De repente Rosa entrou no salão chorando desesperada, sentou numa esteira de palha, que havia na cozinha e chorou de soluçar por muito tempo. Eu saí e fui pegar água com açúcar pra ela. Naquela época eu oferecia água com açúcar pra tudo, na minha perspectiva de criança aquele era um santo remédio. Meu pensamento divagou porque alguém antes já tinha me perguntado o que queria ser quando crescesse e respondi: “quero ser criança agora e depois cientista louca” (efeitos da televisão sobre minha mente), mas a presença de Rosa, desesperada, era uma oportunidade de testar meus conhecimentos de cura. Rosa bebeu a água, se acalmou e começou a falar, enquanto eu acariciava seu cabelo. Na verdade, parte do que ela dizia todas ali já sabiam.
Meu caro leitor, apesar do salão de sábado ser um momento de encontro dessas mulheres, as coisas que acontecem em comunidades como a do Barro Vermelho, tornam-se do conhecimento de todas. Não há segredos entre essas mulheres, há discrição, às vezes, e certas coisas elas não comentam, assim diante das crianças. Mas tudo que acontece afeta a todas, se uma adoece as outras sentem, se preocupam, se alguém está feliz também se sente e se festeja junto.
Elas sabiam que Rosa brigava muito com o marido, Sr. Juvenal. Isso acontecia geralmente quando ele bebia, mas tudo começou quando eles se conheceram. Juju era trabalhador da Empresa de Correios e Telégrafos, ele era carteiro. Um dia ao ver Rosa dançando em uma roda de samba no Rio Vermelho, ficou encantado com seu rebolado, sua beleza esguia e negra. Naquele momento ele pensou: ”Vou pegar essa preta e fazer muitos filhos nela”. Rosa tinha a cintura bem fina, os seios fartos e duros e uma bunda enorme. Juju avaliou que Rosa seria uma grande parideira, que além de lhe dar muitos prazeres na cama também lhe daria muitos filhos saudáveis.
Os dois namoraram, casaram e tudo foi muito bem no início, foi quando chegaram para morar no Barro Vermelho. Os colegas de trabalho elogiavam Rosa, sua beleza, e Juju se envaidecia. O tempo passou, mas Rosa não engravidou e um dia o chefe de Juju fez uma piada, pondo em cheque a masculinidade dele por não ter feito ainda um filho em Rosa. Isso foi o suficiente para ele ir para o bar, beber e ao chegar a casa cobrar aos berros este filho que Rosa não lhe dava.
Dizia que ela não prestava como mulher, que ele estava arrependido de ter se casado com ela, que ela não lhe servia, não lhe agradava, não lhe saciava e que sexualmente não mais lhe interessava. Rosa chorava baixinho não reagia, ela também se sentia culpada. As mulheres negras da Comunidade do Barro Vermelho ouviam de suas casas e também choravam com Rosa, ninguém se metia, mas todas ao seu modo tomavam suas providências.
Cora rezava um terço; Conceição foi à missa no Bonfim e naquela semana pediu ao Bom Jesus uma solução para o problema de Rosa; Joanete colocou o nome de Rosa nos pedidos de oração do Centro Espírita que ela frequentava; Joana fez um Ebó pra Iemanjá, orixá de Rosa; Cândida pediu ajuda a seu patrão que era médico e Maria Helena separou algumas folhas para Rosa pôr dentro de casa. Eu, como mulher negra, uma ialodê criança do Barro Vermelho, aprendi também a fazer minha parte, então corri até o canto na casa de Rosa, no local onde ficava a sacola de cartas de Juju e pus fogo em todas as cartas dele.
A briga logo acabou porque ele foi tentar apagar o fogo e bêbado caiu por cima da sacola de cartas. Foi um Deus nos acuda, mas Juju não teve nada, dormiu em seguida com a cara cheia de cachaça.
Essa era a rotina de Rosa, que com o passar do tempo foi ficando mais bonita e todos a admiravam, diziam que era porque ela não tinha parido, pois mulheres que têm muitos filhos ficam logo desfiguradas. A barriga, os seios, a cintura, as varizes, enfim, parir, naquele tempo, era sinônimo de ficar desfigurada. Mas, apesar de querer ter sido desfigurada, Rosa permanecia bonita, isso todos achavam menos Juju, que por sua vez deu pra trair Rosa com diversas mulheres que encontrava. Por conta disso, Rosa se desgostou e não mais quis se cuidar. Não fazia mais o cabelo, suas roupas eram sujas e rasgadas, andava toda desmazelada.
E Juju por sua vez bebia cada vez mais e nas brigas gritava que ela estava acabada, feia, derrubada e que não o atraia mais e para concluir, que nem um filho ela lhe dava. Esse era o drama de Rosa, mas naquele dia ela entrou no salão decidida a deixar de chorar e a mudar, resolveu trabalhar. Conseguiu roupas de ganho pra lavar e engomar, das famílias de brancos da cidade alta.
Um dia quando voltava para sua casa, bem em frente ao lugar onde morava, encontrou uma criança, de uma das mulheres de seu marido. A mãe a abandonou lhe deixou um bilhete e viajou. A criança era deficiente, tinha uma perna amputada e aquela foi a primeira das filhas adotadas de Rosa. Ela teve seis filhos adotados, mas que eram na verdade filhos e filhas de Juju com outras mulheres.
Daí em diante Rosa não mais chorava e quando Juju bebia e a gritaria começava, era ela que dizia que ele não prestava que estava acabado com seus filhos deixados, a cachaça o tinha desfigurado, na cama ele não a satisfazia e que bem merecia tomar um corno bem dado.
Foi nessa época que chegou à casa de Rosa uma menina, que não era deficiente nem filha de Juju, ela foi chamada de Marinalva. Rosa lhe deu esse nome porque foi na volta da festa de Iemanjá, depois de deixar um presente no mar, na Marina do Rio Vermelho, que ela foi encontrada. Marinalva veio num balaio, como aqueles que seguem nas ondas brancas de Janaina, perfumada e sorrindo. Negra como uma jabuticaba, pequena e muito pesada. Ninguém sabia quem era sua mãe, a menina ainda não falava. Juju continuou a beber, mas desde que a menina chegou ele não mais gritou, porque Marinalva chorava. Rosa se afeiçoou demais a Marinalva, procurou lhe registrar como filha e ela se tornou a sétima, a caçula de suas filhas adotadas.
Todo ano, no dia dois de fevereiro, Rosa comemora o aniversário de Marinalva, leva a menina ao terreiro, vai a praia agradecer pela filha que pediu e ganhou de Odôyá e faz suas orações.
As mulheres do Barro Vermelho também, porque sabem o que essa menina representa pra comunidade, então: Cora faz suas orações a Nossa Senhora; Conceição vai à missa na Igreja de Santana; Joanete vai ao Centro e acende velas pra Sereia; Joana faz um belo balaio e leva ao mar como um presente; Cândida briga com o patrão e destrói a medicina porque nada fez, Maria Helena contribui com o balaio enchendo ele de flores e eu, doei minhas bonecas brancas, coloquei todas no balaio, porque não preciso mais delas, nós já temos Marinalva.
Nesse dia, nas águas de Kayala, Rosa se banha e festeja o dia inteiro. Marinalva é de Béssem e de vez em quando ela desaparece, seja na praia, em casa, ou na rua brincando. Todo mundo já sabe que depois ela volta e chega sempre como um presente, mais linda, perfumada, feliz e faz é festa no juízo da gente.
Odôyá!
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