A vida dos brancos é diferente da vida das
famílias negras, em muitas coisas, em outras são muito parecidas, muitas vezes
não nos conhecemos e, portanto, não sabemos em que diferimos ou em que nos parecemos.
Arbitrariamente acreditamos que os brancos têm uma vida melhor, que
compartilham ideias comuns, alguns pensam que eles se reúnem para tramar contra
os negros, que aproveitam melhor a vida e que provam, comem e saboreiam as
melhores coisas do mundo só por serem brancos.
Acredito que muitas dessas coisas realmente acontecem,
ou que pelo menos, muitos assim agem e fazem acontecer, daí não ser esse um
sentimento arbitrário. Nós, pessoas negras trazemos em nossos corpos/pele e
espirito, histórias e marcas dessa relação covarde, maléfica e muitas vezes
determinante em nossa condição de vida. Experiências que ouvimos contar,
presenciamos e até passamos e que nos tornam brancos e negros seres quase
intocáveis.
Por isso os brancos deveriam entender quando
alguém que mora em uma comunidade majoritariamente negra, como a do Barro
Vermelho, que vive e se relaciona com as coisas comuns que acontecem às pessoas
negras dessa comunidade, compartilham os mesmos sonhos e projetos de superação,
de luta pela sobrevivência diária, de fé em divindades, saberes reinventados
para driblar as armadilhas impostas pelas relações desiguais, para vencer a
ausência de políticas públicas.
E mesmo que terminam por compartilhar
misérias, infortúnios e vitórias, deveriam compreender como tais pessoas
dividem um universo próprio, simbólico, com linguagens para além das barreiras
da língua, encruzilhadas onde nos encontramos para entoar canções que dizem
respeito a nossos sentimentos mais profundos, nossa “arte”, música, dança, literatura,
nossas expressões culturais, representam de diferentes formas nossas histórias
e a história dessa relação, são armas contra a discriminação e para a superação
imaginária e factual das desigualdades.
De tal modo que quando nos colocamos diante dessas
artes, as interpretações são diversas, as leituras, são múltiplas, mas de uma
coisa sabemos: não há folclore em nenhuma delas.
É impressionante como os brancos se dedicam
em minimizar essa produção cultural foclorizando-a para servir de produto de
exportação, ou para comercializá-la. Outras vezes, na maioria das vezes, tratam
de certo modo que transformam aquela produção em algo que lhe sirva de abrigo,
renomeando, se apropriando dessa arte como de sua criação e ai investindo e
capitalizando-a para obterem, como sempre, lucro e mais valia da produção
negra.
Acontece que nós negros também nos
apropriamos de muita coisa da cultura “branca” reinterpretando e
ressiginificando para nossa visão de mundo, a diferença é que isso não gera
para nós um valor a mais, lucro, ou seja, verdadeiramente, não nos apropriamos
de seus produtos e sim de suas sobras, daquilo que não lhes serve mais, ou que
no final acabam por dar lucro a eles mesmos, pois não perdem nada com isso.
Pensando assim Conceição manteve-se quase
calada naquele sábado. Enquanto fazia o cabelo de algumas mulheres, ela só cantava.
O feijão estava no fogo e o cheiro da feijoada se misturava ao de cabelo quente,
o dia também estava quente e ela gostaria de estar na praia ao lado de uma
cerveja bem gelada.
Conceição imaginava que a cerveja era um
produto criado pelos brancos, era de origem alemã, então ela pensava que essa
foi uma boa criação, uma bebida que se adaptava tão bem ao calor dos trópicos,
que não era muito cara, de modo que muitas pessoas poderiam ter acesso a dita
cuja. Uma cerveja bem gelada sempre caía bem em dias como aquele, o problema é
que muitos homens negros gastavam todo seu salário no consumo desta e de outras
bebidas alcoólicas e isso invariavelmente resultava em conflitos nas famílias
negras, pois esse era um gasto que muitas não poderiam ter.
Mas como viver essa realidade sem uma droga?
Ou melhor, como enfrentar um dia atrás do outro sem uma alegria artificial por
alguns momentos, fornecida por algo além, algo saboroso, inebriante, que lhe
enchia de coragem, sonhos, ilusões? Naquele momento Conceição compreendeu os
homens negros e ai ela cantou outra música. Quando cantava sempre tinha um
significado, suas canções eram recados, mensagens pra quem entendia seus
pensamentos e seu coração.
Quando estava triste ela cantava músicas
tristes, sua entonação era quase um choro, um lamento, nesse momento ela
cantava boleros, Cartola, Pixinguinha, Nelson, Angela Maria. Quando saudosa ela
cantava Gonzagão, forrós, Marinês e sua Gente, Dominguinhos. Quando feliz ela
cantava sambas Noel, Elza, Dorival cantava e muitas vezes dançava com o ferro de
cabelo na mão. Gosto de me lembrar dela assim, porque nesse momento ela me
tirava pra dançar, rodopiava e me largava na sala e dizia: samba neguinha! E eu
inventava minha dança e todas riam de meus passos desengonçados.
Assim nos socializamos nas comunidades
negras, sempre ao lado de nossas mais velhas. Quando recebia o primeiro
pagamento me mandava ir correndo comprar uma cerveja, bem gelada e todas
bebiam, cantavam e contavam seus casos.
Dona Ondina estava preocupada com o caso de
seu filho menor o Dirceu, ele estava com uma coceira que não passava com nada,
depois de amanhecer em frente ao posto médico ela conseguiu uma consulta e
descobriu que o menino tinha “Bicho Geográfico”, coisa que se pega em terreno
onde tenha outros bichos como gato, cachorro, coisa de menino que brinca na
terra. Todas ficaram assustadas, pois onde mais suas crianças iriam brincar? Teriam
que aprender a conviver com o Bicho Geográfico, quem sabe assim aprenderiam
geografia, mas era preciso tratar da tal enfermidade e foi o que Dona Ondina
ensinou a todas.
Dona Arminda começou a falar dos seus patrões
os “B” da cidade alta, esse sem dúvida era um assunto que todas gostavam, pois
compartilhavam experiências comuns. Arminda também era lavadeira e você não tem
ideia, meu caro leitor, da ciência que era preciso ter para lavar as roupas dos
brancos antes da máquina de lavar. Nessa época a máquina de lavar eram elas, as
mulheres negras do Barro Vermelho. Arminda contava que as roupas vinham muito
fedorentas, pois ficavam guardadas, misturadas, inclusive com toalhinhas de
menstruação das mulheres, pois naquele tempo não havia absorventes.
As lavadeiras lavavam tudo, desde pano de
chão, de prato, a roupas das mais delicadas e intimas. As toalhas de menstruação
eram fervidas com ervas aromáticas e alvejantes naturais que as lavadeiras conheciam,
as camisas de linho também eram alvejadas com outras ervas, anis, alfazemas,
muitas roupas brancas ficavam quarando ao sol e depois elas levavam para o rio
e enxaguavam com bastante água corrente. Depois de todo esse trabalho vinha à
fase de engomar a roupa com goma feita bem fininha, daí colocavam pra secar
para só depois passar o ferro que era a brasa, pesado e muito quente. Ainda bem
que dona Arminda tinha os braços grossos e fortes e suas filhas ajudavam a
engomar, os meninos iam entregar as trouxas. Ela tinha quase uma lavanderia em
casa.
Nesse momento Conceição cantava Clementina “Ensaboa
mulata ensaboa...tô ensaboando” e elas brindavam com cerveja. Cora contava das
suas idas e vindas nas casas da cidade alta em minha companhia. E eu repassava
minhas experiências nas casas dos brancos para as demais crianças do Barro
Vermelho, eram como histórias, as crianças queriam saber o que os brancos
faziam para ter aqueles cabelos lisinhos? Ou como fazer para ter tantos
brinquedos, o que eles comiam, bebiam ou faziam pra se divertir?
Sim meu caro leitor, aprendíamos desde cedo a
diferenciar a vida dos brancos de nossas vidas, aprendíamos que erámos
intocáveis, e eu relatava de forma segura que:
“Eles comem comida fraca, arrozinho,
macarrão, poucos comem feijão, a carne que eles comem é sempre molinha, nunca
comem carne com osso. O peixe quase não tem espinha e a galinha sempre é de
granja, nunca de quintal como a nossa.” Eles não comem miúdos, charque, café
preto, sempre tem leite e eles comem diariamente queijo, coisa que nós criança
do Barro Vermelho só comíamos no natal, quando minha tia fazia um caixa que ela
pagava o ano inteiro para comermos um queijo cuia no final do ano, com um
prazer inenarrável.
“Para cuidar do cabelo elas têm uma
infinidade de shampoos, cremes e loções e não precisam passar pelo ferro
quente, ele é lisinho assim naturalmente, lavam esse cabelo quase todo dia, mas
não adianta muito, pois sempre estão com piolho e minha tia me manda tomar
cuidado e não encostar minha cabeça na delas, aliás não posso encostar muita
coisa nelas: minha mão, meu pé, meu corpo, somos intocáveis, apenas, olho,
reparo e sinto. Um dia uma delas me tocou, pegou minha mão e me levou pra
brincar com elas, foi um choque minha pele quente naquela pele fria. Olhei pra
minha tia e ia pedir ajuda pelo susto, mas ela balançou a cabeça
afirmativamente e me deixou ir com a menina.”
No seu quarto “cachinhos dourados” tinha
todos os brinquedos possíveis, parecia uma loja, mas o que mais chamou minha
atenção foi uma vitrola onde ela colocava discos e ouvíamos músicas: Noel, Cartola,
Gonzagão, Pixinguinha, Angela, Elza, ela só não tinha Clementina. Fiquei
estarrecida imaginando o que Conceição iria pensar daquilo e cantei, cantei,
dancei e tirei “cachinhos dourados” pra dançar, rodopiei com ela na sala e a soltei
gritando: dança neguinha!
Daí, não vi mais nada, foi só o choro da
menina que caiu no chão e Cora me pegando pelo braço e dizendo mais uma vez: eu
não te disse pra não tocar nela?
Éramos e ainda somos intocáveis.
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