Conceição começou a contar que tudo começou
naquela semana, ela não estava muito afim de trabalhar, muito menos de ficar em
pé o dia todo, fazendo o cabelo das outras mulheres, estava cansada e triste.
Ela não costumava se entristecer com qualquer coisa, pois era uma mulher forte
e destemida, mas mesmo as mais fortes e destemidas mulheres negras têm seus
dias de reflexão em torno de si mesmas, e ai fazem uma conta de subtração de
tudo que viveram e fizeram até ali, a partir de tudo que acreditaram, planejaram
e desejaram vir a ser.
Nas suas contas Deus estava lhe devendo algumas
coisas e isso a entristecia, pois, em sua avaliação, ela vinha sendo uma boa
pessoa, com bastante saldo na conta da vida. No domingo mesmo, ela foi à Igreja
do Bonfim e assistiu cinco missas seguidas e nada, ninguém interessante
apareceu, ninguém a cortejou e ela mais uma vez voltou para casa e se entregou
a rotina de outra semana de trabalho e a fazer o cabelo das outras mulheres,
mas dessa vez até queimou o cocuruto de algumas delas.
Neste sábado, ela decidiu não fazer o cabelo de
ninguém e resolveu ir a um terreiro de Candomblé, a convite de Rosa. Fazia
muito tempo que Rosa já lhe convidava para ir até seu terreiro na Mata Escura,
mas Conceição sempre inventava uma desculpa, pois achava que Candomblé não era
religião, gostava das festas mas, religião para ela era frequentar uma igreja
ouvir ladainha e falar sobre a vida de Jesus Cristo, seus exemplos, suas
recomendações, tentando aplicar o que fosse possível a sua própria vida.
Mesmo assim, ela ouviu Rosa por meses contar
vários casos de mulheres que conseguiram encontrar o equilíbrio, a saúde e o
amor, após seguir as orientações de sua Mametu de Inquice, uma mulher forte e
poderosa da Mata Escura. Por isso, Conceição pensou que não custava nada
tentar, e resolveu acompanhar Rosa naquela semana. Também porquê, a tristeza
que a acompanhava nos últimos tempos a estava fazendo chorar escondido e até
mesmo desejar sumir do mundo, tudo isso já tinha passado por sua cabeça.
O terreiro que Rosa frequentava era uma casa de
Candomblé de nação Bantu. Vale pontuar aqui, que as religiões afro-brasileiras,
nascidas a partir da escravidão no Brasil, são na verdade um tipo de
organização sócio-religiosa inspirada em padrões comuns de tradições africanas,
baseadas em um sistema de crença, visão de mundo e linguagens. Essas religiões
já nasceram diferenciadas das demais, pois seu objetivo nunca foi capturar
fiéis, mas sim devolver a África mítica ao povo da diáspora.
Tal visão de África cumpria um papel parecido ao
ideário de paraíso cristão, mas com muitas diferenças, uma delas era a de poder
ser reconstruído em terras brasileiras, além do fato de não ser habitado
exclusivamente por brancos e pessoas “boas”. O Candomblé tem uma estrutura
eclesial que remete a reinados africanos, e sua hierarquia reproduz os modos de
vida de tais reinados. Na maioria das casas a liderança é feminina e tais
mulheres administram o espaço mítico como verdadeiras rainhas. Os Candomblés de
nação Bantu no Brasil ficaram conhecidos por denominações muito amplas, que
encerram um sem número de etnias e línguas, que têm sua origem distribuída
entre os atuais territórios do Congo e de Angola.
Para os negros escravizados, reconstruir a
África no Brasil através dos Candomblés foi sua forma de não enlouquecer,
adoecer ou mesmo de não se deixar morrer. Inicialmente doenças como depressão e
loucura, eram bastante comuns entre os negros, afinal de contas perder sua
referência, sua terra, sua família, seus amores e ser jogado em um outro mundo,
numa realidade imunda, perversa, por um povo embrutecido e ignorante como os
europeus, no cenário da escravidão, não era uma condição nada salutar.
Particularmente porque os negros, apesar de
terem sido animalizados pelos brancos, eram essencialmente seres sensíveis e
espiritualizados, daí inventaram o Candomblé, o Samba, o Quilombo, a Capoeira,
o Afoxé.. para defesa de um legado, além disso possuíam um desejo de liberdade
que nenhum outro povo jamais teria e esse desejo precisava de espaços.
Essa liberdade não deveria se confundir com
libertinagem, ela era o sonho de viver sua própria negritude, de compatilhar
com as forças da natureza sua essência sem repressão, de poder ouvir o silêncio
sem hora marcada, de poder amar sem culpa ou pecado, e de criar seus
filhos como pessoas livres e felizes. Coisas difíceis de alcançar diante da
realidade vivenciada. Mas, ainda assim, foi possível reinventar a liberdade e
transubstanciar a dor através de uma visão de mundo ímpar e extremamente
complexa, além de possuírem criatividade e sensibilidade inclusive para isso.
Uma das formas encontradas foi sacralizar tudo
que remetesse a essa África perdida e sufocada dentro de cada negro e negra.
Isso só foi possível por conta da religião: o Candomblé. Essa religiosidade dava
respostas e significados novos a suas existências e espaço para que essa África
sufocada fosse libertada, nomeada e ressignificada em seus corpos.
A vida religiosa em um Candomblé na Bahia está
centralizada nos terreiros, espaço sacralizado comumente chamado de roça, a
maioria fica situada em locais afastados do centro urbano, antigos mocambos,
prováveis remanescentes de Quilombos. Esses espaços sofreram perseguição
policial contra a liberdade de existirem até os idos de 1976, a partir daí
foram desobrigados de solicitar permissão de delegacias de polícia para
realizar suas celebrações, mas não deixaram de sofrer com a intolerância, o
ódio, o desrespeito e o preconceito religioso, principalmente os Bantu, os
primeiros a chegarem aqui na condição de povos escravizados.
As pessoas de fora não entendiam o papel
civilizatório e terapêutico do Candomblé, pois o que viam eram negras e negros
entoando cânticos em uma língua desconhecida e dançando uma dança frenética e
sem sentido. Acontece que tais pessoas jamais poderiam ou poderão ver o que é
invisível aos olhos, sentir o que só sente quem compreende a dimensão perversa
da prisão de almas e as possibilidades de multiplicação de todas essas energias
viabilizadas pela mistura de culturas negras, visões de mundo, saberes
milenares e concepções de divino que ultrapassam o humano, grupos diversos, que
nesse convivio precisavam dialogar e construir outras fronteiras no universo de
um imaginário afirmativo comum: a África de seus ancestrais.
Portanto, naquela época ir ao Candmblé era
também uma forma de catarse, de terapia e ir a um Candomblé na Mata Escura era
algo muito perigoso pois ainda precisava ser feito de forma disfarçada.
Conceição e Rosa sairam à tarde e só pretendiam voltar de lá no dia seguinte.
Como já tinha ido em algumas festas de Candomblé, Conceição já sabia como se
comportar e toda a etiqueta que um terreiro exige. Mas, ela não conhecia essa
casa e nunca tinha ido em um terreiro de angoleiros, por isso estava curiosa e
ansiosa para observar as diferenças e as belezas referenciadas por Rosa.
Para chegar até o local na Mata Escura era muito
complicado, pois tiveram que pegar dois ônibus, caminhar por quilômetros e
seguir por uma estrada de barro em meio a matagais. Só Rosa conhecia o caminho,
mas outras pessoas também estavam seguindo naquela direção, o que as deixou
tranquilas. Num certo ponto do caminho um homem forte, negro, de meia estatura
se aproximou delas e ofereceu ajuda, pois Rosa levava consigo muitas sacolas
com suas roupas, folhas e dois galos brancos que seriam oferecidos a Nzila
antes da festa.
Rosa não se fez de rogada e aceitou a ajuda do
simpático rapaz, que em seguida passou a puxar conversa com as duas mulheres e
a assobiar uma canção inquietante que Conceição desconhecia. Ele disse que se
chamava Procópio e que era Caçanje, ou seja, ele era proveniente de uma das
nações de angoleiros e que também estava indo para uma festa de Candomblé, pois
ele era um Tata Mavambu.
Muita coisa que ele falava Conceição não
entendia, mas disfarçava. Ela ficou encantada com a gentileza, simpatia e
beleza do rapaz e queria saber mais coisas sobre ele, mas de repente o tempo
fechou e começou a chover. Então elas tiveram que acelerar o passo para não
deixar a chuva molhar seus cabelos, recém espichados no ferro. O rapaz também
correu, só que correram em direções opostas e quando chegaram no terreiro Rosa
estava virada em Bamburucema, e Conceição percebeu que ele havia desaparecido
com as sacolas e todas as suas coisas.
Sua preocupação maior eram os galos de Nzila,
que elas tinham prometido trazer. Daí Conceição falou com as pessoas da casa
sobre o ocorrido e sobre o rapaz que conheceram no caminho e todas disseram não
saber de nenhum homem por nome de Procópio. Ela ficou aborrecida e se sentiu
enganada pensando ser aquele, certamente, um malandro da região, que através
deste golpe ficou com as suas coisas.
As pessoas da casa estavam todas atarefadas na
organização da festa e ela passou a colaborar nesta realização. Conceição foi
ajudar outras mulheres a engomar as roupas que seriam vestidas à noite. Em um
momento, uma das mulheres solicitou a ajuda dela para ir até o rio buscar água
para lavar os pratos e panelas. No caminho Conceição perguntou o que
significava ser um “Tata Mavambu”.
A mulher lhe explicou que ser “Tata” compete
apenas aos homens e exige anos de aprendizado, a pessoa fica um tempo sendo
observada para se perceber se tem perfil e aos poucos os Inquices indicam os
escolhidos para tal função. São homens honrados, guerreiros, defensores
incontestáveis das tradições e da cultura Bantu onde quer que ela se expresse.
Os atabaques do Candomblé, por exemplo, só podem
ser tocados pelo Tata Xicarangoma, que é o responsável pelo Rum (o atabaque
maior), e pelos Ogans nos atabaques menores sob o seu comando, é ele que começa
o toque e é através do seu desempenho no Rum que o Inquice vai executar sua
coreografia, de caça, de guerra, ou de amor sempre acompanhando o floreio do
Rum.
Na nação Angola existem várias denominações para
estes senhores, além de Tata Xicarangoma, eles podem ser: Tata Nganga Lumbido
- que é o guardião das chaves da casa; Tata Kisaba - responsável
pelas folhas; Tata Kivanda ou Tata Pocó - responsável pelos sacrifícios
animais; Tata Muloji - preparador dos encantamentos com as folhas sagradas e
cabaças e Tata Mavambu - que é o que cuida da casa e das oferendas de Nzila/Exú.
Ao ouvir tais palavras Conceição perdeu os
sentidos e desmaiou na beira do rio, sendo socorrida pela mulher com quem ela
estava e outras pessoas que vieram ajudar. Ela foi recolhida neste mesmo dia só
acordando semanas depois. Rosa voltou pra casa no dia seguinte e relatou o fato
às outras mulheres, que ficaram todo esse tempo sem sua cabeleireira.
Na festa da saída de Conceição muitas mulheres
que faziam o cabelo com ela acompanharam Rosa e foram assistir e acolher a
cabeleireira, agora também angoleira. No caminho passaram pelo matagal e saíram
em uma encruzilhada, no mesmo ponto onde Rosa e Coceição tinham se perdido do
rapaz da outra vez. Neste ponto as mulheres ouviram o assobio da canção cantada
por Procópio e ficaram arrepiadas pois ele não estava ali, Rosa recebeu Matamba
e as outras a levaram até o terreiro, onde ela só acordou depois da festa.
À noite, na festa, o barracão estava cheio,
lindamente enfeitado e perfumado. Dandalunda fez suas três saídas, no corpo de
Conceição, ela tinha perdido sua linda cabeleira e parecia uma menina meiga,
serena e Rosa de Bamburucema bailava no barracão invocando os ventos. A
ventania se apossou de todo o espaço e os Alabês na hora do nome dobraram no
couro os atabaques, pois tinha adentrado o barracão um grande Tata de Inquice
da região. Era Procópio, ele foi convidado para dar o nome da nova muzenza.
Procópio puxou o cântico da música que ele assobiava na estrada, agora cantando
com sua voz rouca e afinada a música de Dandalunda, nessa hora muitas pessoas
da platéia viraram no santo. Bamburucema e Dandalunda bailavam em seu entorno.
Procópio perguntou então no ouvido da muzenza de
Dandalunda qual o seu nome ao que ela gritou bem alto “Aduni” (aquela que traz
a douçura ao mundo). A festa foi até o amanhecer do dia e quando Conceição
acordou estava deitada ao lado de Procópio, em uma cabana próxima a
encruzilhada de um matagal. Ela não lembrava da noite anterior, mas ele lhe
falou que agora ela era uma iniciada no Candomblé de nação Angola. Ela então
perguntou porque as pessoas disseram que não o conheciam ao que ele respondeu
“E vc onde estava? Porque demorou tanto de vir ao meu encontro e de trazer meus
galos? Ninguém aqui me conhece pelo nome de Procópio, aqui eu sou Aluvaiá um
Tata Mavambu e agora seu servo”.
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