domingo, 11 de setembro de 2011

A História de Conceição ou: “De quando Dandalunda encontra Nzila”

 
 
Conceição começou a contar que tudo começou naquela semana, ela não estava muito afim de trabalhar, muito menos de ficar em pé o dia todo, fazendo o cabelo das outras mulheres, estava cansada e triste. Ela não costumava se entristecer com qualquer coisa, pois era uma mulher forte e destemida, mas mesmo as mais fortes e destemidas mulheres negras têm seus dias de reflexão em torno de si mesmas, e ai fazem uma conta de subtração de tudo que viveram e fizeram até ali, a partir de tudo que acreditaram, planejaram e desejaram vir a ser.
Nas suas contas Deus estava lhe devendo algumas coisas e isso a entristecia, pois, em sua avaliação, ela vinha sendo uma boa pessoa, com bastante saldo na conta da vida. No domingo mesmo, ela foi à Igreja do Bonfim e assistiu cinco missas seguidas e nada, ninguém interessante apareceu, ninguém a cortejou e ela mais uma vez voltou para casa e se entregou a rotina de outra semana de trabalho e a fazer o cabelo das outras mulheres, mas dessa vez até queimou o cocuruto de algumas delas.
Neste sábado, ela decidiu não fazer o cabelo de ninguém e resolveu ir a um terreiro de Candomblé, a convite de Rosa. Fazia muito tempo que Rosa já lhe convidava para ir até seu terreiro na Mata Escura, mas Conceição sempre inventava uma desculpa, pois achava que Candomblé não era religião, gostava das festas mas, religião para ela era frequentar uma igreja ouvir ladainha e falar sobre a vida de Jesus Cristo, seus exemplos, suas recomendações, tentando aplicar o que fosse possível a sua própria vida.
Mesmo assim, ela ouviu Rosa por meses contar vários casos de mulheres que conseguiram encontrar o equilíbrio, a saúde e o amor, após seguir as orientações de sua Mametu de Inquice, uma mulher forte e poderosa da Mata Escura. Por isso, Conceição pensou que não custava nada tentar, e resolveu acompanhar Rosa naquela semana. Também porquê, a tristeza que a acompanhava nos últimos tempos a estava fazendo chorar escondido e até mesmo desejar sumir do mundo, tudo isso já tinha passado por sua cabeça.
O terreiro que Rosa frequentava era uma casa de Candomblé de nação Bantu. Vale pontuar aqui, que as religiões afro-brasileiras, nascidas a partir da escravidão no Brasil, são na verdade um tipo de organização sócio-religiosa inspirada em padrões comuns de tradições africanas, baseadas em um sistema de crença, visão de mundo e linguagens. Essas religiões já nasceram diferenciadas das demais, pois seu objetivo nunca foi capturar fiéis, mas sim devolver a África mítica ao povo da diáspora.
Tal visão de África cumpria um papel parecido ao ideário de paraíso cristão, mas com muitas diferenças, uma delas era a de poder ser reconstruído em terras brasileiras, além do fato de não ser habitado exclusivamente por brancos e pessoas “boas”. O Candomblé tem uma estrutura eclesial que remete a reinados africanos, e sua hierarquia reproduz os modos de vida de tais reinados. Na maioria das casas a liderança é feminina e tais mulheres administram o espaço mítico como verdadeiras rainhas. Os Candomblés de nação Bantu no Brasil ficaram conhecidos por denominações muito amplas, que encerram um sem número de etnias e línguas, que têm sua origem distribuída entre os atuais territórios do Congo e de Angola.
Para os negros escravizados, reconstruir a África no Brasil através dos Candomblés foi sua forma de não enlouquecer, adoecer ou mesmo de não se deixar morrer. Inicialmente doenças como depressão e loucura, eram bastante comuns entre os negros, afinal de contas perder sua referência, sua terra, sua família, seus amores e ser jogado em um outro mundo, numa realidade imunda, perversa, por um povo embrutecido e ignorante como os europeus, no cenário da escravidão, não era uma condição nada salutar.
Particularmente porque os negros, apesar de terem sido animalizados pelos brancos, eram essencialmente seres sensíveis e espiritualizados, daí inventaram o Candomblé, o Samba, o Quilombo, a Capoeira, o Afoxé.. para defesa de um legado, além disso possuíam um desejo de liberdade que nenhum outro povo jamais teria e esse desejo precisava de espaços.
Essa liberdade não deveria se confundir com libertinagem, ela era o sonho de viver sua própria negritude, de compatilhar com as forças da natureza sua essência sem repressão, de poder ouvir o silêncio sem hora marcada, de poder amar sem culpa ou pecado, e  de criar seus filhos como pessoas livres e felizes. Coisas difíceis de alcançar diante da realidade vivenciada. Mas, ainda assim, foi possível reinventar a liberdade e transubstanciar a dor através de uma visão de mundo ímpar e extremamente complexa, além de possuírem criatividade e sensibilidade inclusive para isso.
Uma das formas encontradas foi sacralizar tudo que remetesse a essa África perdida e sufocada dentro de cada negro e negra. Isso só foi possível por conta da religião: o Candomblé. Essa religiosidade dava respostas e significados novos a suas existências e espaço para que essa África sufocada fosse libertada, nomeada e ressignificada em seus corpos.
A vida religiosa em um Candomblé na Bahia está centralizada nos terreiros, espaço sacralizado comumente chamado de roça, a maioria fica situada em locais afastados do centro urbano, antigos mocambos, prováveis remanescentes de Quilombos. Esses espaços sofreram perseguição policial contra a liberdade de existirem até os idos de 1976, a partir daí foram desobrigados de solicitar permissão de delegacias de polícia para realizar suas celebrações, mas não deixaram de sofrer com a intolerância, o ódio, o desrespeito e o preconceito religioso, principalmente os Bantu, os primeiros a chegarem aqui na condição de povos escravizados.
As pessoas de fora não entendiam o papel civilizatório e terapêutico do Candomblé, pois o que viam eram negras e negros entoando cânticos em uma língua desconhecida e dançando uma dança frenética e sem sentido. Acontece que tais pessoas jamais poderiam ou poderão ver o que é invisível aos olhos, sentir o que só sente quem compreende a dimensão perversa da prisão de almas e as possibilidades de multiplicação de todas essas energias viabilizadas pela mistura de culturas negras, visões de mundo, saberes milenares e concepções de divino que ultrapassam o humano, grupos diversos, que nesse convivio precisavam dialogar e construir outras fronteiras no universo de um imaginário afirmativo comum: a África de seus ancestrais.
Portanto, naquela época ir ao Candmblé era também uma forma de catarse, de terapia e ir a um Candomblé na Mata Escura era algo muito perigoso pois ainda precisava ser feito de forma disfarçada. Conceição e Rosa sairam à tarde e só pretendiam voltar de lá no dia seguinte. Como já tinha ido em algumas festas de Candomblé, Conceição já sabia como se comportar e toda a etiqueta que um terreiro exige. Mas, ela não conhecia essa casa e nunca tinha ido em um terreiro de angoleiros, por isso estava curiosa e ansiosa para observar as diferenças e as belezas referenciadas por Rosa.
Para chegar até o local na Mata Escura era muito complicado, pois tiveram que pegar dois ônibus, caminhar por quilômetros e seguir por uma estrada de barro em meio a matagais. Só Rosa conhecia o caminho, mas outras pessoas também estavam seguindo naquela direção, o que as deixou tranquilas. Num certo ponto do caminho um homem forte, negro, de meia estatura se aproximou delas e ofereceu ajuda, pois Rosa levava consigo muitas sacolas com suas roupas, folhas e dois galos brancos que seriam oferecidos a Nzila antes da festa.
Rosa não se fez de rogada e aceitou a ajuda do simpático rapaz, que em seguida passou a puxar conversa com as duas mulheres e a assobiar uma canção inquietante que Conceição desconhecia. Ele disse que se chamava Procópio e que era Caçanje, ou seja, ele era proveniente de uma das nações de angoleiros e que também estava indo para uma festa de Candomblé, pois ele era um Tata Mavambu.
Muita coisa que ele falava Conceição não entendia, mas disfarçava. Ela ficou encantada com a gentileza, simpatia e beleza do rapaz e queria saber mais coisas sobre ele, mas de repente o tempo fechou e começou a chover. Então elas tiveram que acelerar o passo para não deixar a chuva molhar seus cabelos, recém espichados no ferro. O rapaz também correu, só que correram em direções opostas e quando chegaram no terreiro Rosa estava virada em Bamburucema, e Conceição percebeu que ele havia desaparecido com as sacolas e todas as suas coisas.
Sua preocupação maior eram os galos de Nzila, que elas tinham prometido trazer. Daí Conceição falou com as pessoas da casa sobre o ocorrido e sobre o rapaz que conheceram no caminho e todas disseram não saber de nenhum homem por nome de Procópio. Ela ficou aborrecida e se sentiu enganada pensando ser aquele, certamente, um malandro da região, que através deste golpe ficou com as suas coisas.
As pessoas da casa estavam todas atarefadas na organização da festa e ela passou a colaborar nesta realização. Conceição foi ajudar outras mulheres a engomar as roupas que seriam vestidas à noite. Em um momento, uma das mulheres solicitou a ajuda dela para ir até o rio buscar água para lavar os pratos e panelas. No caminho Conceição perguntou o que significava ser um “Tata Mavambu”.
A mulher lhe explicou que ser “Tata” compete apenas aos homens e exige anos de aprendizado, a pessoa fica um tempo sendo observada para se perceber se tem perfil e aos poucos os Inquices indicam os escolhidos para tal função. São homens honrados, guerreiros, defensores incontestáveis das tradições e da cultura Bantu onde quer que ela se expresse.
Os atabaques do Candomblé, por exemplo, só podem ser tocados pelo Tata Xicarangoma, que é o responsável pelo Rum (o atabaque maior), e pelos Ogans nos atabaques menores sob o seu comando, é ele que começa o toque e é através do seu desempenho no Rum que o Inquice vai executar sua coreografia, de caça, de guerra, ou de amor sempre acompanhando o floreio do Rum.
Na nação Angola existem várias denominações para estes senhores, além de Tata Xicarangoma, eles podem ser: Tata Nganga Lumbido -  que é o guardião das chaves da casa; Tata Kisaba -  responsável pelas folhas; Tata Kivanda ou Tata Pocó - responsável pelos sacrifícios animais; Tata Muloji - preparador dos encantamentos com as folhas sagradas e cabaças e Tata Mavambu -  que é o que cuida da casa e das oferendas de Nzila/Exú.
Ao ouvir tais palavras Conceição perdeu os sentidos e desmaiou na beira do rio, sendo socorrida pela mulher com quem ela estava e outras pessoas que vieram ajudar. Ela foi recolhida neste mesmo dia só acordando semanas depois. Rosa voltou pra casa no dia seguinte e relatou o fato às outras mulheres, que ficaram todo esse tempo sem sua cabeleireira.
Na festa da saída de Conceição muitas mulheres que faziam o cabelo com ela acompanharam Rosa e foram assistir e acolher a cabeleireira, agora também angoleira. No caminho passaram pelo matagal e saíram em uma encruzilhada, no mesmo ponto onde Rosa e Coceição tinham se perdido do rapaz da outra vez. Neste ponto as mulheres ouviram o assobio da canção cantada por Procópio e ficaram arrepiadas pois ele não estava ali, Rosa recebeu Matamba e as outras a levaram até o terreiro, onde ela só acordou depois da festa.
À noite, na festa, o barracão estava cheio, lindamente enfeitado e perfumado. Dandalunda fez suas três saídas, no corpo de Conceição, ela tinha perdido sua linda cabeleira e parecia uma menina meiga, serena e Rosa de Bamburucema bailava no barracão invocando os ventos. A ventania se apossou de todo o espaço e os Alabês na hora do nome dobraram no couro os atabaques, pois tinha adentrado o barracão um grande Tata de Inquice da região. Era Procópio, ele foi convidado para dar o nome da nova muzenza. Procópio puxou o cântico da música que ele assobiava na estrada, agora cantando com sua voz rouca e afinada a música de Dandalunda, nessa hora muitas pessoas da platéia viraram no santo. Bamburucema e Dandalunda bailavam em seu entorno.
Procópio perguntou então no ouvido da muzenza de Dandalunda qual o seu nome ao que ela gritou bem alto “Aduni” (aquela que traz a douçura ao mundo). A festa foi até o amanhecer do dia e quando Conceição acordou estava deitada ao lado de Procópio, em uma cabana próxima a encruzilhada de um matagal. Ela não lembrava da noite anterior, mas ele lhe falou que agora ela era uma iniciada no Candomblé de nação Angola. Ela então perguntou porque as pessoas disseram que não o conheciam ao que ele respondeu “E vc onde estava? Porque demorou tanto de vir ao meu encontro e de trazer meus galos? Ninguém aqui me conhece pelo nome de Procópio, aqui eu sou Aluvaiá um Tata Mavambu e agora seu servo”.
 

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