 
Em casa, Helena, sua filha, não se conformava, brigou com a mãe e gritou que não era sua escrava, pois nem como empregada era tratada, ela queria saber por que sua mãe não lhe amava?
 
Dona Glória chorou e dessa vez desabafou, dizendo pra filha que a amava muito, mas acreditava que dessa forma dura, também lhe protegia e cuidava. Endurecia, porque assim mais cedo ela amadureceria, pois para ela o mundo das mulheres negras não era o mesmo das meninas brancas.
 
Dona Glória sabia que não teríamos quem nos protegesse se caíssemos, quem nos consolasse se chorássemos, quem nos amparasse se sentíssemos medo. Ela aprendeu assim a ser forte, não demonstrar fragilidade ou carinho, essa era para ela a forma correta de educar uma criança negra e de amar.
 
Por conta disso os meninos eram tratados como homens e as meninas como senhoras, desde muito cedo. Brincar era perda de tempo e cedo aprendíamos a resolver nossos problemas sem ajuda, sozinhas.
 
Chorar era demonstrar a falha do sistema, lágrimas não eram bem vindas, tínhamos que sufocar, engolir, entupir, não reclamar.
 
Helena entendeu, mas não aceitou, enlouqueceu, queria ter o carinho de sua mãe, sentia-se roubada pelas crianças brancas, então deu pra fugir de casa e deixar seus irmãos sozinhos. Corria pela rua, pela feira, mercados, ia às igrejas pedir aos deuses consolo para suas mágoas.
 
Um dia Helena chegou ao terreiro de Joana, calada, cismada, rasgada. Negra, mais negra que nunca, com seu cabelo desgrenhado, com fome, frio, o olhar perdido parado. Fazia muito tempo que ela fugiu, muito tempo que ninguém mais tinha visto a menina, nem sua mãe sabia do seu paradeiro.
 
Então, Mãe Joana a convidou pra entrar, era festa de Ogum e no toque do adarrum Helena caiu e rodou, sorriu, dançou, cantou e nos braços da Iyalorixá, Helena finalmente chorou.

sábado, 3 de agosto de 2013

CABELO OPRIMIDO É TETO PARA O CÉREBRO - ALICE WALKER

alice-walker

Como muitos de vocês devem saber, fui aluna desta faculdade, há muitas luas. Eu me sentava nessas mesmas cadeiras (às vezes ainda com o pijama sob o casaco) e olhava para a luz que entra por estas janelas. Eu ouvia dezenas de palestras encorajadoras e cantei e ouvi música maravilhosa. Acho que sentia que ia voltar para falar deste lado do pódio. Acho que naquele tempo, quando eu estudava aqui, adolescente ainda, eu já pensava no que diria a vocês, hoje.
 
Talvez os surpreenda saber que não pretendo falar (talvez até o período de perguntas e respostas) sobre guerra e paz, economia, racismo ou sexismo, ou sobre os triunfos e atribulações dos negros ou das mulheres. Nem sobre filmes. Embora os mais atentos possam ouvir em minhas palavras a preocupação por alguns desses assuntos, vou falar sobre algo muito mais perto de nós. Vou falar sobre cabelo. Não se preocupem com o estado dos seus cabelos neste momento.
 
Não fiquem alarmados. Não se trata de uma avaliação. Simplesmente quero compartilhar com vocês algumas experiências com nosso amigo cabelo, e espero entreter e divertir a todos.
 
 Durante um longo tempo, desde a primeira infância até a idade adulta crescemos física e espiritualmente (incluindo o intelecto com o espírito), sem que nos demos muito conta do fato. Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos, que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explicar, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que crescemos, sentimos, como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Porém, o mais desagradável é não saber o que está acontecendo. Lembro-me das ondas de ansiedade que me envolviam nos diferentes períodos de minha vida, sempre se manifestando por meio de distúrbios físicos (insônia, por exemplo) e como eu ficava assustada, porque não entendia como aquilo era possível.
 
 Com a idade e a experiência, vocês ficarão satisfeitos em saber, o crescimento torna-se um processo consciente e reconhecido. Ainda um pouco assustador, mas pelo menos compreendido. Aqueles longos períodos, quando algo dentro de nós parece estar esperando, contendo a respiração, sem saber qual será o próximo passo, com o tempo transformam-se em períodos esperados, pois enquanto ocorrem, compreendemos que estamos sendo preparados para a próxima fase da nossa vida e que provavelmente vai se revelar um novo nível de personalidade.
 
 Alguns anos atrás passei por um longo período de inquietação, disfarçado em imobilidade. Isto é, isolei-me do grande mundo a favor da paz do meu mundo pessoal, muito menor. Eu me desliguei da televisão e dos jornais (um grande alívio!), dos membros mais perturbadores da minha grande família, e da maioria dos amigos. Era como se eu tivesse chegado a um teto no meu cérebro. E sob esse teto minha mente estava extremamente inquieta, embora tudo em mim estivesse calmo.
 
 Como é comum nesses períodos de introspecção, contei as contas do meu progresso neste mundo. No relacionamento com a família e os antepassados eu agira respeitosamente (nem todos concordarão, acredito); no meu trabalho eu havia feito, usando toda a habilidade de que disponho, tudo que era exigido de mim; no relacionamento com as pessoas com quem convivo diariamente, eu agira com todo amor que podia encontrar no meu íntimo, Eu começava também, finalmente, a reconhecer minha responsabilidade para com a Terra c minha adoração do Universo. O que mais então eu devia fazer? Por que, quando eu meditava e procurava o alçapão de escape no alto do meu cérebro, o qual, nos outros estágios do crescimento, eu sempre tive a sorte de encontrar, só achava agora um teto, como se o caminho para me identificar com o infinito, o caminho que eu costumava trilhar, estivesse selado?
 
Certo dia, depois de ter feito ansiosamente essa pergunta durante um ano, ocorreu-me que, no meu ser físico, havia uma última barreira para minha libertação espiritual, pelo menos naquela fase: meu cabelo.
 
 Não meu amigo cabelo propriamente, pois logo percebi que ele era inocente. O problema era o modo pelo qual eu me relacionava com ele. Eu estava sempre pensando nele. Tanto que, se meu espírito fosse um balão, ansioso para voar e se confundir com o infinito, meu cabelo seria a pedra que o ancoraria à Terra. Compreendi que seria impossível continuar meu desenvolvimento espiritual, impossível o crescimento da minha alma, impossível poder olhar para o Universo e esquecer meu ego completamente nesse olhar (uma das alegrias mais puras!) se continuasse presa a pensamentos sobre meu cabelo. Compreendi de repente porque freiras e monges raspam as cabeças!
 
 Olhei no espelho e comecei a rir de felicidade! Tinha conseguido abrir a pele da semente e estava subindo dentro da terra.
 
 Então comecei as experiências. Durante alguns meses usei longas tranças (era moda entre as mulheres negras na época) feitas com o cabelo de mulheres coreanas. Eu adorava isso. Realizava minha fantasia de ter cabelos longos e dava ao meu cabelo curto e levemente processado (oprimido) a oportunidade de crescer. A jovem que trançava meu cabelo era uma pessoa que eu acabei adorando - uma jovem mãe lutadora; ela e a filha chegavam à minha casa às sete da noite e conversávamos, ouvíamos música, comíamos pizzas ou burritos, enquanto ela trabalhava, até uma ou duas horas da manhã. Eu adorava o artesanato dos desenhos criados por ela para a minha cabeça. (Trabalho de cesteiro! exclamou uma amiga, tocando a teia intrincada na minha cabeça.) Eu adorava sentar entre os joelhos dela como sentava entre os joelhos de minha mãe e de minha irmã enquanto elas trançavam meu cabelo, quando eu era pequena. Eu adorava o fato do meu cabelo crescer forte e saudável sob as "extensões", como eram chamadas as tranças.
 
Eu adorava pagar a uma jovem irmã por um trabalho realmente original e que fazia parte da tradição do penteado dos negros. Eu adorava o fato de não precisar tratar do meu cabelo a não ser com intervalos de dois ou três meses (pela primeira vez na vida eu podia lavar a cabeça todos os dias, se quisesse, e não fazer nada mais). Porém, uma vez ou outra as tranças tinham de ser retiradas (um trabalho de quatro a sete horas) e feitas novamente (mais sete a oito horas); também eu não me esquecia das mulheres coreanas que, de acordo com minha jovem cabeleireira, deixavam crescer o cabelo expressamente para vender. É claro que essa informação me fez pensar (e, sim, me preocupar) sobre os outros aspectos de suas vidas.
 
 Quando meu cabelo atingiu dez centímetros de comprimento, dispensei o cabelo das minhas irmãs coreanas e trancei o meu. Só então renovei o conhecimento com suas características naturais. Descobri que era flexível, macio reagindo quase com sensualidade à umidade. Com as pequenas tranças girando para todos os lados, menos para onde eu queria que virassem, descobri que meu cabelo era voluntarioso, exatamente como eu! Vi que meu amigo cabelo, tendo recuperado vida própria, tinha senso de humor. Descobri que eu gostava dele.
 
 Mais uma vez na frente do espelho, olhei para minha imagem e comecei a rir. Meu cabelo era uma dessas criações estranhas, incríveis, surpreendentes, de parar o tráfego - um pouco parecido com as listras das zebras, com as orelhas do tatu ou os pés azul-elétrico do mergulhão - que o universo cria sem nenhum motivo especial a não ser demonstrar sua imaginação ilimitada. Compreendi que jamais tivera a oportunidade de apreciar o cabelo em sua verdadeira natureza. Descobrir que ele, na verdade, tinha uma natureza própria. Lembrei-me dos anos que passei agüentando cabeleireiros - desde o tempo de minha mãe - que faziam trabalho missionário nos meus cabelos. Eles dominavam, suprimiam, controlavam. Agora, mais ou menos livre, ele ficava todo espetado para todos os lados. Eu telefonava para todos meus amigos no país para relatar as travessuras do meu cabelo. Ele jamais pensava em ficar deitado. Deitar de costas, na posição missionária, não o interessava. Ele cresceu. Ficar curto, cortado quase até a raiz, outra "solução" missionária, também não o interessava. Ele procurava espaços cada vez maiores, mais luz, mais dele mesmo. Ele adorava ser lavado; mas isso era tudo.

Finalmente descobri exatamente o que o cabelo queria: queria crescer, ser ele mesmo, atrair poeira, se esse era seu destino, mas queria ser deixado em paz por todos, incluindo eu mesma, os que não o amavam como ele era. O que acham que aconteceu? (Além disso, agora eu podia, como um bônus adicional, compreender Bob Marley como o místico que suas músicas diziam que era). O teto no alto do meu cérebro abriu-se; mais uma vez minha mente (e meu espírito) podia sair de dentro de mim. Eu não estaria mais presa à imobilidade inquieta, eu continuaria a crescer. A planta estava acima do solo.
 
 Essa foi a dádiva do meu crescimento, no meu quadragésimo ano. Isso e saber que enquanto existir alegria na criação haverá sempre novas criações para descobrir, ou redescobrir, e que o melhor lugar para olhar é dentro de nós mesmos. Que a própria morte, sendo parte da vida, deve oferecer pelo menos um momento de prazer.
 
Fiz esta palestra no Dia dos Fundadores, 11 de abril de 1987, no Spelman College, Atlanta

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Para as crianças cientistas que nós fomos


Eu sei que você já foi criança, meu caro leitor, por isso me sinto a vontade para te contar certas coisas. Compartilho com você uma determinada perspectiva de olhar de certa forma, que eu não tinha enquanto as vivia. Agora quando olho pra trás espero encontrar o seu olhar e que as narrativas que faço agora, não sejam tão duras para você da mesma forma que elas realmente foram, afinal de contas são histórias, casos, fatos inventados, ou ouvidos e nesse espaço eu determino o fim. De uma coisa tenho certeza aqueles anos, morando naquela casa, com aquele salão de beleza e essas mulheres negras todas, marcaram minha vida e minha visão de mundo se expandiu.

Para vocês terem uma ideia, era véspera de carnaval e o movimento no salão iria aumentar, porque as mulheres queriam se enfeitar para sair em seus blocos de samba, afoxés, bloco afro, bloco de índio ou simplesmente ir atrás de um cordão ou do Jegue de Cueca. Conceição sabia disso, pois muitas já tinham feito reserva de horário e encomendado os penteados. Ela estava agitada e acordou cedo, pegou uma vassoura e saiu praguejando dizendo que hoje ia ter...

Começou a varrer a calçada resmungando baixinho. Bom, nesse ponto é importante entender que a temperatura dessas mulheres pode ser medida, e quando elas acordam como Conceição acordou hoje é porque as coisas vão esquentar, isso as crianças sentem. Há um movimento diferente, o clima fica meio parado, um silêncio estranho onde só se ouve o resmungo delas. Então, na nossa concepção de crianças era o momento de cair fora, de ir brincar bem longe delas, pois provavelmente de agora em diante tudo que desse errado era nossa culpa.

Tratei logo de me arrumar e ir pra rua buscar novidade. Fui à casa de Marinalva e chamei ela para correr pícula. Ela veio meio desengonçada, porque, eu já falei pra vocês de Marinalva, ela é assim mesmo, veste roupas dos irmãos maiores, ou das doações dos brancos, mija na cama, não gosta de pentear o cabelo, daí a coitadinha anda assim. Eu gosto dela assim, porque a faço de minha boneca, ai eu penteio seu cabelo, passo batom, pinto suas unhas, às vezes ela não me deixa pentear o cabelo, então eu amarro um lenço. Enquanto isso, vamos conversando como gente grande. Marinalva fica parecendo uma mãe de santo, só dá ordens.

Conceição estava agitada porque muitas mulheres não queriam espichar o cabelo, o que elas queriam era fazer tranças e penteados em nagô. Segundo elas, para brincar os dias de carnaval era melhor e mais fácil de arrumar. Mas, para Conceição era mais trabalho, ter que escolher os penteados, trançar cabeça por cabeça. As que iam aos blocos de samba queriam algo prático e que o cabelo não ficasse caindo na nuca; as que iam ao bloco afro queriam tranças e penteados mirabolantes, diferentes umas das outras e com fitinhas nas cores do pan-africanismo; as que iam a bloco de reggae queriam tranças soltinhas e cabelo rastafári; as que iam aos afoxés queriam turbantes estratosféricos, mas as mais engraçadas eram as que iam a blocos de índio, pois estas queriam o cabelo alisado e de franja.

Eu concordava com elas, naquela época, afinal carnaval era fantasia e eu não ia querer sair de mim mesma, então eu também sairia de índia, se pudesse. Joanete era uma dessas, ela queria o cabelo bem alisado para brincar no Apache do Tororó. Eu pedi várias vezes a Conceição pra alisar meu cabelo e fazer uma franja também, as mulheres riram e Conceição ficou mais irritada ainda e me mandou ir comprar fitas nas cores do pan-africanismo. Agora meu caro leitor, que cores são essas e como eu iria saber? Ela não me deu tempo de perguntar...

E como vocês já sabem, terei que explicar agora o que é Pan-africanismo. Vocês têm sorte de ter alguém como eu, que explico as coisas, pois na minha época não havia internet e eu aprendi apanhando, literalmente, sonhando, vendo na TV ou adivinhando.

O Pan-africanismo é uma ideologia que propõe a união de todos os povos da África como forma de potencializar a voz do continente no contexto internacional. Essa ideia se tornou bastante popular entre as elites africanas ao longo das lutas pela independência, na segunda metade do século XX. Eles propunham a unidade política de toda a África e o reagrupamento das diferentes etnias, inclusive entre nós da diáspora. Valorizavam as religiões ancestrais e defendiam o uso das línguas africanas que foram proibidas pelos europeus.

Essa ideologia foi desenvolvida principalmente pelos africanos na diáspora americana, particularmente William Du Bois e Marcus Garvey, entre outros, e posteriormente foi defendida por africanos como Kwame Nkrumah e no Brasil foi bastante divulgada por Abdias do Nascimento.

Você nem imaginava caro leitor, que na cabeça dessas mulheres negras houvesse tantas histórias hein! É coisa pra contar! Acho que elas também não sabiam, mas mesmo assim era o que elas queriam ser nos dias de carnaval. As cores são: o amarelo, verde, vermelho e o preto, cada uma com seus significados e estão representadas na maioria das bandeiras dos países africanos.

Agora lá estava eu em frente a tantas cores de fita para escolher as do pan-africanismo, então fui escolhendo as que mais gostava e Marinalva dando a opinião dela também. Eu queria cortar o cabelo, fazer uma franja bem bonita, pois na comunidade do Barro Vermelho só uma menina branca tinha franja, Alice, ela e as bonecas brancas é claro. Meu tio ouviu minha conversa e deu o maior apoio: “Corta a franja menina, vai ficar linda, invade o mundo de Alice!”

Bom, com o apoio da família fica bem mais fácil né? Mas ao chegar ao salão Cora estava se arrumando para sair e me levou com ela. Fomos à casa da ex-patroa, uma branca da Barra Avenida. Toda vez que ela me levava com ela eu já sabia que a mulher iria me perguntar o que eu queria ser quando crescesse. Porque será que os brancos se preocupam tanto com isso?

Dessa vez minha resposta estava pronta e definida, essa era mesmo uma boa pergunta por que me fez pensar realmente em crescer e ser alguém diferente, mas quem? Dona“B” fez a pergunta e eu respondi na lata: “Quero ser cientista louca”, minha tia se assustou, mas Dona “B” caiu na risada aos montes e disse: “Louca tudo bem, mas cientista que absurdo!”. Aí, meu caro leitor, Dona “B” conhecia Cora e não devia ter provocado, ela não admitia esse tipo de coisa, imagine a “B” me discriminando.

Cora tirou dos cachorros e disse: ”Porque ela não pode ser cientista? Melhor a senhora cuidar dos seus filhos ignorantes e do seu marido chifrudo, ela estuda, gosta de saber coisas e tem a tia dela aqui pra trabalhar pra gente como a senhora, só pra fazer dela uma cientista, é porque ela é negra? A senhora é racista e eu não venho mais aqui...e saiu batendo a porta e me esticando”.

Dona“B” foi atrás de Cora, pediu desculpas, que não era isso, nem aquilo. Enfim, voltei pra casa decidida a ser mesmo “cientista louca” e Cora ainda tentou me convencer a tirar o “louca” e a ser só “cientista”. Mas eu achava só“cientista” tão chato, bom mesmo é ser das loucas e inventar coisas que ninguém inventaria: remédios, máquinas, aparelhos, receitas... “Já imaginou tia eu poderia fazer a branca entortar a língua toda vez que me discriminasse?” E Cora dizia:”Ai só feitiço menina, só feitiço...”

Voltamos à comunidade e o furdunço continuava, agora porque comprei as cores erradas das fitas e Conceição estava me caçando... Como eu não sabia fui ao quarto e cortei o cabelo, finalmente teria minha franja, mas o cabelo!!!!

Não vou explicar a vocês o que acontece com nossos cabelos crespos, creio que vocês desconfiam e muitos já sabem, mas uma coisa com certeza que eles têm é identidade e eles não gostam de franja, logo de cara percebi que teria que dar um jeito pra abaixar o cabelo, pois a franja não se formou.

Cora chegou ao salão já contando a história da casa de Dona “B”, as mulheres riram e falavam que eu realmente levava jeito de “cientista louca”, mas louca mesmo, pois vivia tentando chocar ovo gelado, ressuscitar lagartixa, fazendo remédio de folha, criando caranguejo de coleira, cantando pra passarinho, dando água com açúcar a todo mundo. Nessa hora Maria Helena me olhou dos pés a cabeça, com seu exame de Gêge e definiu: “Cientista talvez, mas feiticeira com certeza e das boas!” Todas riram muito, menos Conceição.
 
Então pedi a Conceição, mais uma vez, pra alisar meu cabelo, “minha franja deu errado tia”, mas daí em diante não vi mais nada, alguém me sacudiu, me bateu, gritou comigo dizendo: “Você é louca, é louca? Quais as cores do pan-africanismo? E eu respondi: “Não tia, louca não, só quero ser cientista”.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

MÃE DAS ÁGUAS QUE TANTO CHORAMOS...


De repente Rosa entrou no salão chorando desesperada, sentou numa esteira de palha, que havia na cozinha e chorou de soluçar por muito tempo. Eu saí e fui pegar água com açúcar pra ela. Naquela época eu oferecia água com açúcar pra tudo, na minha perspectiva de criança aquele era um santo remédio. Meu pensamento divagou porque alguém antes já tinha me perguntado o que queria ser quando crescesse e respondi: “quero ser criança agora e depois cientista louca” (efeitos da televisão sobre minha mente), mas a presença de Rosa, desesperada, era uma oportunidade de testar meus conhecimentos de cura. Rosa bebeu a água, se acalmou e começou a falar, enquanto eu acariciava seu cabelo. Na verdade, parte do que ela dizia todas ali já sabiam.

 

Meu caro leitor, apesar do salão de sábado ser um momento de encontro dessas mulheres, as coisas que acontecem em comunidades como a do Barro Vermelho, tornam-se do conhecimento de todas. Não há segredos entre essas mulheres, há discrição, às vezes, e certas coisas elas não comentam, assim diante das crianças. Mas tudo que acontece afeta a todas, se uma adoece as outras sentem, se preocupam, se alguém está feliz também se sente e se festeja junto.


Elas sabiam que Rosa brigava muito com o marido, Sr. Juvenal. Isso acontecia geralmente quando ele bebia, mas tudo começou quando eles se conheceram. Juju era trabalhador da Empresa de Correios e Telégrafos, ele era carteiro. Um dia ao ver Rosa dançando em uma roda de samba no Rio Vermelho, ficou encantado com seu rebolado, sua beleza esguia e negra. Naquele momento ele pensou: ”Vou pegar essa preta e fazer muitos filhos nela”. Rosa tinha a cintura bem fina, os seios fartos e duros e uma bunda enorme. Juju avaliou que Rosa seria uma grande parideira, que além de lhe dar muitos prazeres na cama também lhe daria muitos filhos saudáveis.


Os dois namoraram, casaram e tudo foi muito bem no início, foi quando chegaram para morar no Barro Vermelho. Os colegas de trabalho elogiavam Rosa, sua beleza, e Juju se envaidecia. O tempo passou, mas Rosa não engravidou e um dia o chefe de Juju fez uma piada, pondo em cheque a masculinidade dele por não ter feito ainda um filho em Rosa. Isso foi o suficiente para ele ir para o bar, beber e ao chegar a casa cobrar aos berros este filho que Rosa não lhe dava.

 

Dizia que ela não prestava como mulher, que ele estava arrependido de ter se casado com ela, que ela não lhe servia, não lhe agradava, não lhe saciava e que sexualmente não mais lhe interessava. Rosa chorava baixinho não reagia, ela também se sentia culpada. As mulheres negras da Comunidade do Barro Vermelho ouviam de suas casas e também choravam com Rosa, ninguém se metia, mas todas ao seu modo tomavam suas providências.

 

Cora rezava um terço; Conceição foi à missa no Bonfim e naquela semana pediu ao Bom Jesus uma solução para o problema de Rosa; Joanete colocou o nome de Rosa nos pedidos de oração do Centro Espírita que ela frequentava; Joana fez um Ebó pra Iemanjá, orixá de Rosa; Cândida pediu ajuda a seu patrão que era médico e Maria Helena separou algumas folhas para Rosa pôr dentro de casa. Eu, como mulher negra, uma ialodê criança do Barro Vermelho, aprendi também a fazer minha parte, então corri até o canto na casa de Rosa, no local onde ficava a sacola de cartas de Juju e pus fogo em todas as cartas dele.

 

A briga logo acabou porque ele foi tentar apagar o fogo e bêbado caiu por cima da sacola de cartas. Foi um Deus nos acuda, mas Juju não teve nada, dormiu em seguida com a cara cheia de cachaça.


Essa era a rotina de Rosa, que com o passar do tempo foi ficando mais bonita e todos a admiravam, diziam que era porque ela não tinha parido, pois mulheres que têm muitos filhos ficam logo desfiguradas. A barriga, os seios, a cintura, as varizes, enfim, parir, naquele tempo, era sinônimo de ficar desfigurada. Mas, apesar de querer ter sido desfigurada, Rosa permanecia bonita, isso todos achavam menos Juju, que por sua vez deu pra trair Rosa com diversas mulheres que encontrava. Por conta disso, Rosa se desgostou e não mais quis se cuidar. Não fazia mais o cabelo, suas roupas eram sujas e rasgadas, andava toda desmazelada.

 

E Juju por sua vez bebia cada vez mais e nas brigas gritava que ela estava acabada, feia, derrubada e que não o atraia mais e para concluir, que nem um filho ela lhe dava. Esse era o drama de Rosa, mas naquele dia ela entrou no salão decidida a deixar de chorar e a mudar, resolveu trabalhar. Conseguiu roupas de ganho pra lavar e engomar, das famílias de brancos da cidade alta.

 

Um dia quando voltava para sua casa, bem em frente ao lugar onde morava, encontrou uma criança, de uma das mulheres de seu marido. A mãe a abandonou lhe deixou um bilhete e viajou. A criança era deficiente, tinha uma perna amputada e aquela foi a primeira das filhas adotadas de Rosa. Ela teve seis filhos adotados, mas que eram na verdade filhos e filhas de Juju com outras mulheres.


Daí em diante Rosa não mais chorava e quando Juju bebia e a gritaria começava, era ela que dizia que ele não prestava que estava acabado com seus filhos deixados, a cachaça o tinha desfigurado, na cama ele não a satisfazia e que bem merecia tomar um corno bem dado.


Foi nessa época que chegou à casa de Rosa uma menina, que não era deficiente nem filha de Juju, ela foi chamada de Marinalva. Rosa lhe deu esse nome porque foi na volta da festa de Iemanjá, depois de deixar um presente no mar, na Marina do Rio Vermelho, que ela foi encontrada. Marinalva veio num balaio, como aqueles que seguem nas ondas brancas de Janaina, perfumada e sorrindo. Negra como uma jabuticaba, pequena e muito pesada. Ninguém sabia quem era sua mãe, a menina ainda não falava. Juju continuou a beber, mas desde que a menina chegou ele não mais gritou, porque Marinalva chorava. Rosa se afeiçoou demais a Marinalva, procurou lhe registrar como filha e ela se tornou a sétima, a caçula de suas filhas adotadas.


Todo ano, no dia dois de fevereiro, Rosa comemora o aniversário de Marinalva, leva a menina ao terreiro, vai a praia agradecer pela filha que pediu e ganhou de Odôyá e faz suas orações.


As mulheres do Barro Vermelho também, porque sabem o que essa menina representa pra comunidade, então: Cora faz suas orações a Nossa Senhora; Conceição vai à missa na Igreja de Santana; Joanete vai ao Centro e acende velas pra Sereia; Joana faz um belo balaio e leva ao mar como um presente; Cândida briga com o patrão e destrói a medicina porque nada fez, Maria Helena contribui com o balaio enchendo ele de flores e eu, doei minhas bonecas brancas, coloquei todas no balaio, porque não preciso mais delas, nós já temos Marinalva.

 

Nesse dia, nas águas de Kayala, Rosa se banha e festeja o dia inteiro. Marinalva é de Béssem e de vez em quando ela desaparece, seja na praia, em casa, ou na rua brincando. Todo mundo já sabe que depois ela volta e chega sempre como um presente, mais linda, perfumada, feliz e faz é festa no juízo da gente.


Odôyá!

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A HISTÓRIA DAS NOSSAS ÁRVORES GENEALÓGICAS


Rebanho de sacanas! Bom mesmo é buscar ser feliz e só isso deveria bastar, os pensamentos de Madalena eram estes naquele início de ano em sua comunidade. Ela ganhou presentes de natal como poucas pessoas da rua e sua preocupação não incluía o peso do comércio nas demandas natalinas. Madalena morava na comunidade do Barro Vermelho, ela era uma das poucas crianças negras com pai dentro de casa.

O pai de Madalena era alfaiate, um homem bonito digno, sempre bem vestido. Andava rotineiramente com uma calça de linho bem cortada e bem engomada, com uma boina na cabeça, óculos, uma fita métrica no pescoço e uma agulha na boca. Seu atelier ficava no Pelourinho e para lá seguiam os homens de dinheiro da cidade alta em busca do seu corte preciso. Ele se chamava Bionor e costurava desde pequeno, aprendeu o ofício com o pai.

Sr. Bionor era um homem respeitado na comunidade, pois vivia para a família, o candomblé e seu trabalho. Eles tinham cinco filhos, quatro meninos e Madalena a caçula. Jorge era o mais velho e ajudava o pai no ofício de alfaiate além de aprender saxofone na filarmônica da igreja, Osvaldo e Antonio Carlos eram mabaços, um jogava capoeira e o outro queria ser cabelereiro. Os mabaços e Madalena eram nossos companheiros de brincadeiras.

Para nós, crianças sem pai, aquela era uma família estranha, na hora do almoço eles corriam para ir almoçar em casa, pois o pai queria todos na mesa, a noite alguns iam a igreja com a mãe e nos finais de semana de obrigação, todos iam ao terreiro. Sr. Bionor era Ogã de Oxumaré da casa de Joana, os meninos já estavam aprendendo a tocar como alabês e isso enchia de orgulho esse pai. Mas o mais estranho era Madalena toda dengosa e enfeitada, como um bibelô,  nós achávamos ela muito chata, por tudo chorava e corria pra casa, então colocamos um apelido nela: Boca de Afôfô, porque ela vivia inventando histórias...

Talvez o leitor não compreenda o significado desta situação, pois para muitas famílias, durante muito tempo e mesmo em algumas culturas, a presença paterna é condição inclusive para ser considerada “família”, mas isso não se aplica às famílias negras de Salvador. Isso não se aplicava às famílias negras de comunidades como a do Barro Vermelho, onde ter pai dentro de casa era uma vaidade, quase uma superstição.

Essa era a discussão das mulheres no salão de beleza de Conceição numa tarde quente de sábado. Algumas até consideravam que ter um homem dentro de casa atrapalhava, não significava necessariamente ter um companheiro, um pai e davam exemplo de certos “homens” e ao falarem sobre esse tipo de homem elas entortavam a boca em diferentes posições e todas compreendiam. Então como poderia ser considerada uma “família”? Outras comentavam que isso não importava, pois essa consideração pode realmente variar e derivar em muitas configurações diferentes de família.

Então “família” era aquela que você considerava como família, mas sem dúvida a ausência dos homens mesmo quando estão presentes era uma das questões duras que um dia teríamos que enfrentar. Afinal a maioria das famílias era chefiada exclusivamente por mulheres, mas tiveram a participação dos homens no momento de conceberem os filhos, logo depois os homens partiam sem nenhuma responsabilidade sobre tais crianças e ninguém sabia por que eles faziam isso.

Para estas mulheres havia ali um problema, que desembocava na violência presente na vida dos jovens negros, pois os meninos acreditavam que a responsabilidade por suas famílias agora era deles e numa sociedade machista, cedo partiam para uma vida arriscada na busca de se mostrarem homens para suas comunidades, tinham que passar por processos de iniciação cada vez mais cedo e mais complexos, a fim de serem considerados adultos e capazes de manter a família que quisessem.

Neste ponto, fiquei pensando no peso dessa situação nas nossas trajetórias de vida. Lembrei-me de uma conversa que tive com o professor John Thornton, em Boston, quando ele me mostrou a árvore genealógica de sua família. Uma enorme árvore com galhos espalhados pelo mundo. Sua origem era europeia, Suíça e Irlandesa, os Thornton foram fundadores dos EUA. Muitos fugiram da Europa, segundo professor John, por conta do racismo e da intolerância religiosa, pois eles pertenciam a um segmento religioso bastante perseguido na Suíça e seu grupo étnico também era bastante perseguido na Irlanda. Tudo isso dava pra contar só de ver sua árvore.

Uma árvore traduzia vários significados e histórias de vida que se desencadearam em novas e variadas perspectivas de famílias. O professor John, por exemplo, estava agora casado com Linda, uma mulher negra caribenha e tinham como filhas duas meninas negras, afro americanas. Ele me falou também das várias situações de racismo enfrentadas por ele como homem branco, que tais situações geralmente se davam quando ele estava na companhia de pessoas negras: suas filhas, sua esposa, seus amigos e mesmo seus alunos negros.

Quando andava sozinho pelos lugares ele nunca foi abordado, nunca se sentiu vistoriado, mas na companhia dos negros muitas vezes foi abordado de forma discriminatória, então ele compreendia o racismo e imaginava quão difícil para os negros era viver numa sociedade racista e ele como homem branco também sabia o que sua pele lhe proporcionava de privilégios dentro dessa mesma sociedade.

Mas, sua árvore me fez refletir e pensar em nossas árvores genealógicas. Achei fantástica a ideia de como poderíamos reconstruí-las? Que importância teria para nós, negros e negras da diáspora, a reconstrução destas árvores? O que nos seria revelado ao final desta construção? Que outras histórias tais árvores contariam ao nosso povo? Creio que este seria um trabalho histórico e terapêutico no sentido de nos fazer resgatar nossas identidades e de nos vermos como parte da natureza, árvores que somos.

Mas, a verdade é que apresentaram para nós, negros da diáspora, outra árvore, aquela do esquecimento no Senegal, no Porto de Goré. Antes de deixar o porto de Ouidah (na atual República do Benin, África), os negros escravizados eram levados à Árvore do Esquecimento – plantada pelo rei Agadja em 1727. Depois de nove voltas dadas pelos homens – as mulheres davam sete – origens, identidade cultural, lembranças de suas moradas e de suas localizações geográficas perdiam-se no limbo.

A memória era reconhecida pelos mercadores de escravos como uma poderosa arma de resistência. O poder da Árvore só pôde ser questionado por um único motivo: a sobrevivência da raiz identitária africana na diáspora.

Era preciso simbolicamente, esquecer quem era e assumir uma nova identidade, vazia de lembranças de suas histórias de vida. A lembrança geralmente provocava depressão na população escravizada, tal doença eles chamavam de “Banzo”, e muitos negros morreram dessa doença.

Talvez por isso nos fosse contada uma história vazia de nós mesmos, uma história vazia de brilhantes trajetórias de heróis e heroínas negras vitoriosas ou vencidas, nos contaram uma história de mão única que nunca fez sentido e que agora temos a tarefa de reconstruir.

Entretanto, nem tudo foi perdido, pois, dar voltas em uma árvore não foi suficiente para esquecermos quem somos, aliás, isso começou a ser resolvido quando três mulheres africanas chegaram aqui e reorganizaram meticulosamente as histórias de vida do seu povo. O trabalho terapêutico foi duro: cantaram canções, reelaboraram unguentos, banhos, beberagens, curas, aromas e devolveram para nossas bocas as palavras engolidas, nos contaram as histórias esquecidas, preencheram nossos sonhos com outras aventuras e refizeram nossas árvores genealógicas perdidas. Replantaram nosso universo de inúmeras árvores.

Através delas conhecemos nosso passado de glórias e de infortúnios como todo povo. Conhecemos nossos reinados devastados, príncipes, princesas, reis, rainhas, fortunas em búzios, especiarias, valores, tecidos e ouro. Soubemos das receitas de inúmeros feitiços, conhecimentos, saberes, práticas e habilidades, reaprendemos nossas comidas, músicas festejos e alegrias. Devolveram o sorriso que já não mais existia, cuidaram do “Banzo” com o único remédio possível que tinha: o amor.

Mas, o principal que elas fizeram, sabendo muito bem o que estavam fazendo, foi nos reerguer como povo negro na diáspora, civilizando-nos e preenchendo de fé o nosso desejo de liberdade. Restabeleceram um mundo retirado das cinzas do racismo, povoaram nossa memória com o imaginário de antigos reinados africanos daquela época até os dias de hoje, sem dúvida uma terapia poderosa, sem bulas, prescrições, nem receitas, um modelo negro de promover saúde, sem deixar uma linha escrita ou uma árvore desenhada, replantaram florestas.

Elas devolveram nossas almas de modo que a cada toque daquela música, a cada aroma daquelas folhas, unguentos, feitiços, a cada sabor e cheiro de suas comidas, a cada movimento daquela dança no ritmo de suas músicas o mundo perdido retorna mais vivo do que nunca e nossas árvores vão sendo ritualmente refeitas, vemos e sabemos por exemplo, que pertencemos a família do rei de Oyó, Xangô era seu nome.

Ele era um rei poderoso que teve muitas mulheres e conquistou muitas terras, inúmeras histórias nos foram contadas sobre ele. Também sobre outros reis como Ogum, que guerreou e venceu todas as batalhas ao lado de seu irmão Oxóssi. Suas histórias nos falavam também do protagonismo das mulheres negras, bravas guerreiras, como Oyá que acompanhou seus maridos e lutou nas guerras, ou Oxum que através do feitiço venceu muitos exércitos e mesmo sobre Iemanjá, que naufragou tantos navios e consolou tantos dos nossos, aqueles que preferiram morrer em suas águas a se tornarem escravos de outros povos.

Isso tudo Madalena sabia, por isso não acreditava que a violência fosse capaz de desfazer sua família, ou de levar seus irmãos, ela sabia coisas que outras crianças como nós ainda não entendíamos, por isso não se importava com a inveja que tínhamos do seu pai.

Um dia Madalena nos contou uma dessas histórias e foi mágico, percebemos e aprendemos que nós também tínhamos pai, ninguém neste universo recriado por ela viveria sem essa “família”, eu aprendi que meu pai era Ogum, que ele foi um grande general, aprendi que ele vivia dentro de mim e me conduzia por todos os caminhos por onde já passei, passo e passarei.

“Famílias chefiadas exclusivamente por mulheres” são assim chamadas nossas famílias, a das crianças do Barro Vermelho, mal sabem eles quantos príncipes, reis e generais dividem essa tarefa com essas mulheres, mal sabem eles que quando se constrói uma floresta genealógica dessas, dificilmente sucumbimos.

Mas, queria agora poder falar com Madalena e perguntar a ela sobre que fetiço fazer para sobrevivermos em uma sociedade que mata diariamente, sem piedade, nossas jovens árvores e destrói velhas bibliotecas?