sábado, 14 de setembro de 2013

A História de nossas lágrimas

Acho que havia algo de errado com aquela mulher preta...
Andando, correndo pela rua alagada, pulando poças de lama, eu fugia pelo mundo a fora e meus pensamentos não saiam dela. Como pode tratar tão bem àquelas pessoas brancas, que nem são seus filhos e ser tão pouco carinhosa com seus próprios filhos pretos?
 
Ela se chamava Glória e trabalhava como doméstica na casa de uma família da cidade alta, já por muitos anos. Tinha quatro filhos e criava as crianças sozinha.
 
Trabalhava como doméstica e lavadeira nos finais de semana, de vez em quando fazia também faxina em algumas casas chiques do centro. Seus filhos tinham doze, dez e oito anos. Lindas crianças, negras como a noite, abandonadas pelo pai, como a maioria das crianças da Rua do Barro Vermelho.
 
As mães pensavam que os homens não nos faziam falta, só a elas como mulheres, elas sim, podiam chorar e sofrer por eles, não nós. Estavam enganadas, mas não nos consultavam e não podíamos dizer nada, e, ai da criança que reclamasse ou chorasse clamando pelo pai... Essa estava fadada a sofrer bem mais castigos que as outras, por fazê-las lembrar suas faltas.
 
A filha mais velha de Glória chamava-se Margarida e já estava trabalhando como babá na casa de uma família branca, por isso a casa de Glória ficava entregue nas mãos de Helena sua filha do meio, que tomava conta dos irmãos menores Antonio e Augusto, os mabaços.
 
Quando Glória chegava do trabalho cobrava de um tudo de Helena, queria ver tudo arrumado, limpo, deveres de casa feitos, e a menina só tinha dez anos. Brigava, falava por horas das coisas mal feitas e muitas vezes não deixava Helena ir brincar na rua, só por castigo e Helena nem chorava.
 
Na casa dos brancos, Glória não era assim, tinha palavras doces para as crianças e “sim senhora” pros patrões. Cuidava das crianças, contando historinhas, cantando cantigas para ninar seus sonhos, lavava suas roupinhas, corpo branquinho, cabelo loirinho, ria de suas histórias, consolava seus medos, fazia pirão de caldo para amolecer suas comidas, esperava que dormissem para sair, cheirava suas peles, cuidava de seus machucados com bálsamos por ela mesmo preparados e quando adoeciam não saia de seu lado.
 
Dona Glória fazia o cabelo também com Conceição, sempre que lhe sobrava tempo. As mulheres achavam que ela era um exemplo, por criar seus filhos assim na corda curta, sem sair, sem brincar, sem correr, sem cair e sem chorar.
 
Aliás, chorar era um problema para as crianças negras, quando isso acontecia mandavam calar, entupir, engolir, gargalhar, não havia lugar para lágrimas, fraquezas, consolos, ou demonstrações de medo, fragilidades, sonhos, não para nós crianças do Barro Vermelho. As mulheres punham o dedo na boca, olhavam sérias e diziam quase sussurando: calem-se agora!
 
Um dia Dona Glória nos levou na casa de sua patroa, era aniversário de uma das crianças brancas e Dona B convidou os filhos da empregada. Foram muitas recomendações para ter cuidado com o comportamento e ai de nós se algo saísse errado. Lá observamos como Dona Glória era com eles, tão meiga e delicada, simpática e cuidadosa.
 
Em casa, Helena, sua filha, não se conformava, brigou com a mãe e gritou que não era sua escrava, pois nem como empregada era tratada, ela queria saber por que sua mãe não lhe amava?
 
Dona Glória chorou e dessa vez desabafou, dizendo pra filha que a amava muito, mas acreditava que dessa forma dura, também lhe protegia e cuidava. Endurecia, porque assim mais cedo ela amadureceria, pois para ela o mundo das mulheres negras não era o mesmo das meninas brancas.
 
Dona Glória sabia que não teríamos quem nos protegesse se caíssemos, quem nos consolasse se chorássemos, quem nos amparasse se sentíssemos medo. Ela aprendeu assim a ser forte, não demonstrar fragilidade ou carinho, essa era para ela a forma correta de educar uma criança negra e de amar.
 
Por conta disso os meninos eram tratados como homens e as meninas como senhoras, desde muito cedo. Brincar era perda de tempo e cedo aprendíamos a resolver nossos problemas sem ajuda, sozinhas.
 
Chorar era demonstrar a falha do sistema, lágrimas não eram bem vindas, tínhamos que sufocar, engolir, entupir, não reclamar.
 
Helena entendeu, mas não aceitou, enlouqueceu, queria ter o carinho de sua mãe, sentia-se roubada pelas crianças brancas, então deu pra fugir de casa e deixar seus irmãos sozinhos. Corria pela rua, pela feira, mercados, ia às igrejas pedir aos deuses consolo para suas mágoas.
 
Um dia Helena chegou ao terreiro de Joana, calada, cismada, rasgada. Negra, mais negra que nunca, com seu cabelo desgrenhado, com fome, frio, o olhar perdido parado. Fazia muito tempo que ela fugiu, muito tempo que ninguém mais tinha visto a menina, nem sua mãe sabia do seu paradeiro.
 
Então, Mãe Joana a convidou pra entrar, era festa de Ogum e no toque do adarrum Helena caiu e rodou, sorriu, dançou, cantou e nos braços da Iyalorixá, Helena finalmente chorou.

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