sábado, 16 de julho de 2011

“Ketu: a nação mais Odara, aos olhos dos Deuses e Deusas Iorubás"

Ela aprendeu desde cedo o valor da educação e o papel que uma boa formação teria em sua vida, afinal ouviu durante anos sua avó falando em seu ouvido, que não iria criar seus netos para serem serviçais de ninguém! Perdeu a mãe muito pequena e o pai vivia trabalhando em diferentes locais do estado, de obra, em obra. Sua avó foi quem a criou e mais seus seis irmãos, numa cidade do Recôncavo, interior da Bahia.

D. Carmelita era uma mulher baixa, de seios fartos, que trabalhava como lavadeira, fazia cocada, vendia ovos de quintal na feira e ainda por cima era parteira e rezadeira. Pelas mãos quentes e calejadas dela tinham passado a maioria das crianças daquela comunidade; na hora do parto ou nos momentos de febre, congestão, suspeita de "estoporamento" ou qualquer outro mal inusitado, que acometesse alguém do bairro, ou das cercanias, era ela quem socorria. Suas palavras ecoavam como profecias, por isso media bem o que dizer e falava pouco.

Quanto aos seus netos, eram seis crianças de diferentes filhos e filhas, de variadas idades e personalidades. Todos foram sendo deixados com ela à medida que seus filhos foram para a capital, trabalhar para as famílias dos brancos. Era uma mulher muito religiosa e fazia questão que os netos fossem as missas de domingo na capela em frente ao rio.

Mas, o que ela não aceitava eram injustiça e arrogância, ela era uma mulher de Nanã. Além de ir à igreja católica, se confessar e pedir paz de espírito a Deus, D. Carmelita era Mãe Pequena num terreiro Ketu, muito conhecido naquela cidade e se desdobrava nos seus afazeres de casa e do terreiro. Ela criava seus netos da mesma forma que foi criada, sem castigos, mas com muita conversa e explicações sérias. Muitas vezes ela nem falava e as crianças compreendiam perfeitamente o que ela queria dizer só com os olhos.

Ensinava seus netos a terem muito orgulho de pertencerem ao Candomblé, mas que também era preciso respeitar e conhecer as outras religiões, por isso eles iam à missa aos domingos, ver como os brancos se comportavam, em que eles acreditavam, do que tinham medo. Particularmente ela achava a religião católica muito triste, deprimente e durante as missas sempre cochilava. Mas, para sossegar seis crianças, sem pai nem mãe, era mais uma opção de espaço de aprendizado e talvez, quem sabe, se um deles não fosse seguir o Candomblé, ela achava que eles deveriam ter opções.

As crianças adoravam ouvir suas histórias e se sentavam ao seu redor na esteira, todas as noites depois do banho, atentas e em silêncio só para ouvi-las. Geralmente D. Carmelita misturava histórias de orixás com histórias de vida das pessoas que conheceu, para dar ensinamento através de exemplos aos seus jovens netos.

Muitas noites as crianças dormiam com fome, pois a avó não tinha condições financeiras de alimentá-los, aí a refeição noturna era geralmente sacrificada e quando um deles chorava D, Carmelita dizia: “Vá dormir logo, que o sono alimenta”. Nesses dias ela fazia chá de cidreira e todos bebiam antes de dormir. Se tivesse um único pão teria que ser dividido para todos e se não tivesse nada, também nada se dividiria e ninguém se queixava.

Mas no terreiro era diferente, lá não faltava comida e tudo também era dividido. As crianças gostavam de ficar no terreiro, embora fosse num local distante da escola e D. Carmelita não admitia que faltassem as aulas. A escola era pública e mantida também com a ajuda da igreja, no lugar havia uma fanfarra e as crianças aprendiam desde cedo a tocar instrumentos diferenciados para pertencerem ao grupo no futuro, exceto Vilma, pois ela não queria tocar, queria logo ser a “maestra”...

Vilma era a neta do meio de D. Carmelita, que desde pequena ajudava a avó e considerava que sua mãe velha estava mais do que certa em tudo que fazia. Muitas vezes enquanto a avó falava, ela observava o jeito, o tom, o olhar, o corpo, só para depois imitar. Era admiração misturada com amor e pobre de seus irmãos se respondesse ou desobedecesse, ela não admitia e ainda que eles fossem maiores, ela os perseguia, até que voltassem atrás e se desculpassem com D. Carmelita.

Ajudar a avó era o que ela mais gostava de fazer na vida, então ia ao rio lavar roupa pequenina ainda, segurando na saia da “voinha”; ia a feira vender ovos de quintal e a avó sempre lhe dava um ou dois escondido dos irmãos, mas Vilma fritava e dividia com todos e a avó a observava, com seu olhar de aprovação; ia ajudar quando uma criança nascia e buscava as folhas da reza quando alguém adoecia.

No Candomblé, ela ia vestida com sua saia desde pequenininha, suas roupas ela mesmo lavava e eram bem alvinhas, seu cabelo ela mesmo trançava e ajudava a trançar também o de suas irmãs menores, perguntava tudo a sua avó, pois sua palavra era a coisa mais séria que ela conhecia. Nas noites de festa cantava e dançava, imitava a avó em tudo que ela realizasse e a avó só acompanhava, com seu olhar de devoção, a tudo que o orixá fazia.

Não sabia o significado dos cânticos, não sabia o significado das palavras que proferia, mas adorava a idéia de estar falando outra língua que ninguém conhecia. Enquanto crescia estudava como sua avó queria, mas buscava saber nos livros as histórias do seu povo e não encontrava nada daquilo que sua avó dizia...

Sua avó dizia que elas, como todo povo da nação Ketu, descendiam dos Iorubás e para os Iorubás o Deus maior chamava-se Olorum, que pode ser chamado também de Olodumare. É um Deus que não aceita oferendas, pois tudo o que existe e pode ser ofertado já lhe pertence, na qualidade de criador de tudo o que existe, em todos os nove espaços do Orun, que é como é chamado o céu e o infinito para o povo Ketu.

Olorum criou o mundo, todas as águas e terras e todos os filhos das águas e do seio da terra. Criou plantas e animais de todas as cores e tamanhos. Até que ordenou que Oxalá criasse o homem e a mulher. Oxalá criou o homem e a mulher a partir do ferro e depois da madeira, mas ambos eram rígidos demais. Usou a pedra - era muito fria. Tentou a água, mas o ser não tomava forma definida. Tentou o fogo, mas a criatura se consumiu no próprio fogo. Fez um ser de ar que depois de pronto retornou ao que era, apenas ar. Tentou, ainda, o azeite e o vinho sem êxito.

Triste pelas suas tentativas sem sucesso, Oxalá sentou-se à beira do rio, de onde Nanã emergiu indagando-o sobre a sua preocupação. Então Oxalá falou sobre o seu insucesso. Nanã mergulhou e retornou das profundezas do rio e lhe entregou o barro. Oxalá, então, criou o primeiro ser humano de barro e percebeu que ele era flexível, capaz de mover os olhos, os braços, as pernas e, então, soprou-lhe a vida.

Essa era a história que Vilma mais gostava, pois quando ficava na beira do rio, lavando as roupas dos brancos, com sua avó, ela fazia inúmeros bonecos de barro com a lama. Olhava para sua avó e imaginava Nanã, mas soprava seus bonecos e nada acontecia. D. Carmelita sorria e dizia a ela que isso só Olodumare conseguiria, “nós agora somos o sopro de Olorum, não temos o poder que ele teve minha pretinha...”

Sua avó era de Nanã, que para o povo de Ketu representa o começo, porque Nanã é o barro e o barro é a vida. Nanã é a dona do axé por ser o orixá que dá a vida e a sobrevivência, a senhora dos ibás que permite o nascimento dos deuses, dos homens e das mulheres. Nanã pode ser a lembrança angustiante da morte na vida do ser humano, pois todo ser que nasce, ela sabe que está condenado a morte, mas torna-se angustiante apenas para aqueles que encaram esse final como algo negativo, como um fardo extremamente pesado que todo o ser carrega desde o seu nascimento.

Na verdade, apenas as pessoas que têm o coração repleto de maldade e dedicam a vida a prejudicar o próximo se preocupam com isso. Aqueles que praticam boas ações vivem preocupados com o bem, com a elevação espiritual e desejam ao próximo o mesmo que para si, só esperam da vida dias cada vez melhores e têm a morte como algo natural e inevitável. A sua certeza então é a imortalidade da sua essência, do seu Axé.

A avó dizia que Ketu era a nção mais Odara! Ou seja, ser Ketu era um motivo de orgulho e vaidade, era ser o mais belo dos belos, por isso elas tinham muito cuidado com suas roupas, cabelos, corpo, adereços, pois representavam, naquela cidadezinha, um reino de reis e rainhas descendentes diretas de Olorum, que o povo dali jamais conheceria.

Vilma se sentia forte, bela e poderosa. Ela não tinha medo de nada, quando estava no rio e uma cobra passava ela ficava de espreita e depois imitava. Se olhasse para o céu e um passarinho voasse ela observava e depois também imitava, pulando das árvores e assobiando a canção que Odé cantava. Quando via os peixes, ela adorava, caía no rio e nadava, mergulhava, gargalhava e também os peixes ela imitava. Nesses momentos a avó observava, com seu olhar de respeito, ao ser que já se formava.

Um dia ela veio pra capital, continuar seus estudos e sua avó fez rituais e a preparou, disse a ela tudo que precisava saber, sobre o mundo, sobre os homens, o sexo, ser mulher, ser negra e ser de Candomblé, num lugar em que essas coisas não são aceitas. Elas se abraçaram e Vilma chorou, pois não queria deixar pra trás a pessoa que ela mais amou, ela não se sentiria completa sem aquele olhar a lhe acompanhar, mas sua avó lhe contou mais uma história do povo Iorubá, desta vez a história de Ogum que era o orixá que de agora em diante iria lhe acompanhar.

D. Carmelita pediu a Vilma que não se preocupasse com ela, pois sua missão já estava cumprida aqui na terra, que foi de criá-la para ser uma mulher negra forte, guerreira e defensora das tradições Iorubás, como uma verdadeira rainha e que isso ela desde pequena já era. Ela lhe disse que Ogum, embora não fosse o dono de sua cabeça, era o orixá que iria lhe acompanhar, por ter sido o primeiro a descer do Orun (o céu), para o Aiyê (a Terra), após a criação, era a ele que a avó tinha feito suas oferendas pedindo proteção para a neta e que ele lhe abrisse os caminhos.

Os filhos de Ogum aqui na Terra são pessoas fortes, que lutam na vida, são pessoas guerreiras que não descansam por nada, sempre ativas, combatem tudo. São pessoas corajosas, sem medo de se arriscar. São sérias e perseverantes. Têm tendência aos extremos: ou defendem a polícia, ou fogem dela. Então sua avó lhe disse que tomasse cuidado com a polícia, que  ela seria feliz, se seguisse tudo que aprendeu e confiasse nos caminhos que já tinham sido traçados.

Vilma veio pra Salvador, estudou, trabalhou, cresceu e venceu como mulher negra e de Candomblé, tentando sempre ser o que aprendeu com sua avó e até hoje quando está diante de uma guerra, ela sente que D. Carmelita a observa do Orun, com seu olhar de proteção de Nanã e Ogum.



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