Cada história por mim contada diz respeito a inúmeras conversas, sonhos, coisas que foram ouvidas e guardadas, coisas pelas quais passei e vivenciei, outras que apenas ouvi e guardei. Mas existem também aquelas que as pessoas contam com a recomendação de que sejam reveladas, porque querem que sejam escritas e divulgadas.
Algumas pessoas me dizem simplesmente: “vou te contar uma história pra você escrever”. Algumas falam assim porque sabem que venho pesquisando e escrevendo sobre temas que dizem respeito às mulheres negras, ao candomblé e as vivências do racismo.
Isso é interessante porque há uma disposição das pessoas, de um modo geral, e das mulheres negras particularmente, para que determinadas situações sejam registradas e para que suas experiências sirvam de reflexão para outras mulheres. Também reflete a importância que as pessoas conferem às coisas que são escritas e fixadas através de um texto. Revela ainda que muitas mulheres estejam lendo essas histórias e se identificando com muitas das situações que são contadas.
O problema é que isso carrega de maior compromisso quem escreve, pelo medo da história não ser bem compreendida, não ser bem relatada, ou mesmo de ser confundida com um caso real, datado, factual e não mais literal. A realidade é a inspiração, mas a linha condutora é a imaginação sonhadora que me permite brincar com os nomes das pessoas e com as possibilidades de diferentes desfechos.
Gosto de imaginar as situações que me são reveladas exatamente como me contam, por mais absurdas que pareçam. Eu ouço e gosto de ouvir, antes de qualquer coisa exercito meu ouvido e fico ávida por casos comuns, coisas do cotidiano, de gente próxima, presente na nossa memória e que têm prazer de se desvendar. Eu presto atenção a entonação e a emoção reveladas em cada trecho dos casos contados.
Muitas coisas que ouvi jamais contarei, são coisas que me foram ditas para serem guardadas e me servirem de aprendizado. Essas são revelações da confiança de muita gente em mim depositada e que eu gosto de saber que confiam em mim, essas eu não posso trair.
Mas a história de Graça ninguém sabe ao certo quando começa, pois quando ela apareceu já era uma mulher adulta, já trazia uma trajetória que a maioria não conhecia e ela não revelava.
Ela era uma mulher misteriosa, dura e muito criativa. As outras mulheres também não perguntavam quase nada da vida de Graça, pois achavam que aos poucos ela iria se revelar, outras achavam que ela era só mais uma mulher negra e pobre e que, portanto, não havia novidade ou mesmo, nada que a diferenciasse das demais e por isso ninguém se interessou por sua vida.
Graça guardava dentro dela muitas histórias que jamais seriam contadas se não houvesse alguém interessado nela. Mas ela também não queria causar interesse a alguém em especial, ela naquela altura da vida, queria apenas viver e ficar em paz. Em minha opinião, quando alguém aparece em silêncio e busca apenas ter paz é sinal de que já viveu muita coisa que quer esquecer, pois falar nos faz reviver e lembrar e isso Graça não estava disposta a fazer.
As outras mulheres não paravam de falar, da vida, dos amores, de casos de outras mulheres, dos homens, dos mistérios, mas Graça só observava, dela nada contava. Ouvia, refletia, mas se calava.
Ela era uma mulher inteligente, trabalhadora e bastante jeitosa nas artes. No terreiro era ela quem enfeitava todo o barracão para as festas, cada vez decorava de um jeito diferente. Fazia adereços, colocava flores, recortava bandeirolas, pintava desenhos. Em dias de festa ela trabalhava em silêncio, se dedicava e só sossegava quando tudo estava pronto.
Um dia me aproximei e me ofereci pra ajudar Graça a colar bandeirolas na festa de Xangô Ayrá. Ela foi me ensinando a refletir sobre a delicadeza do papel de seda, sobre a leveza que o vento deveria traduzir ao tocar cada bandeira, ao cenário que seria emoldurado por um trabalho bem feito e dedicado e acima de tudo que eu deveria refletir sobre minha vida e o que ela tangenciaria o mito de Xangô Ayrá, para melhor me integrar.
Então eu quis saber sobre ela, que significado dava aquele serviço, de onde ela veio e o que esperava daquela tarefa ao final da festa. Graça me disse que iria me contar só uma coisa e que daí em diante eu deduziria o restante.
Ela me disse que viveu no interior da Bahia, que foi criada num terreiro muito antigo, mas que as pessoas responsáveis pela casa já haviam morrido. Então, ela veio pra Salvador, trabalhar, estudar e se encontrar. Ela era Malê, mas como haviam poucas informações sobre seu povo, ela se aproximou daquela casa e por ali ficou. Ali as pessoas a receberam sem questionar, logo ela se integrou ao grupo, mas secretamente ela também tinha seu próprio culto.
Ser Malê era um grande mistério em Salvador, pois no passado a maioria tinha sido morta em revoltas na época da escravidão, outros retornaram a África mesmo na pós-abolição. Alguns que permaneceram se converteram a outras denominações religiosas e outras formas de devoção.
Os Malês eram negros islamizados e tinham um comportamento diferenciado dos demais. Eram constantemente rebeldes contra a condição de escravidão, porque tinham a crença que um Malê só deve se submeter ao seu Deus, preferindo muitas vezes a morte que viver como escravo de um branco.
Se tinha uma briga de rua, provavelmente um Malê estava envolvido; se alguém desafiasse uma autoridade um Malê seria suspeito; se por acaso uma revolução de repente começasse um Malê seria chamado e quando os estudantes faziam greve ou os motoristas paravam todo o trânsito um Malê era certamente o chefe do bando. E se um branco fosse confrontado por um preto, denunciado de racismo, julgado, preso e condenado, um Malê era o juiz deste sonho imaginado.
Graça como descendente deste povo, chegando a Salvador, logo se interessou pelas lutas do Movimento Negro e pelos direitos da população negra. Por isso inicialmente ela achava que o Candomblé era uma religião que não ajudava, por distrair seus adeptos sem fortalecê-los para o enfrentamento da realidade racista daquela cidade.
Então, Graça não espichava o cabelo, isso era contra sua beleza negra natural, usava roupas africanizadas para demonstrar suas origens e estudava as rebeliões e revoltas do povo negro buscando aumentar seus conhecimentos, para ajudar seu povo a elevar sua consciência racial.
Entretanto, quando chegou a Salvador foi o povo de terreiro quem a acolheu, lhe deu moradia, alimentação, sem cobrar nada de Graça. Daí ela ficou, nesse tempo observou que no candomblé se revive a realidade de reinados africanos dizimados e colonizados. Percebeu que aqui esses espaços foram sacralizados e preservados por amor a uma história que ninguém escreveu e que precisava ser preservada. Por resistência, através de uma memória que deu outro significado ao ser “negro” nessa sociedade.
Ela percebeu que não era só uma religião, mas sim uma re-leitura de mundo numa outra visão, que integrava todos os seres e nada ficava fora. Entendeu que a discriminação abalava os adeptos e por isso muitos não conseguiam assumir sua religiosidade.
Assim Graça mudou de idéia e passou a defender a religião dos orixás como mais uma expressão negra que o racismo discriminou. Ela era filha de Xangô Ayrá e como tal não admitia injustiça e lutava pela defesa dos direitos humanos através do combate a discriminação racial.
Ela contou que um dia passava pela porta daquela casa e de repente se arrepiou, ficou tonta e um vento forte a tomou. Ela passou mal e um homem negro levou-a e lhe ofereceu água. Ela bebeu, se acalmou, mas a cabeça continuou a doer. Então o homem lhe apresentou a Iyalorixá da casa que a recebeu, ofereceu-lhe um chá e depois que ela bebeu logo melhorou.
Em seguida Graça disse que ficou mais calma e adormeceu, quando acordou era noite e a festa de Xangô Ayrá estava agitada. Então ela levantou, foi até o barracão e lá encontrou tudo enfeitado, as músicas a tocar e o povo dançando no xirê. Graça entrou no salão e viu o teto girar com suas lindas bandeirolas, seu corpo levitou e um vendaval começou, foi então que Ayrá tomou seu ser e ela não viu mais nada.
Quando acordou era Gracinha de Ayrá, a Yaô mais nova de Xangô que guarda o Axé e o segredo dos Malês e zela pela justiça do povo Iorubá.
LINDA HISTÓRIA! É ISSO AÍ: O NEGRO É FORÇA, GARRA, BELEZA, ORGULHO... SE EXISTE UM POVO A SER ADMIRADO É ESTE! QUE SEMPRE RESPEITOU OUTROS POVOS E NUNCA FOI RESPEITADO! SE ENVERGA MAIS NÃO QUEBRA! NUNCA DEIXOU ASSASSINAREM SUA TRADIÇÃO E SUA FÉ! É O POVO MAIS FORTE DO MUNDO! SALVE OS NEGROS, SALVE OS ORIXÁS, SALVE XANGÔ!
ResponderExcluirÉ UM POVO DIGNO DE RESPEITO E DE ADMIRAÇÃO.
E VOCÊ ESCREVE LINDAMENTE! MUITO SUCESSO NA SUA VIDA!
OPS, "MAS"!
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