terça-feira, 16 de agosto de 2011

Uma mulher, uma mãe e as águas que choramos...

 



Uma vida se configurava frente aos seus olhos através das revelações que se apresentavam nas situações vivenciadas por ela naquele ano. Quanto tempo ela percebeu que tinha passado até chegar a essa condição? Teria sido um tempo perdido, ou um tempo necessário de aprendizado, que se bem analisado deveria ser incorporado às suas experiências e aos futuros ensinamentos que por ventura viesse a repassar a outras pessoas?



De verdade, até ali ela não tinha respostas, logo imaginava que ainda teria que percorrer outros caminhos misteriosos de sua existência na resolução deste enigma. Esses caminhos pareciam às vezes não dar em nada, quando de repente as situações surgiam e ali diante do ocorrido tudo passava a fazer sentido. Outras vezes, o sentido era bem mais simples e rapidamente as coisas se tornavam auto-explicativas.



Querido(a) leitor(a), não quero lhe confundir com minhas confusões, mas escrever, para mim, na maioria das vezes é muito complicado não só por não saber se sou entendida, ou mal interpretada, mas por perceber que as palavras escritas nos colocam frente a um espelho e nos fazem penetrar em mundos que desconhecemos e não imaginamos em momento algum aonde podem nos levar, isso me excita e assusta com a mesma intensidade.



Eu, particularmente, não gosto de correr riscos, nem de me colocar frente ao abismo. Se estiver às cegas, prefiro dar um passo de cada vez e esperar meu coração desacelerar, nesse intervalo olho no entorno, bebo um pouco d’água, respiro, planejo e só então volto a caminhar. Mas esse meu sentido de sobrevivência muitas vezes me puxa o tapete e embora procure sempre cair com elegância, eu caio e me quebro toda, me machuco e choro. Certas vezes nem sei se consegui me erguer novamente, então permaneço lá e me deixe!



Em outros momentos somos provocadas a seguir um caminho que é bem mais nossa opinião e desejo do que, o que o fato em si nos oferece, e, na maioria das vezes, precisamos de um desfecho mágico que nos faça sentir poderosas diante da mesmice dos destinos trágicos a que nós todas estamos sujeitas. Por isso, penso que deve ser mais fácil escrever uma tragédia, pois a vida se encarrega de levar boa parte dos fatos a desfechos trágicos e toma pra si os créditos.



Não sei se saberei ser trágica o bastante, porque sou muito mais envolvida por histórias alegres e com finais felizes, como forma de compensar o peso da realidade, que já se escreve por si e é onde cada um pode completar o raciocínio no final de suas frases.



A história dessa mulher negra, em particular, é parte da história de todas nós e quanto mais falo dela, mais pessoas se identificam e se sentem narradas. Tanto é assim que dessa vez, eu nem vou nomeá-la e tenho certeza que você sabe de quem estou falando. Ela vive dentro de muita gente, ao mesmo tempo em que ainda vai nascer muitas vezes, ela já morreu demais também, mas caminha seguindo em busca de respostas sobre si e não desiste fácil.



Muitas vezes ela se enrola toda e precisa de ajuda para desfazer o novelo, outras vezes cochila na sala diante da novela. Nessas horas ela é doce, meiga e não nos assusta. Entretanto, na maioria das vezes, nós a perdemos de vista e a encontramos ali sentada, pronta para começar a falar e nos contar mais uma de suas histórias que nem sempre queremos ouvir.



Portanto leitor (a), não me faça perguntas nem me peça para parar agora, pois eu mal comecei. O que você pode fazer pra ajudar é me falar mais de você ou mesmo dar outra versão a um fato, pois isso ajuda quem escreve a ver em perspectiva. Isso porque, de onde estou, tenho uma visão que pode ser privilegiada, ou prejudicada, com o retorno da sua contribuição pitoresca, mas nunca mais será a mesma visão que tenho agora.



Não se importe com identidades, elas são múltiplas mesmo, por isso em alguns momentos emergem as que estão mais próximas e em outros momentos as que se aproximam com força. Mas essa mulher é extremamente forte, tanto que nem sei se quero falar dela, simplesmente porque eu não sei se suportarei, nem sei se você suportaria conhecê-la. Que dirá mirá-la!



Ela deixou de caminhar pelas ruas da cidade que sempre amou. Ela amava acordar cedo e sair para ir a lugares distantes da cidade, com a desculpa de que tinha que ir a uma missa lá em São Lázaro ou lá na Igreja de São João em Brotas. Eram desculpas para caminhar por sua cidade. Pois a cidade é dela, ela é sua propriedade e ao caminhá-la, a sente e percebe como pulsa, sofre e reage a soteropólis. Muitas vezes desconheceu-a, algumas vezes surpreendeu-a, mais recentemente assustou-a, pois sua cidade não era assim.



Agora se pergunta sobre o que fizeram com ela, onde estão suas árvores? Porque sepultaram seus rios? Dizem que agora irão transformá-la em uma cidade mais rápida, mas para chegar aonde? Seus filhos não precisam correr para serem escravos, mas precisam de árvores e rios para  serem libertos, senão quem irá socorrê-los diante de uma nova escravidão? As questões sobre a cidade a fazem ficar pensativa e se sentir impotente. Os lugares que tem percorrido ultimamente estão diferentes e lhe dizem: “Ali mãe, ficava a casa de tio Zé Pinto, lembra?”, ela franze a testa e tenta imaginar o cenário com a antiga casa no mesmo local daquele prédio... Por quê?



Nos momentos de cochilo ela sonha com o tempo em que foi uma mulher poderosa, comprava coisas no mercado, ia a Feira de São Joaquim e lá chegando jovens Iaôs se jogavam ao chão para tomar sua benção. Seus fregueses sabiam como agradá-la apresentando sempre os melhores obis, tecidos, animais, incensos e folhas. Ela gostava de percorrer a feira e depois sentar cansada na barraca de Zezinho do Quiabo, enquanto isso sua Ekedy continuava a fazer as compras. Ali na barraca ela ouvia inúmeros casos de outras mães-de-santo conhecidas e atualizava as notícias de gente que não via há bastante tempo.



Certa vez foi a uma festa num Candomblé em Dias D’Ávila, gostou demais do lugar, cheio de mato verde, água cristalina e a viagem até que não foi tão cansativa. Desejou ter um cantinho naquele vilarejo, mas suas obrigações não permitiam se afastar por muito tempo e teve que voltar.



Desejou ter uma família, um companheiro e filhos, mas os homens que se aproximaram dela não a amaram como mulher só a viam como mãe, pois ela tinha se tornado Iyalorixá muito cedo, seu marido era Xangô e seus filhos, todos aqueles que ela tinha iniciado: homens, mulheres, crianças, adês, idosos, sua família era muito extensa e diversa. Ela conhecia perfeitamente o caráter de cada filho e filha que tinha feito nascer para o Axé, mas não sabia o que era gerar, parir e amamentar um filho do seu ventre.



Inicialmente aquilo não foi um problema porque ela aceitava orgulhosamente a incumbência que os orixás trouxeram, mas com o tempo aquilo foi se tornando um desejo sublimado que de vez em quando doía profundamente, principalmente quando ficava sozinha em seu quarto, na cama. Com o tempo ela resolveu esse problema criando os filhos de outras mulheres, educando-os. Todos lhe tomavam a benção e realmente a tinham como mãe, mas ela não os carregou no colo, não ninou ou pôs pra dormir em seus braços...ah!



Andar pela cidade a permitia observar a vida de pessoas estranhas e imaginava estar em seus lugares, mães que arrastavam crianças, xingavam e queriam castigar meninas teimosas. Ela se chateava com pessoas que maltratavam crianças, pensava que estes eram privilegiados e não sabiam como educar, muitos até se mal diziam e praguejavam diante da sorte de ter um filho, “os ignorantes são pessoas de sorte”, pensava.



A cidade era um sentimento para ela, sua brisa forte, suas águas, seu cheiro úmido, seu ritmo tão cadenciado, ela não saberia viver em outro lugar. Outros lugares que visitou pareciam cartões-postais, não eram cidades de verdade, não eram Salvador. Aqui ela pertencia e se sentia parte das suas águas, matas, brisas, cheiros e de seus conflitos. Afinal o que era orixá?



Como filha de Oxum, ela aprendeu desde muito cedo a ver a cidade de uma forma única. Aprendeu a ser mãe e a guardar seus mistérios, pois muito do que sabia não poderia ser facilmente revelado, poucos suportariam.



Com o tempo ela se acostumou a seu destino de falar para ajudar os outros, de orientar as pessoas para que fossem felizes, de contribuir para o equilíbrio físico e espiritual de tanta gente, mesmo falando pouco. Mas os filhos não pareciam ter a mesma preocupação com ela. Será que isso se dava por não serem seus filhos biológicos? Essa era a questão que a atormentou por toda vida.



Ela teve alguns namorados, poucos, mas os que teve não tiveram coragem de tirá-la dali, muitos se aproximaram inclusive por estarem inebriados com o seu  poder, pelo desejo de usufruírem da sua companhia e de se apoderarem da sua força, mas quando isso acontecia os orixás a avisavam e ela logo percebia, então se afastava e permanecia sozinha. Mas seu desejo mais calado era de que um dia alguém a levasse e a fizesse desobedecer, sabia que certamente sofreria, mas saberia viver a loucura que os que amam vivenciam? Isso ela nunca saberia.



Agora ela está idosa e acha graça de coisas que ninguém ri, imagina cenários que ninguém vê, conversa com pessoas que ninguém escuta e responde perguntas que ninguém fez. Seus dias passam sem novidades e ela não sai mais para ver a cidade. As notícias sobre as mudanças chegam até sua casa e a fazem imaginar a tristeza em que o lugar aos poucos se transforma. Agora todos eles é que vêem lhe visitar e aproveitam pra lhe falar. Ela diz que as histórias chegam no seu tabuleiro, ela não precisa buscar!



Às vezes é Xangô que vem a seu quarto conversar e lhe fala das injustiças que tem tido que enfrentar. Outras vezes é Ogum que vem lhe visitar e lhe fala das guerras que teve que travar, das armas potentes que precisou usar e do valor da sua companhia a lhe guiar. Nessas horas ela é feliz, coça a cabeça, bate palmas e comemora como quem torce por um time que acabou de fazer um gol.



Nas noites Iemanjá chega entoa uma canção de ninar e a faz adormecer tranqüila, outras vezes é Nanã que acaricia sua face, cabelos e conversa baixinho no seu ouvido mandando recados pra seus filhos queridos. Semana passada foi Oxaguian que estava zangado falando do seu jeito mole, mas muito bravo, firme com seus mandados, pediu pra ela anotar e não esquecer de cuidar.



Ontem foi Oxumaré que veio como uma cobra mesmo, as pessoas da casa até se assustaram, correram, gritaram, mas ela ficou muito calma, entendeu o recado e conversou com a serpente, depois a levou até o matagal e a deixou seguir em frente.



Outro dia foi a vez de Irôco que sacudiu sua árvore, balançou e arrancou as raízes, para revelar que outra árvore estava renascendo, ela tomou aquilo também como um aviso, chamou sua filha mais velha e levou horas conversando com ela. Depois foram as crianças que deram pra fazer perguntas inoportunas e intrigantes deixando que ela ficasse preocupada com seus futuros, num mundo sem respostas.



Às vezes chegam todos de uma vez, ai ela se agita, pois não consegue ouvir direito, nessas horas ela grita pede silêncio e respeito tentando organizar o conflito. Nos dias de chuva e trovoada ela ouve Iansã feliz, dando suas gargalhadas e quando a chuva é fininha ela fica calma falando com voz de meninazinha, pois é Oxum a dona da sua cabeça, sua rainha, aquela que está sempre ao seu lado, a que nunca a deixou sozinha.



Certa vez foi Oxossi que passeou pelo seu quarto a cavalo, trotando e cantando desafinado, falou de suas caçadas e que na vida não iria deixar jamais lhe faltar nada. No mesmo dia veio Logunedé que lhe tomou a benção e adormeceu, ajoelhado a seus pés.



Falam que ela adoeceu, para os médicos são sintomas da degenerescência que a fazem inventar histórias grotescas e que não diz coisa com coisa, nem nada com nada. Dizem que isso é da idade, portanto se vivermos bastante teremos a oportunidade de ver o que ela vê, ouvir o que ouve e talvez saber dos segredos que sabe. São momentos das vidas de nossas mães, guardados só para aqueles privilegiados que tiverem a sorte de vê-las envelhecer.



Tem momentos em que ela me olha e espera ansiosa minha fala. Então eu lhe conto das lutas travadas e perdidas, das doenças vencidas, do meu corpo cansado, do sono sobressaltado, das viagens a lugares sem mares. Ela se assusta, pois sabe que sem mar eu não vivo, nem respiro, daí ela me abraça e fala “que bom minha filha que você voltou e vive em Salvador, pois com nosso mar ah! vai ser difícil acabar!”



Axé!



domingo, 24 de julho de 2011

"Uma Sobrevivente Malê entre os Iorubás"


Cada história por mim contada diz respeito a inúmeras conversas, sonhos, coisas que foram ouvidas e guardadas, coisas pelas quais passei e vivenciei, outras que apenas ouvi e guardei. Mas existem também aquelas que as pessoas contam com a recomendação de que sejam reveladas, porque querem que sejam escritas e divulgadas.

Algumas pessoas me dizem simplesmente: “vou te contar uma história pra você escrever”. Algumas falam assim porque sabem que venho pesquisando e escrevendo sobre temas que dizem respeito às mulheres negras, ao candomblé e as vivências do racismo.

Isso é interessante porque há uma disposição das pessoas, de um modo geral, e das mulheres negras particularmente, para que determinadas situações sejam registradas e para que suas experiências sirvam de reflexão para outras mulheres. Também reflete a importância que as pessoas conferem às coisas que são escritas e fixadas através de um texto. Revela ainda que muitas mulheres estejam lendo essas histórias e se identificando com muitas das situações que são contadas.

O problema é que isso carrega de maior compromisso quem escreve, pelo medo da história não ser bem compreendida, não ser bem relatada, ou mesmo de ser confundida com um caso real, datado, factual e não mais literal. A realidade é a inspiração, mas a linha condutora é a imaginação sonhadora que me permite brincar com os nomes das pessoas e com as possibilidades de diferentes desfechos.

Gosto de imaginar as situações que me são reveladas exatamente como me contam, por mais absurdas que pareçam. Eu ouço e gosto de ouvir, antes de qualquer coisa exercito meu ouvido e fico ávida por casos comuns, coisas do cotidiano, de gente próxima, presente na nossa memória e que têm prazer de se desvendar. Eu presto atenção a entonação e a emoção reveladas em cada trecho dos casos contados.

Muitas coisas que ouvi jamais contarei, são coisas que me foram ditas para serem guardadas e me servirem de aprendizado. Essas são revelações da confiança de muita gente em mim depositada e que eu gosto de saber que confiam em mim, essas eu não posso trair.

Mas a história de Graça ninguém sabe ao certo quando começa, pois quando ela apareceu já era uma mulher adulta, já trazia uma trajetória que a maioria não conhecia e ela não revelava.

Ela era uma mulher misteriosa, dura e muito criativa. As outras mulheres também não perguntavam quase nada da vida de Graça, pois achavam que aos poucos ela iria se revelar, outras achavam que ela era só mais uma mulher negra e pobre e que, portanto, não havia novidade ou mesmo, nada que a diferenciasse das demais e por isso ninguém se interessou por sua vida.

Graça guardava dentro dela muitas histórias que jamais seriam contadas se não houvesse alguém interessado nela. Mas ela também não queria causar interesse a alguém em especial, ela naquela altura da vida, queria apenas viver e ficar em paz. Em minha opinião, quando alguém aparece em silêncio e busca apenas ter paz é sinal de que já viveu muita coisa que quer esquecer, pois falar nos faz reviver e lembrar e isso Graça não estava disposta a fazer.

As outras mulheres não paravam de falar, da vida, dos amores, de casos de outras mulheres, dos homens, dos mistérios, mas Graça só observava, dela nada contava. Ouvia, refletia, mas se calava.

Ela era uma mulher inteligente, trabalhadora e bastante jeitosa nas artes. No terreiro era ela quem enfeitava todo o barracão para as festas, cada vez decorava de um jeito diferente. Fazia adereços, colocava flores, recortava bandeirolas, pintava desenhos. Em dias de festa ela trabalhava em silêncio, se dedicava e só sossegava quando tudo estava pronto.

Um dia me aproximei e me ofereci pra ajudar Graça a colar bandeirolas na festa de Xangô Ayrá. Ela foi me ensinando a refletir sobre a delicadeza do papel de seda, sobre a leveza que o vento deveria traduzir ao tocar cada bandeira, ao cenário que seria emoldurado por um trabalho bem feito e dedicado e acima de tudo que eu deveria refletir sobre minha vida e o que ela tangenciaria o mito de Xangô Ayrá, para melhor me integrar.

Então eu quis saber sobre ela, que significado dava aquele serviço, de onde ela veio e o que esperava daquela tarefa ao final da festa. Graça me disse que iria me contar só uma coisa e que daí em diante eu deduziria o restante.

Ela me disse que viveu no interior da Bahia, que foi criada num terreiro muito antigo, mas que as pessoas responsáveis pela casa já haviam morrido. Então, ela veio pra Salvador, trabalhar, estudar e se encontrar. Ela era Malê, mas como haviam poucas informações sobre seu povo, ela se aproximou daquela casa e por ali ficou. Ali as pessoas a receberam sem questionar, logo ela se integrou ao grupo, mas secretamente ela também tinha seu próprio culto.

Ser Malê era um grande mistério em Salvador, pois no passado a maioria tinha sido morta em revoltas na época da escravidão, outros retornaram a África mesmo na pós-abolição. Alguns que permaneceram se converteram a outras denominações religiosas e outras formas de devoção.

Os Malês eram negros islamizados e tinham um comportamento diferenciado dos demais. Eram constantemente rebeldes contra a condição de escravidão, porque tinham a crença que um Malê só deve se submeter ao seu Deus, preferindo muitas vezes a morte que viver como escravo de um branco.

Se tinha uma briga de rua, provavelmente um Malê estava envolvido; se alguém desafiasse uma autoridade um Malê seria suspeito; se por acaso uma revolução de repente começasse um Malê seria chamado e quando os estudantes faziam greve ou os motoristas paravam todo o trânsito um Malê era certamente o chefe do bando. E se um branco fosse confrontado por um preto, denunciado de racismo, julgado, preso e condenado, um Malê era o juiz deste sonho imaginado.

Graça como descendente deste povo, chegando a Salvador, logo se interessou pelas lutas do Movimento Negro e pelos direitos da população negra. Por isso inicialmente ela achava que o Candomblé era uma religião que não ajudava, por distrair seus adeptos sem fortalecê-los para o enfrentamento da realidade racista daquela cidade.

Então, Graça não espichava o cabelo, isso era contra sua beleza negra natural, usava roupas africanizadas para demonstrar suas origens e estudava as rebeliões e revoltas do povo negro buscando aumentar seus conhecimentos, para ajudar seu povo a elevar sua consciência racial.

Entretanto, quando chegou a Salvador foi o povo de terreiro quem a acolheu, lhe deu moradia, alimentação, sem cobrar nada de Graça. Daí ela ficou, nesse tempo observou que no candomblé se revive a realidade de reinados africanos dizimados e colonizados. Percebeu que aqui esses espaços foram sacralizados e preservados por amor a uma história que ninguém escreveu e que precisava ser preservada. Por resistência, através de uma memória que deu outro significado ao ser “negro” nessa sociedade.

Ela percebeu que não era só uma religião, mas sim uma re-leitura de mundo numa outra visão, que integrava todos os seres e nada ficava fora. Entendeu que a discriminação abalava os adeptos e por isso muitos não conseguiam assumir sua religiosidade.

Assim Graça mudou de idéia e passou a defender a religião dos orixás como mais uma expressão negra que o racismo discriminou. Ela era filha de Xangô Ayrá e como tal não admitia injustiça e lutava pela defesa dos direitos humanos através do combate a discriminação racial.

Ela contou que um dia passava pela porta daquela casa e de repente se arrepiou, ficou tonta e um vento forte a tomou. Ela passou mal e um homem negro levou-a e lhe ofereceu água. Ela bebeu, se acalmou, mas a cabeça continuou a doer. Então o homem lhe apresentou a Iyalorixá da casa que a recebeu, ofereceu-lhe um chá e depois que ela bebeu logo melhorou.

Em seguida Graça disse que ficou mais calma e adormeceu, quando acordou era noite e a festa de Xangô Ayrá estava agitada. Então ela levantou, foi até o barracão e lá encontrou tudo enfeitado, as músicas a tocar e o povo dançando no xirê. Graça entrou no salão e viu o teto girar com suas lindas bandeirolas, seu corpo levitou e um vendaval começou, foi então que Ayrá tomou seu ser e ela não viu mais nada.

Quando acordou era Gracinha de Ayrá, a Yaô mais nova de Xangô que guarda o Axé e o segredo dos Malês e zela pela justiça do povo Iorubá.



sábado, 16 de julho de 2011

“Ketu: a nação mais Odara, aos olhos dos Deuses e Deusas Iorubás"

Ela aprendeu desde cedo o valor da educação e o papel que uma boa formação teria em sua vida, afinal ouviu durante anos sua avó falando em seu ouvido, que não iria criar seus netos para serem serviçais de ninguém! Perdeu a mãe muito pequena e o pai vivia trabalhando em diferentes locais do estado, de obra, em obra. Sua avó foi quem a criou e mais seus seis irmãos, numa cidade do Recôncavo, interior da Bahia.

D. Carmelita era uma mulher baixa, de seios fartos, que trabalhava como lavadeira, fazia cocada, vendia ovos de quintal na feira e ainda por cima era parteira e rezadeira. Pelas mãos quentes e calejadas dela tinham passado a maioria das crianças daquela comunidade; na hora do parto ou nos momentos de febre, congestão, suspeita de "estoporamento" ou qualquer outro mal inusitado, que acometesse alguém do bairro, ou das cercanias, era ela quem socorria. Suas palavras ecoavam como profecias, por isso media bem o que dizer e falava pouco.

Quanto aos seus netos, eram seis crianças de diferentes filhos e filhas, de variadas idades e personalidades. Todos foram sendo deixados com ela à medida que seus filhos foram para a capital, trabalhar para as famílias dos brancos. Era uma mulher muito religiosa e fazia questão que os netos fossem as missas de domingo na capela em frente ao rio.

Mas, o que ela não aceitava eram injustiça e arrogância, ela era uma mulher de Nanã. Além de ir à igreja católica, se confessar e pedir paz de espírito a Deus, D. Carmelita era Mãe Pequena num terreiro Ketu, muito conhecido naquela cidade e se desdobrava nos seus afazeres de casa e do terreiro. Ela criava seus netos da mesma forma que foi criada, sem castigos, mas com muita conversa e explicações sérias. Muitas vezes ela nem falava e as crianças compreendiam perfeitamente o que ela queria dizer só com os olhos.

Ensinava seus netos a terem muito orgulho de pertencerem ao Candomblé, mas que também era preciso respeitar e conhecer as outras religiões, por isso eles iam à missa aos domingos, ver como os brancos se comportavam, em que eles acreditavam, do que tinham medo. Particularmente ela achava a religião católica muito triste, deprimente e durante as missas sempre cochilava. Mas, para sossegar seis crianças, sem pai nem mãe, era mais uma opção de espaço de aprendizado e talvez, quem sabe, se um deles não fosse seguir o Candomblé, ela achava que eles deveriam ter opções.

As crianças adoravam ouvir suas histórias e se sentavam ao seu redor na esteira, todas as noites depois do banho, atentas e em silêncio só para ouvi-las. Geralmente D. Carmelita misturava histórias de orixás com histórias de vida das pessoas que conheceu, para dar ensinamento através de exemplos aos seus jovens netos.

Muitas noites as crianças dormiam com fome, pois a avó não tinha condições financeiras de alimentá-los, aí a refeição noturna era geralmente sacrificada e quando um deles chorava D, Carmelita dizia: “Vá dormir logo, que o sono alimenta”. Nesses dias ela fazia chá de cidreira e todos bebiam antes de dormir. Se tivesse um único pão teria que ser dividido para todos e se não tivesse nada, também nada se dividiria e ninguém se queixava.

Mas no terreiro era diferente, lá não faltava comida e tudo também era dividido. As crianças gostavam de ficar no terreiro, embora fosse num local distante da escola e D. Carmelita não admitia que faltassem as aulas. A escola era pública e mantida também com a ajuda da igreja, no lugar havia uma fanfarra e as crianças aprendiam desde cedo a tocar instrumentos diferenciados para pertencerem ao grupo no futuro, exceto Vilma, pois ela não queria tocar, queria logo ser a “maestra”...

Vilma era a neta do meio de D. Carmelita, que desde pequena ajudava a avó e considerava que sua mãe velha estava mais do que certa em tudo que fazia. Muitas vezes enquanto a avó falava, ela observava o jeito, o tom, o olhar, o corpo, só para depois imitar. Era admiração misturada com amor e pobre de seus irmãos se respondesse ou desobedecesse, ela não admitia e ainda que eles fossem maiores, ela os perseguia, até que voltassem atrás e se desculpassem com D. Carmelita.

Ajudar a avó era o que ela mais gostava de fazer na vida, então ia ao rio lavar roupa pequenina ainda, segurando na saia da “voinha”; ia a feira vender ovos de quintal e a avó sempre lhe dava um ou dois escondido dos irmãos, mas Vilma fritava e dividia com todos e a avó a observava, com seu olhar de aprovação; ia ajudar quando uma criança nascia e buscava as folhas da reza quando alguém adoecia.

No Candomblé, ela ia vestida com sua saia desde pequenininha, suas roupas ela mesmo lavava e eram bem alvinhas, seu cabelo ela mesmo trançava e ajudava a trançar também o de suas irmãs menores, perguntava tudo a sua avó, pois sua palavra era a coisa mais séria que ela conhecia. Nas noites de festa cantava e dançava, imitava a avó em tudo que ela realizasse e a avó só acompanhava, com seu olhar de devoção, a tudo que o orixá fazia.

Não sabia o significado dos cânticos, não sabia o significado das palavras que proferia, mas adorava a idéia de estar falando outra língua que ninguém conhecia. Enquanto crescia estudava como sua avó queria, mas buscava saber nos livros as histórias do seu povo e não encontrava nada daquilo que sua avó dizia...

Sua avó dizia que elas, como todo povo da nação Ketu, descendiam dos Iorubás e para os Iorubás o Deus maior chamava-se Olorum, que pode ser chamado também de Olodumare. É um Deus que não aceita oferendas, pois tudo o que existe e pode ser ofertado já lhe pertence, na qualidade de criador de tudo o que existe, em todos os nove espaços do Orun, que é como é chamado o céu e o infinito para o povo Ketu.

Olorum criou o mundo, todas as águas e terras e todos os filhos das águas e do seio da terra. Criou plantas e animais de todas as cores e tamanhos. Até que ordenou que Oxalá criasse o homem e a mulher. Oxalá criou o homem e a mulher a partir do ferro e depois da madeira, mas ambos eram rígidos demais. Usou a pedra - era muito fria. Tentou a água, mas o ser não tomava forma definida. Tentou o fogo, mas a criatura se consumiu no próprio fogo. Fez um ser de ar que depois de pronto retornou ao que era, apenas ar. Tentou, ainda, o azeite e o vinho sem êxito.

Triste pelas suas tentativas sem sucesso, Oxalá sentou-se à beira do rio, de onde Nanã emergiu indagando-o sobre a sua preocupação. Então Oxalá falou sobre o seu insucesso. Nanã mergulhou e retornou das profundezas do rio e lhe entregou o barro. Oxalá, então, criou o primeiro ser humano de barro e percebeu que ele era flexível, capaz de mover os olhos, os braços, as pernas e, então, soprou-lhe a vida.

Essa era a história que Vilma mais gostava, pois quando ficava na beira do rio, lavando as roupas dos brancos, com sua avó, ela fazia inúmeros bonecos de barro com a lama. Olhava para sua avó e imaginava Nanã, mas soprava seus bonecos e nada acontecia. D. Carmelita sorria e dizia a ela que isso só Olodumare conseguiria, “nós agora somos o sopro de Olorum, não temos o poder que ele teve minha pretinha...”

Sua avó era de Nanã, que para o povo de Ketu representa o começo, porque Nanã é o barro e o barro é a vida. Nanã é a dona do axé por ser o orixá que dá a vida e a sobrevivência, a senhora dos ibás que permite o nascimento dos deuses, dos homens e das mulheres. Nanã pode ser a lembrança angustiante da morte na vida do ser humano, pois todo ser que nasce, ela sabe que está condenado a morte, mas torna-se angustiante apenas para aqueles que encaram esse final como algo negativo, como um fardo extremamente pesado que todo o ser carrega desde o seu nascimento.

Na verdade, apenas as pessoas que têm o coração repleto de maldade e dedicam a vida a prejudicar o próximo se preocupam com isso. Aqueles que praticam boas ações vivem preocupados com o bem, com a elevação espiritual e desejam ao próximo o mesmo que para si, só esperam da vida dias cada vez melhores e têm a morte como algo natural e inevitável. A sua certeza então é a imortalidade da sua essência, do seu Axé.

A avó dizia que Ketu era a nção mais Odara! Ou seja, ser Ketu era um motivo de orgulho e vaidade, era ser o mais belo dos belos, por isso elas tinham muito cuidado com suas roupas, cabelos, corpo, adereços, pois representavam, naquela cidadezinha, um reino de reis e rainhas descendentes diretas de Olorum, que o povo dali jamais conheceria.

Vilma se sentia forte, bela e poderosa. Ela não tinha medo de nada, quando estava no rio e uma cobra passava ela ficava de espreita e depois imitava. Se olhasse para o céu e um passarinho voasse ela observava e depois também imitava, pulando das árvores e assobiando a canção que Odé cantava. Quando via os peixes, ela adorava, caía no rio e nadava, mergulhava, gargalhava e também os peixes ela imitava. Nesses momentos a avó observava, com seu olhar de respeito, ao ser que já se formava.

Um dia ela veio pra capital, continuar seus estudos e sua avó fez rituais e a preparou, disse a ela tudo que precisava saber, sobre o mundo, sobre os homens, o sexo, ser mulher, ser negra e ser de Candomblé, num lugar em que essas coisas não são aceitas. Elas se abraçaram e Vilma chorou, pois não queria deixar pra trás a pessoa que ela mais amou, ela não se sentiria completa sem aquele olhar a lhe acompanhar, mas sua avó lhe contou mais uma história do povo Iorubá, desta vez a história de Ogum que era o orixá que de agora em diante iria lhe acompanhar.

D. Carmelita pediu a Vilma que não se preocupasse com ela, pois sua missão já estava cumprida aqui na terra, que foi de criá-la para ser uma mulher negra forte, guerreira e defensora das tradições Iorubás, como uma verdadeira rainha e que isso ela desde pequena já era. Ela lhe disse que Ogum, embora não fosse o dono de sua cabeça, era o orixá que iria lhe acompanhar, por ter sido o primeiro a descer do Orun (o céu), para o Aiyê (a Terra), após a criação, era a ele que a avó tinha feito suas oferendas pedindo proteção para a neta e que ele lhe abrisse os caminhos.

Os filhos de Ogum aqui na Terra são pessoas fortes, que lutam na vida, são pessoas guerreiras que não descansam por nada, sempre ativas, combatem tudo. São pessoas corajosas, sem medo de se arriscar. São sérias e perseverantes. Têm tendência aos extremos: ou defendem a polícia, ou fogem dela. Então sua avó lhe disse que tomasse cuidado com a polícia, que  ela seria feliz, se seguisse tudo que aprendeu e confiasse nos caminhos que já tinham sido traçados.

Vilma veio pra Salvador, estudou, trabalhou, cresceu e venceu como mulher negra e de Candomblé, tentando sempre ser o que aprendeu com sua avó e até hoje quando está diante de uma guerra, ela sente que D. Carmelita a observa do Orun, com seu olhar de proteção de Nanã e Ogum.



domingo, 3 de julho de 2011

A História de Cândida: “As princesas encantadas”

 
Amar se apresentava como um problema para ela, pois sentimentos não lhe faltavam, entretanto, estava difícil encontrar alguém que correspondesse às suas expectativas. Ela desejava ter um homem forte, trabalhador, carinhoso e fiel. Com o tempo começou a perceber que esse era um ideal muito difícil de ser alcançado.

Cândida tinha lembranças do seu primeiro namorado, do tempo em que morava no interior Era um jovem cabo-verde que estava prestes a servir o exército, um rapaz franzino, que ela conhecia desde a infância e sabia quase tudo sobre a vida dele. No tempo em que namoraram foi algo quase natural e tranqüilo.

Quando veio morar na Bahia, ela já tinha tido muitos namorados: teve o motorista de ônibus, que saía com ela sempre nas noites de quarta-feira quando tinha folga e ele a levava a um beco escuro, onde tentava de tudo para possuí-la. Até o dia em que ela descobriu que ele era casado e que sua esposa estava grávida.

Teve o carpinteiro que conheceu quando ele veio instalar os armários da patroa. Um homem calmo, sergipano, que morava em uma invasão na periferia da cidade e gostava de escutar num rádio de pilha o jogo de futebol aos domingos. Por isso, todas as vezes em que saíram juntos, aos domingos, ela tinha que dividi-lo com o time que estivesse jogando. Depois descobriu que ele matou a esposa com o furador de madeira, em Sergipe, e estava foragido na Bahia.

Ela se apaixonou, uma vez, por um policial militar que fazia ronda nas imediações da rua em que trabalhava. Era um homem barrigudo, brincalhão e ela valorizava pessoas bem humoradas. Tudo foi bem entre eles, até o dia em que o levou a seu barraco, onde tiveram uma noite quente de amor e muitas gargalhadas. Mas, no dia seguinte, ele foi embora e não deu mais nenhuma notícia e ela perdeu a risada.

Depois dele, ela passou um tempo até se recuperar e namorou alguns rapazes, coisa de um, dois dias, nesse intervalo. Namorou também um cantor de seresta que conheceu na Ribeira, este foi um problema, pois ele não usava camisinha e por mais que ela tentasse não havia jeito. Para ele “negão que é negão não usa preservativos”, queixava que perdia o tesão, que a camisinha apertava, que não cabia e que estragava a relação. Mas na hora do sexo ele era malabarista fazia de um tudo. Coisas que ela desconhecia e desconfiava que nem existia, ele inventava e dizia que era a última moda e que só assim se divertia. Tanto malabarismo cansou Cândida, pois ela preferia mais sentimento, desejo e emoções que por ele já não sentia.

Essa desmotivação durou até o momento em que ela teve aquela visão. Ela estava descendo o elevador Lacerda na direção da casa da sua irmã, passar o final de semana na cidade baixa, quando viu aquele homem. Era um homem alto, forte, negro e com um belo cabelo Black Power, ele conversava com uma mulher branca, em outra língua e pareciam se entender muito bem. Cândida não conseguiu mais tirar os olhos do rapaz e o seguiu pelo Mercado Modelo afora, sem que ele percebesse.

Mas, de repente veio uma multidão ao seu encontro e ela o perdeu de vista. Ao chegar a casa ela contou às outras mulheres, que já estavam reunidas fazendo seus cabelos. Contou a experiência que teve, pois tinha certeza que encontrara o homem de sua vida, ela estava apaixonada e queria dizer a ele: “Meu preto, eu estou te amando sabia?”. As amigas riram muito dessa sua história e a encorajaram a continuar indo ao Mercado, pois possivelmente deveria ser um dos locais onde ela provavelmente o reencontraria.

Entretanto, naquele mês, a patroa ia ao Rio de Janeiro e pretendia ficar por lá alguns meses, por isso resolveu levar Cândida com ela. Ao saber de sua viagem as outras mulheres ficaram felizes, incentivaram-na dizendo que o dinheiro seria muito bom e que o Rio de Janeiro era uma cidade muito bonita. Disso ela não tinha dúvidas e por conta de precisar da grana, além da possibilidade de encontrar com seus irmãos, que já moravam no Rio, Cândida foi com a patroa a cidade maravilhosa.

O Rio de Janeiro era extremamente quente, tinha trovoadas assustadoras, era uma cidade muito grande e complicada de se andar, para quem não conhecia. A patroa era carioca e seu marido era baiano, mas a mulher ficou diferente no Rio, deu pra menosprezar o trabalho de Cândida, pra não querer dar folga a ela nem aos domingos, deu pra falar mal da Bahia e dos baianos. Um dia Cândida ficou tão irritada que resolveu vir embora, mas a patroa não queria deixar, ameaçava não pagar o prometido e até colocá-la na rua sem direito a nada.

Cândida falava de suas desventuras com a patroa, do tempo em que ficou no Rio de Janeiro e as outras mulheres balançavam positivamente a cabeça, enquanto faziam o cabelo, pois elas compreendiam perfeitamente a situação, uma vez que muitas já tinham vivenciado coisas semelhantes.

Neste ponto, vale informar ao leitor que, se as patroas falavam mal das suas empregadas nos salões de beleza da orla marítima, o mesmo se dava entre as domésticas no momento de fazer o cabelo na cidade baixa, neste cenário apareciam as histórias mais incríveis que podem acontecer nessa relação desigual, de classe, raça e gênero, uma relação interseccionada por visões de mundo que não se encaixavam.

Cândida relatou que a patroa deu pra se queixar da limpeza do banheiro, que não queria que nenhuma empregada utilizasse seu vaso sanitário, ao que ela respondeu que não limparia mais o dito cujo, pois se sua bunda não poderia sentar ali, muito pior suas mãos, estas também não poderiam tocá-lo. Ela disse à patroa que também não se sentia bem de limpar suas sujeiras, fazia porque ganhava por aquele trabalho, mas não aceitaria humilhação pois isso o dinheiro não compensava.

A verdade é que a guerra entre a Bahia e o Rio de Janeiro estava instalada. A patroa não gostava de coentro, dizia que era coisa de baiano; Cândida enchia a comida da mulher de coentro, gengibre e outras coisas que ela odiava. A patroa dizia que não assinava carteira e Cândida pra tudo que a mulher pedia respondia “só faço se assinar a carteira, não fui contratada pra isso!”.

Ela não tinha horário definido para o trabalho, acordava muito cedo e ia dormir muito tarde, ainda assim, às vezes, no meio da noite a patroa a acordava para fazer algo que ela achava que só a empregada cabia. Feriados ela quase não tinha, pois a mulher não deixava: Natal passou fazendo a ceia, Ano Novo passou fazendo o peru, Carnaval passou no veraneio da família, Páscoa passou de jejum, tudo isso piorava a relação das duas que só se agravava. A mulher não gostava das músicas que ela ouvia no rádio de pilha, mas exatamente por isso Cândida não deixava o rádio por nada.

A patroa mandava ela comprar carne de boi e como a carne era congelada, Cândida detestava e não comia. Isso irritava a patroa que dizia: “Nordestino come até calango, não sei por que essa folia”. Era mais uma coisa que inflamava a empregada, pois na Bahia ela sempre comia carne fresca e peixe ainda vivo; isso era o que ela dizia.

A patroa falava que “preto só tinha juízo de manhã até o meio dia” ao que Cândida refletia pensando: “ainda bem que a mulher já sabia”. Um dia a patroa mandou Cândida ir no Mercado de Madureira procurar um ingrediente que só lá encontraria. Ela não conhecia o Rio de Janeiro, se perdeu, andou muito, perguntou e finalmente achou o tal Mercado. Mas que deslumbramento, a empregada se sentiu em casa finalmente, pois o Mercado era cheio de gente da Bahia, encontrou inclusive pessoas que ela conhecia, esqueceu de comprar o que foi procurar e voltou dizendo que não achou.

Por fim, as duas tiveram um bate-boca fortíssimo e a patroa deu pra falar mal dos negros baianos, mais uma vez, disse que o ministro da educação era um preto baiano “por acaso”, ao que Cândida retrucou que “por acaso” não era um branco carioca. A patroa se irritou e disse que não iria deixá-la voltar à Bahia, ao que Cândida jurou, com o dedo na cara da branca que iria fazer um bom Ebó pra ela, ah se ia, e ela ia ver que era bem melhor deixá-la partir. “Pois de uma coisa ela sabia: baiano burro nasce morto e ainda assim assombra muita gente!”.

Em seguida, Cândida procurou saber das outras domésticas onde encontrar um terreiro de Candomblé naquela cidade, um lugar de confiança, que fizesse um trabalho sério. Indicaram uma casa no morro da Mangueira e no sábado, Cândida foi ao morro. Lá chegando foi recebida por uma Padilha que lhe encaminhou até o centro do barracão, ali mesmo foi feita a consulta e a entidade pediu champanhe, flores vermelhas e disse a Cândida que não se preocupasse, pois logo ela estaria voltando à Bahia, onde encontraria seu verdadeiro amor.

As casas de Umbanda no Rio de Janeiro tinham tradição de trabalhar com Padilha, esta é uma entidade que na verdade faz parte da Kimbanda que é um dos setores da Umbanda. A Padilha que atendeu Cândida era uma mulher negra de pele clara, com o cabelo vermelho e uma longa saia. Logo de cara a empregada gostou da entidade e se identificou com ela...Uma mulher destemida, feminista e guerreira!

No dia seguinte a patroa chamou Cândida e a deixou partir, no avião da aeronáutica, cujo piloto era seu marido. Assim, ela arrumou as malas e voou de volta pra Bahia. Quando chegou, falava carioquês e não sabia mais nada sobre os hábitos de vida das amigas baianas. Usava roupas coloridíssimas, gírias que ninguém conhecia, cantava sambas das escolas e ria do sotaque dos baianos, antipática com uma voz de malandro querendo ser carioca!

Deu pra usar peruca vermelha, não mais fazia o cabelo e se dizia feminista, pois leu muito no Rio de Janeiro sobre as mulheres feministas francesas, teve vários bate-bocas com a patroa sobre isso. Afinal de contas a patroa, uma mulher estudada, era subordinada ao marido que a maltratava e ainda assim achava que os homens são isso mesmo. Quando Cândida falou pra ela sobre o feminismo, ela deu pra rir e dizer que feminismo de empregada doméstica era o tanque. Que as mulheres feministas eram todas lésbicas, que falavam do feminismo porque não gostavam de homem.

Que branca ignorante! Ela bem merecia o marido que tinha e olhe que Cândida nunca lhe contou que o marido tentava seduzir outras mulheres, levando-as até para casa quando ela saía, ah! Se a patroa soubesse a maravilha de homem com quem ela vivia!

Mas felizmente ela deixou aquele casal para trás e agora, desempregada precisava arrumar novamente a vida. Então resolveu vender perucas e rádio de pilha, comprados no Mercado de Madureira, começou pelo prédio de sua antiga patroa, pois lá conhecia muitas outras domésticas e sabia que os porteiros também seriam seus fregueses. Esse seu negócio foi um sucesso, então ela resolveu expandir. Comprou caixas de banana e foi vender em São Joaquim. Não tinha vida melhor que a de feirante, livre, na rua, dona do seu próprio nariz, ali finalmente, ela foi feliz.

Invadiu uma área na Maré, construiu um barraco de madeira em Alagados e vendia em duas feiras, numa vendia bananas na outra produtos de Axé. Durante a semana ela se alimentava do que não conseguia vender na feira e assim a vida ia. Até o dia em que adoeceu, ela tinha alergia ao sol e a muitas das coisas que comia. Demorou pra identificar a cura e nesse processo ela precisou de cuidados médicos, mas como não trabalhava com carteira assinada, não tinha direito a assistência médica, pois naquele tempo era assim que o sistema de saúde funcionava.

Cândida tomou muitos chás, banhos, foi a benzedeiras, bebeu garrafadas, fez jejum, ficou morando num quarto escuro, a pele toda descascada, ela era filha de Omulu, tomou sete banhos com doburu e ficou recolhida, um tempo, num Candomblé na Liberdade. Ela dizia que não era da seita, mas buscava toda vez que precisava.

Um dia sua antiga patroa a procurou e a levou a um médico da família dela e este identificou o mal, a medicou e depois de tudo isso Cândida melhorou. Daí ela voltou a trabalhar na casa da branca, mas antes tiveram uma conversa onde a mulher lhe pediu desculpas, resolveu assinar sua carteira e reconheceu que era subordinada ao marido, porém não queria discutir sua vida com Cândida, ao que ela concordou.

No final de semana de folga ela foi à casa da irmã que fazia cabelos e conseguiu vender sua última peruca, com o dinheiro foi a uma briga de galos com um amigo, lá chegando percebeu que poucas mulheres freqüentavam o lugar, era um ambiente extremamente masculino, mas Cândida se sentiu bem ali, lembrou da época em que vendia na feira de São Joaquim e discutia com aqueles homens todos até eles lhe darem razão. A feira era como a rinha de galos, uma alegria.

Foi nesse lugar que ela conheceu Margarida. Ela era uma mulher negra retinta, que usava o cabelo trançado, tinha um sorriso empolgante e apostava nos galos torcendo como os homens. Margarida ao ver Cândida disse logo: “Pretinha, que peruca linda, eu acho que tô te amando”.

Ali as duas começaram a beber e a gritar suas apostas e dali resolveram sair e ir até Paripe onde, segundo Margarida, rolava um samba de roda. Chegaram a Paripe já de madrugada e Cândida estava cada vez mais encantada com Margarida, uma mulher independente, que tinha seu próprio dinheiro, o respeito dos homens e que sambando era um absurdo, uma beleza, bailava como ninguém.

Margarida também estava encantada por Cândida, uma mulher trabalhadora, que não levava desaforo pra casa, além disso, ela era cheirosa e usava uma peruca vermelha que parecia um galo de briga. De repente Margarida beijou Cândida e aquele beijo encheu o coração das duas de muito carinho e do desejo de não mais acabar. Daí em diante resolveram morar juntas no barraco que Cândida construiu em Alagados.

O relacionamento das duas aconteceu como quando chove depois de um dia de calor intenso, quando a chuva deságua, como se não tivesse outra coisa a fazer senão molhar tudo arrefecendo a quentura e o abafamento por onde passa, deixando tudo refrigerado e um cheiro bom sobre a terra. Era calmante estar ao lado de Margarida, conversar com ela era fácil, pois se entendiam no olhar. Apesar da pouca leitura sobre o feminismo, Margarida compreendia perfeitamente as considerações que Cândida fazia e até dava exemplos de sua própria vida sobre o que a outra dizia.

O sexo com Margarida era intenso, mas sem malabarismos, elas se conheciam e a cada parte de seus corpos, que vibrava e fazia tremer uma, ao toque da outra, sussurravam palavras de amor nos ouvidos, acariciavam a peruca, os cabelos e se saciavam no calor da pele molhada de um suor quente. Cândida nunca encontrou isso com nenhum homem.

Então ela resolveu apresentar Margarida às suas amigas no salão de beleza. As outras mulheres também gostaram dela logo de cara. Mas Margarida ficou encantada com Conceição, com a habilidade que ela tinha para espichar cabelos e como ela deixava os cabelos das outras mulheres bonitos, pareciam crinas de galo.

Uma das mulheres, que fez o cabelo naquele dia, também gostou de Margarida e as duas marcaram de se encontrar mais tarde, para ir a um samba em Paripe. Ao perceber o encantamento das duas, Cândida se irritou, se decepcionou, discutiram, brigaram e ela saiu sem destino, pensando mesmo em ir até o elevador Lacerda e de lá se jogar, afinal seu sentimento por Margarida não tinha a mesma correspondência que ela imaginava, Margô era como os homens com quem Cândida namorou!

Do alto do elevador ela chorava, pensava e se imaginava voando, planando sobre a cidade, mas o que será que diriam os jornais? Será que a tratariam como louca? Não, ela não ia fazer uma coisa dessa e dar esse gosto a outra. Perdida em seus pensamentos Cândida se aproximou da beirada e o vento levou sua peruca vermelha, ouriçada. Quando estava prestes a pular desesperada para pegar a peruca de volta, sentiu uma mão forte segurá-la, perdeu os sentidos e ao acordar estava num lugar estranho e não sabia mais nada nem quem a levou.

De repente uma mulher ruiva se aproximou e conversou com ela querendo saber o que a motivou a fazer aquela besteira. Cândida estava ainda tonta, não dizia coisa com coisa e nada informava. Assim que melhorou conseguiu identificar que a mulher que a salvou era a do elevador, aquela que conversava com o homem por quem ela uma vez se apaixonou.

A ruiva ficou fascinada por ela e seu cabelo encrespado. Cândida somente chorou... E quando a mulher perguntou como ela estava e porque chorava ela respondeu: “Ah! Padilha, você falou que eu encontraria o amor, agora até minha peruca seu vendaval levou”. Realmente, ela não dizia nada com nada...