Amar se apresentava como um problema para ela, pois sentimentos não lhe faltavam, entretanto, estava difícil encontrar alguém que correspondesse às suas expectativas. Ela desejava ter um homem forte, trabalhador, carinhoso e fiel. Com o tempo começou a perceber que esse era um ideal muito difícil de ser alcançado.
Cândida tinha lembranças do seu primeiro namorado, do tempo em que morava no interior Era um jovem cabo-verde que estava prestes a servir o exército, um rapaz franzino, que ela conhecia desde a infância e sabia quase tudo sobre a vida dele. No tempo em que namoraram foi algo quase natural e tranqüilo.
Quando veio morar na Bahia, ela já tinha tido muitos namorados: teve o motorista de ônibus, que saía com ela sempre nas noites de quarta-feira quando tinha folga e ele a levava a um beco escuro, onde tentava de tudo para possuí-la. Até o dia em que ela descobriu que ele era casado e que sua esposa estava grávida.
Teve o carpinteiro que conheceu quando ele veio instalar os armários da patroa. Um homem calmo, sergipano, que morava em uma invasão na periferia da cidade e gostava de escutar num rádio de pilha o jogo de futebol aos domingos. Por isso, todas as vezes em que saíram juntos, aos domingos, ela tinha que dividi-lo com o time que estivesse jogando. Depois descobriu que ele matou a esposa com o furador de madeira, em Sergipe, e estava foragido na Bahia.
Ela se apaixonou, uma vez, por um policial militar que fazia ronda nas imediações da rua em que trabalhava. Era um homem barrigudo, brincalhão e ela valorizava pessoas bem humoradas. Tudo foi bem entre eles, até o dia em que o levou a seu barraco, onde tiveram uma noite quente de amor e muitas gargalhadas. Mas, no dia seguinte, ele foi embora e não deu mais nenhuma notícia e ela perdeu a risada.
Depois dele, ela passou um tempo até se recuperar e namorou alguns rapazes, coisa de um, dois dias, nesse intervalo. Namorou também um cantor de seresta que conheceu na Ribeira, este foi um problema, pois ele não usava camisinha e por mais que ela tentasse não havia jeito. Para ele “negão que é negão não usa preservativos”, queixava que perdia o tesão, que a camisinha apertava, que não cabia e que estragava a relação. Mas na hora do sexo ele era malabarista fazia de um tudo. Coisas que ela desconhecia e desconfiava que nem existia, ele inventava e dizia que era a última moda e que só assim se divertia. Tanto malabarismo cansou Cândida, pois ela preferia mais sentimento, desejo e emoções que por ele já não sentia.
Essa desmotivação durou até o momento em que ela teve aquela visão. Ela estava descendo o elevador Lacerda na direção da casa da sua irmã, passar o final de semana na cidade baixa, quando viu aquele homem. Era um homem alto, forte, negro e com um belo cabelo Black Power, ele conversava com uma mulher branca, em outra língua e pareciam se entender muito bem. Cândida não conseguiu mais tirar os olhos do rapaz e o seguiu pelo Mercado Modelo afora, sem que ele percebesse.
Mas, de repente veio uma multidão ao seu encontro e ela o perdeu de vista. Ao chegar a casa ela contou às outras mulheres, que já estavam reunidas fazendo seus cabelos. Contou a experiência que teve, pois tinha certeza que encontrara o homem de sua vida, ela estava apaixonada e queria dizer a ele: “Meu preto, eu estou te amando sabia?”. As amigas riram muito dessa sua história e a encorajaram a continuar indo ao Mercado, pois possivelmente deveria ser um dos locais onde ela provavelmente o reencontraria.
Entretanto, naquele mês, a patroa ia ao Rio de Janeiro e pretendia ficar por lá alguns meses, por isso resolveu levar Cândida com ela. Ao saber de sua viagem as outras mulheres ficaram felizes, incentivaram-na dizendo que o dinheiro seria muito bom e que o Rio de Janeiro era uma cidade muito bonita. Disso ela não tinha dúvidas e por conta de precisar da grana, além da possibilidade de encontrar com seus irmãos, que já moravam no Rio, Cândida foi com a patroa a cidade maravilhosa.
O Rio de Janeiro era extremamente quente, tinha trovoadas assustadoras, era uma cidade muito grande e complicada de se andar, para quem não conhecia. A patroa era carioca e seu marido era baiano, mas a mulher ficou diferente no Rio, deu pra menosprezar o trabalho de Cândida, pra não querer dar folga a ela nem aos domingos, deu pra falar mal da Bahia e dos baianos. Um dia Cândida ficou tão irritada que resolveu vir embora, mas a patroa não queria deixar, ameaçava não pagar o prometido e até colocá-la na rua sem direito a nada.
Cândida falava de suas desventuras com a patroa, do tempo em que ficou no Rio de Janeiro e as outras mulheres balançavam positivamente a cabeça, enquanto faziam o cabelo, pois elas compreendiam perfeitamente a situação, uma vez que muitas já tinham vivenciado coisas semelhantes.
Neste ponto, vale informar ao leitor que, se as patroas falavam mal das suas empregadas nos salões de beleza da orla marítima, o mesmo se dava entre as domésticas no momento de fazer o cabelo na cidade baixa, neste cenário apareciam as histórias mais incríveis que podem acontecer nessa relação desigual, de classe, raça e gênero, uma relação interseccionada por visões de mundo que não se encaixavam.
Cândida relatou que a patroa deu pra se queixar da limpeza do banheiro, que não queria que nenhuma empregada utilizasse seu vaso sanitário, ao que ela respondeu que não limparia mais o dito cujo, pois se sua bunda não poderia sentar ali, muito pior suas mãos, estas também não poderiam tocá-lo. Ela disse à patroa que também não se sentia bem de limpar suas sujeiras, fazia porque ganhava por aquele trabalho, mas não aceitaria humilhação pois isso o dinheiro não compensava.
A verdade é que a guerra entre a Bahia e o Rio de Janeiro estava instalada. A patroa não gostava de coentro, dizia que era coisa de baiano; Cândida enchia a comida da mulher de coentro, gengibre e outras coisas que ela odiava. A patroa dizia que não assinava carteira e Cândida pra tudo que a mulher pedia respondia “só faço se assinar a carteira, não fui contratada pra isso!”.
Ela não tinha horário definido para o trabalho, acordava muito cedo e ia dormir muito tarde, ainda assim, às vezes, no meio da noite a patroa a acordava para fazer algo que ela achava que só a empregada cabia. Feriados ela quase não tinha, pois a mulher não deixava: Natal passou fazendo a ceia, Ano Novo passou fazendo o peru, Carnaval passou no veraneio da família, Páscoa passou de jejum, tudo isso piorava a relação das duas que só se agravava. A mulher não gostava das músicas que ela ouvia no rádio de pilha, mas exatamente por isso Cândida não deixava o rádio por nada.
A patroa mandava ela comprar carne de boi e como a carne era congelada, Cândida detestava e não comia. Isso irritava a patroa que dizia: “Nordestino come até calango, não sei por que essa folia”. Era mais uma coisa que inflamava a empregada, pois na Bahia ela sempre comia carne fresca e peixe ainda vivo; isso era o que ela dizia.
A patroa falava que “preto só tinha juízo de manhã até o meio dia” ao que Cândida refletia pensando: “ainda bem que a mulher já sabia”. Um dia a patroa mandou Cândida ir no Mercado de Madureira procurar um ingrediente que só lá encontraria. Ela não conhecia o Rio de Janeiro, se perdeu, andou muito, perguntou e finalmente achou o tal Mercado. Mas que deslumbramento, a empregada se sentiu em casa finalmente, pois o Mercado era cheio de gente da Bahia, encontrou inclusive pessoas que ela conhecia, esqueceu de comprar o que foi procurar e voltou dizendo que não achou.
Por fim, as duas tiveram um bate-boca fortíssimo e a patroa deu pra falar mal dos negros baianos, mais uma vez, disse que o ministro da educação era um preto baiano “por acaso”, ao que Cândida retrucou que “por acaso” não era um branco carioca. A patroa se irritou e disse que não iria deixá-la voltar à Bahia, ao que Cândida jurou, com o dedo na cara da branca que iria fazer um bom Ebó pra ela, ah se ia, e ela ia ver que era bem melhor deixá-la partir. “Pois de uma coisa ela sabia: baiano burro nasce morto e ainda assim assombra muita gente!”.
Em seguida, Cândida procurou saber das outras domésticas onde encontrar um terreiro de Candomblé naquela cidade, um lugar de confiança, que fizesse um trabalho sério. Indicaram uma casa no morro da Mangueira e no sábado, Cândida foi ao morro. Lá chegando foi recebida por uma Padilha que lhe encaminhou até o centro do barracão, ali mesmo foi feita a consulta e a entidade pediu champanhe, flores vermelhas e disse a Cândida que não se preocupasse, pois logo ela estaria voltando à Bahia, onde encontraria seu verdadeiro amor.
As casas de Umbanda no Rio de Janeiro tinham tradição de trabalhar com Padilha, esta é uma entidade que na verdade faz parte da Kimbanda que é um dos setores da Umbanda. A Padilha que atendeu Cândida era uma mulher negra de pele clara, com o cabelo vermelho e uma longa saia. Logo de cara a empregada gostou da entidade e se identificou com ela...Uma mulher destemida, feminista e guerreira!
No dia seguinte a patroa chamou Cândida e a deixou partir, no avião da aeronáutica, cujo piloto era seu marido. Assim, ela arrumou as malas e voou de volta pra Bahia. Quando chegou, falava carioquês e não sabia mais nada sobre os hábitos de vida das amigas baianas. Usava roupas coloridíssimas, gírias que ninguém conhecia, cantava sambas das escolas e ria do sotaque dos baianos, antipática com uma voz de malandro querendo ser carioca!
Deu pra usar peruca vermelha, não mais fazia o cabelo e se dizia feminista, pois leu muito no Rio de Janeiro sobre as mulheres feministas francesas, teve vários bate-bocas com a patroa sobre isso. Afinal de contas a patroa, uma mulher estudada, era subordinada ao marido que a maltratava e ainda assim achava que os homens são isso mesmo. Quando Cândida falou pra ela sobre o feminismo, ela deu pra rir e dizer que feminismo de empregada doméstica era o tanque. Que as mulheres feministas eram todas lésbicas, que falavam do feminismo porque não gostavam de homem.
Que branca ignorante! Ela bem merecia o marido que tinha e olhe que Cândida nunca lhe contou que o marido tentava seduzir outras mulheres, levando-as até para casa quando ela saía, ah! Se a patroa soubesse a maravilha de homem com quem ela vivia!
Mas felizmente ela deixou aquele casal para trás e agora, desempregada precisava arrumar novamente a vida. Então resolveu vender perucas e rádio de pilha, comprados no Mercado de Madureira, começou pelo prédio de sua antiga patroa, pois lá conhecia muitas outras domésticas e sabia que os porteiros também seriam seus fregueses. Esse seu negócio foi um sucesso, então ela resolveu expandir. Comprou caixas de banana e foi vender em São Joaquim. Não tinha vida melhor que a de feirante, livre, na rua, dona do seu próprio nariz, ali finalmente, ela foi feliz.
Invadiu uma área na Maré, construiu um barraco de madeira em Alagados e vendia em duas feiras, numa vendia bananas na outra produtos de Axé. Durante a semana ela se alimentava do que não conseguia vender na feira e assim a vida ia. Até o dia em que adoeceu, ela tinha alergia ao sol e a muitas das coisas que comia. Demorou pra identificar a cura e nesse processo ela precisou de cuidados médicos, mas como não trabalhava com carteira assinada, não tinha direito a assistência médica, pois naquele tempo era assim que o sistema de saúde funcionava.
Cândida tomou muitos chás, banhos, foi a benzedeiras, bebeu garrafadas, fez jejum, ficou morando num quarto escuro, a pele toda descascada, ela era filha de Omulu, tomou sete banhos com doburu e ficou recolhida, um tempo, num Candomblé na Liberdade. Ela dizia que não era da seita, mas buscava toda vez que precisava.
Um dia sua antiga patroa a procurou e a levou a um médico da família dela e este identificou o mal, a medicou e depois de tudo isso Cândida melhorou. Daí ela voltou a trabalhar na casa da branca, mas antes tiveram uma conversa onde a mulher lhe pediu desculpas, resolveu assinar sua carteira e reconheceu que era subordinada ao marido, porém não queria discutir sua vida com Cândida, ao que ela concordou.
No final de semana de folga ela foi à casa da irmã que fazia cabelos e conseguiu vender sua última peruca, com o dinheiro foi a uma briga de galos com um amigo, lá chegando percebeu que poucas mulheres freqüentavam o lugar, era um ambiente extremamente masculino, mas Cândida se sentiu bem ali, lembrou da época em que vendia na feira de São Joaquim e discutia com aqueles homens todos até eles lhe darem razão. A feira era como a rinha de galos, uma alegria.
Foi nesse lugar que ela conheceu Margarida. Ela era uma mulher negra retinta, que usava o cabelo trançado, tinha um sorriso empolgante e apostava nos galos torcendo como os homens. Margarida ao ver Cândida disse logo: “Pretinha, que peruca linda, eu acho que tô te amando”.
Ali as duas começaram a beber e a gritar suas apostas e dali resolveram sair e ir até Paripe onde, segundo Margarida, rolava um samba de roda. Chegaram a Paripe já de madrugada e Cândida estava cada vez mais encantada com Margarida, uma mulher independente, que tinha seu próprio dinheiro, o respeito dos homens e que sambando era um absurdo, uma beleza, bailava como ninguém.
Margarida também estava encantada por Cândida, uma mulher trabalhadora, que não levava desaforo pra casa, além disso, ela era cheirosa e usava uma peruca vermelha que parecia um galo de briga. De repente Margarida beijou Cândida e aquele beijo encheu o coração das duas de muito carinho e do desejo de não mais acabar. Daí em diante resolveram morar juntas no barraco que Cândida construiu em Alagados.
O relacionamento das duas aconteceu como quando chove depois de um dia de calor intenso, quando a chuva deságua, como se não tivesse outra coisa a fazer senão molhar tudo arrefecendo a quentura e o abafamento por onde passa, deixando tudo refrigerado e um cheiro bom sobre a terra. Era calmante estar ao lado de Margarida, conversar com ela era fácil, pois se entendiam no olhar. Apesar da pouca leitura sobre o feminismo, Margarida compreendia perfeitamente as considerações que Cândida fazia e até dava exemplos de sua própria vida sobre o que a outra dizia.
O sexo com Margarida era intenso, mas sem malabarismos, elas se conheciam e a cada parte de seus corpos, que vibrava e fazia tremer uma, ao toque da outra, sussurravam palavras de amor nos ouvidos, acariciavam a peruca, os cabelos e se saciavam no calor da pele molhada de um suor quente. Cândida nunca encontrou isso com nenhum homem.
Então ela resolveu apresentar Margarida às suas amigas no salão de beleza. As outras mulheres também gostaram dela logo de cara. Mas Margarida ficou encantada com Conceição, com a habilidade que ela tinha para espichar cabelos e como ela deixava os cabelos das outras mulheres bonitos, pareciam crinas de galo.
Uma das mulheres, que fez o cabelo naquele dia, também gostou de Margarida e as duas marcaram de se encontrar mais tarde, para ir a um samba em Paripe. Ao perceber o encantamento das duas, Cândida se irritou, se decepcionou, discutiram, brigaram e ela saiu sem destino, pensando mesmo em ir até o elevador Lacerda e de lá se jogar, afinal seu sentimento por Margarida não tinha a mesma correspondência que ela imaginava, Margô era como os homens com quem Cândida namorou!
Do alto do elevador ela chorava, pensava e se imaginava voando, planando sobre a cidade, mas o que será que diriam os jornais? Será que a tratariam como louca? Não, ela não ia fazer uma coisa dessa e dar esse gosto a outra. Perdida em seus pensamentos Cândida se aproximou da beirada e o vento levou sua peruca vermelha, ouriçada. Quando estava prestes a pular desesperada para pegar a peruca de volta, sentiu uma mão forte segurá-la, perdeu os sentidos e ao acordar estava num lugar estranho e não sabia mais nada nem quem a levou.
De repente uma mulher ruiva se aproximou e conversou com ela querendo saber o que a motivou a fazer aquela besteira. Cândida estava ainda tonta, não dizia coisa com coisa e nada informava. Assim que melhorou conseguiu identificar que a mulher que a salvou era a do elevador, aquela que conversava com o homem por quem ela uma vez se apaixonou.
A ruiva ficou fascinada por ela e seu cabelo encrespado. Cândida somente chorou... E quando a mulher perguntou como ela estava e porque chorava ela respondeu: “Ah! Padilha, você falou que eu encontraria o amor, agora até minha peruca seu vendaval levou”. Realmente, ela não dizia nada com nada...
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