Todo mundo tem suas manias, elas sabiam reconhecer isso e mais que isso elas gostavam de reafirmar suas diferenças. Mulheres negras, moradoras daquele bairro pobre e periférico, com seus pensamentos e reflexões sobre o mundo. Aliás, uma das coisas que mais as intrigou essa semana foi o fato de terem visto nas ruas, nos bailes, praias, nas festas de Largo e em muitos outros espaços públicos, tantas crianças trabalhando.
As crianças faziam inúmeros serviços: catavam latinhas, garrafas e papel usado nas festas, ou carregavam coisas para vender em pequenas porções como: amendoim, castanhas, pipocas, picolés, roletes, enfim, as mais variadas manufaturas fabricadas em casa por suas mães. Eram crianças, na sua grande maioria filhas só de mães, os pais não gostavam destes filhos (as), por isso eles abandonavam a casa logo que eles (as) nasciam. Em Salvador, a grande maioria das famílias era mantida por tais mulheres negras, que utilizavam de todos os seus conhecimentos para criar seus filhos com dignidade e produzir manufaturas era uma dessas formas.
Entretanto, meu caro leitor se uma dessas mulheres abandonasse seus filhos toda sociedade as condenava, os juízes criavam leis para prendê-las, puni-las, as organizações de mulheres brancas, que zelavam por certo modelo de família, ficavam horrorizadas com esse tipo de mulher. Achavam que tais famílias eram realmente ameaçadoras. Por conta disso, essas mulheres evitavam freqüentar alguns lugares e procuravam não chamar a atenção para sua condição de solidão. Já as crianças não tinham muita alternativa: ou ajudavam trabalhando, ou também sofreriam com a escassez dos recursos.
Joanete, quando criança, também trabalhou. Felizmente em sua rua tinha uma fabricação caseira de bolsas de couro. Neste lugar eles pagavam dez centavos por cada bolsa pintada com desenhos da Bahia. Ela era uma das crianças pintoras: era Elevador Lacerda, Praia de Itapoã, Farol da Barra, Baianas de Acarajé etc. Usava o pincel com uma habilidade extrema, permitida por sua pequena mãozinha afiada e motivada pela necessidade de ajudar sua mãe. Muitas vezes batia o recorde de bolsas pintadas por dia, tinha seu próprio pincel e gostava demais do cheiro da tinta.
Enquanto trabalhava Joanete pensava que se o governo trabalhasse tanto quanto as crianças de Salvador, talvez as coisas não fossem tão difíceis assim. Sobre as crianças havia uma cobrança das mães, dos mais velhos e do governo quem cobrava?
De vez em quando sua mãe a levava na casa dos brancos, onde trabalhava, e recomendava a Joanete que observasse como os brancos viviam. Como suas crianças eram educadas e limpas, como as casas eram perfumadas e ventiladas. Ela até tentava observar essas coisas para depois comentar com a mãe o que mais gostou e o que jamais aprovaria. Entretanto, na grande maioria das vezes, Joanete se distraia observando o pai das crianças.
Não por ele ser um homem bonito ou atraente, ela não achava isso, mas ele era “o pai” e essa era uma figura que Joanete jamais conheceu. Ao vê-lo agir com seus filhos e filhas ela ficava encantada, buscava fotografar aquela imagem. Geralmente as crianças brancas pediam dinheiro ao pai, para levar a escola e o pai dava dois reais! Joanete pensava em quantas bolsas ela teria que pintar para ganhar aquele dinheiro, talvez uma semana inteira de pintura...
Quando voltava para sua casa a mãe ia perguntando do que mais gostou e ela falava dos aparelhos eletrônicos, que nem sabia que existia: uma máquina que lavava os pratos, outra que lavava as roupas, chuveiro com água quentinha, esse ela até conhecia, mas em sua casa não tinha. A mãe balançava a cabeça afirmativamente e achava que dessa forma sua filha aprenderia mais sobre outros estilos de vida e que isso ajudaria em sua educação.
Porém, isso fez com que Joanete pensasse que ter educação era ter aquelas coisas e que para ter direito a essa vida ela teria que ser branca. Pois, esse tipo de realidade ela só conheceu no mundo dos brancos.
Ao voltar para sua comunidade outras crianças queriam saber: como foi a experiência, o que gostou, o que comeu, o que viu, o que fez, o que trouxe pra elas? Essas eram situações comuns entre as crianças daquele lugar, pois a maioria das mães eram empregadas domésticas em casas da orla e todas, quando iam com suas mães, sempre voltavam trazendo alguma novidade. Geralmente eram brinquedos quebrados que os brancos as deixavam levar, roupas usadas, sobras de comida, garrafas vazias, revistas, remédios vencidos, caixas, objetos quebrados, enfim tudo que eles já não queriam mais em suas casas e por serem muito “caridosos” faziam essas pequenas doações.
Mas, o que Joanete mais gostava de trazer eram histórias sobre as famílias, coisas que ela ouvia e estranhava e sobre a figura do pai. Como ele era, como se comportava, como tratava as crianças, a esposa e os empregados. As outras crianças também gostavam, as meninas brincavam de bonecas e inventavam um marido assim. Os meninos brincavam com seus carrinhos e também queriam ser um homem assim.
Foi dessa forma que sua mãe lhe ensinou, segundo ela, “a gostar do que é bom”. Assim o bom para Joanete era o que fosse aprovado e utilizado no mundo dos brancos. Por conta disso, começou a alisar o cabelo desde menina. Ela não tinha medo do ferro, não se importava com o calor na cabeça, não fazia questão de ir à praia, não tomava banho de chuva e não brincava de outra coisa que não fosse ser a patroa.
Joanete queria embranquecer. Então evitava o sol, aprendia com as novelas, copiava as modelos e estudou mais que qualquer outra criança da sua comunidade para ser professora. Suas bonecas eram todas loiras, em seus desenhos da escola ela também se desenhava branca e loira e era assim que representava toda sua família.
Sua mãe freqüentava um Terreiro de Candomblé em Cosme de Farias, ela era Ekedy do orixá da mãe de santo da casa. Joanete freqüentou o mesmo local em sua infância, levada pela mãe, mas não gostava. Achava que era coisa de preto, que o barulho era muito grande, que as comidas eram gordurosas e que nada ali prestava. Por isso passava mal todas as vezes que a mãe insistia e a levava. Ficava enjoada e tonta, queria sair logo dali, sentia dor de cabeça e até sua perna cansava.
Quando ficou mocinha passou a freqüentar um Centro Espírita, para ela isto sim era religião, pois havia ensinamento, doutrina, livros, pessoas e mesas brancas e era esse o meio que ela queria estar. Quando ia fazer o cabelo no salão de sábado sempre trazia histórias do Centro, livros de poesia, charadas de almanaque, revistas de manequins com vestidos para serem copiados. Depois que seu cabelo era espichado ela colocava uma touca e um lenço, para conservar o espichamento por mais tempo.
Joanete era meio desbocada e falava muitos palavrões e ousadias, coisas que as outras mulheres gargalhavam e não acreditavam que uma professora diria. Ela cantava em voz alta canções que aprendeu no Centro, falava um português bem explicado e pronunciado como os brancos. Daquela forma de falar ela muitas vezes assustava as outras, pois parecia até outra língua pelas palavras que ela conhecia e quando alguém falava algo errado ela sempre corrigia.
Certa vez foi numa festa de Largo na companhia de uma amiga e lá conheceu um marinheiro bem afeiçoado (branco). O homem a cortejou e a levou pra dançar na barraca da Cabocla Jurema, lá eles namoraram, bebeu muito vinho de palma, dançou de rosto colado e comeu bolo de carimã, comprado nas mãos de uma criança do bairro. Joanete convidou o rapaz para ir ao Centro Espírita que ela freqüentava, o moço aceitou e no sábado seguinte lá mesmo eles se encontraram.
E quando a sessão começou um “Preto Véio” se apresentou no corpo do marinheiro que Joanete levou. Falou que queria charuto ou cigarro de fumo, que conhecia mulheres de todos os lugares do mundo, mas que se encantou com a “negona do cabelinho de fogo”. Ao ouvir aquilo Joanete se assustou e não aceitou que era dela que o “Preto Véio” falava, pois negona ela achava que não era e isso era um desagravo que ela não aceitava.
Saiu correndo do Centro se sentindo enganada, chorou muito frente ao espelho desesperada e cansada, viu que não era Branca de Neve, Cinderela, Gata Borralheira, nada.
Ela era só Joanete uma negona bonita, mas muito da mal educada.
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