sábado, 28 de maio de 2011

A História de Maria Helena ou: “ De como se conhece uma princesa Gêge”

Esta semana a história que contarei, ouvi de Maria Helena, a Gêge, se mentira ou verdade não sei, mas sei que todas no salão de beleza acreditavam no que ela dizia, pois um Gêge não mente nunca. De início de conversa é bom informar ao leitor o que significa ser Gêge, para o povo negro da Bahia e para aqueles que se definem como tal.

Houve um tempo em que era perigoso se dizer Gêge, pois eles eram culpabilizados por inúmeros crimes, eram vistos sempre como suspeitos, perigosos. Mas os Gêges vieram da mesma região que os Iorubas, o noroeste da África. Eles eram grandes feiticeiros islamizados e tinham desde lá desentendimentos políticos com os Iorubas. Os Gêges se consideravam legítimos donos da terra e de conhecimentos ancestrais que lhes concedia sabedoria e mistérios que os Iorubas jamais conheceram. A terra da qual se consideravam donos não era um pedaço qualquer, mas sim todo o planeta, pois sobre ela reinaram milhões de anos, antes mesmo que os “brancos” aqui rastejassem como coacervados ou provassem a tal maçã.

Maria Helena contava que seus mais velhos diziam que sabiam como desaparecer e como ficarem invisíveis em diversas situações. Podiam tomar o formato de qualquer ser vivo e viajar o mundo todo sem ninguém perceber. Os Gêges conheciam a natureza humana como nenhum outro povo, simplesmente por terem nascido antes de todos e nesse longo tempo, terem desenvolvido a habilidade de ler o pensamento das pessoas através de vários oráculos.

Se o tempo de repente nublava um Gêge desconfiava que algo sobrenatural estivesse ali implícito, se um cachorro latia enquanto as mulheres falavam, Maria Helena se calava, pior se um galo cantasse fora da hora, aí podia esperar, pois o que ela previa geralmente acontecia. Quando um raio cortava o céu ela balançava a cabeça e lia o que o céu dizia. Já, se fazia sol, colocava toda roupa para receber os raios solares e só depois guardava. Se ela sonhasse, todas se benziam e o silêncio era total até ela terminar de contar, nada se mexia. Assim é um Gêge, não se pode duvidar da sabedoria africana, particularmente dos povos mais antigos que ficaram milhões de anos observando e fazendo sua leitura científica deste mundo.

Um Gêge não anda, desliza como uma cobra, aliás, eles têm orgulho de se dizerem parentes das serpentes. Um Gêge não fala, profetiza, sussurra e sua voz parece geralmente uma oração, tem o poder de encantar. Um Gêge não come qualquer coisa, pois precisa saber e confiar na origem do que lhe é servido, uma vez que seu povo foi inúmeras vezes envenenado. Um Gêge não vai ao médico, porque utiliza exclusivamente as folhas de Ossaim. Um Gêge não confia nunca num “branco”, pois para eles um ser desprovido de cor é um ser marcado pelos Deuses para ser visto em qualquer lugar e isto os torna suspeitíssimos. Para vocês terem uma idéia, minha mãe muitas vezes quando reclamava comigo dizia: “Você parece que é Gêge!”, dito isto, do ponto de vista dela, era ser uma pessoa difícil e ensimesmada.

Mesmo em África os outros povos já temiam os Gêges, lá Maria Helena contava que seu povo vivia nas montanhas em cidades extremamente desenvolvidas, lugares escondidos e quando desciam para chegar até as outras cidades, era geralmente para levar o recado dos Desuses, presságios, informações caras, aos reis de outros povos. Nas cidades, quando eles chegavam o povo já sabia que algo estava para acontecer, pois todos respeitavam os Gêges. Foi assim com a escravização do povo Ioruba, eles foram avisados, mas não confiaram nos Gêges e essa era uma das mágoas silenciadas entre esses dois povos.

Maria Helena costurava sua própria roupa, ela tinha os modelos que vinham em sonho, e, mesmo tendo máquina de costura e amigas costureiras, ela não confiava. A vestimenta era toda combinada: vestido com torço e bolsa, até o sapato ela forrava. Pois sua roupa ao tempo em que era costurada era também abençoada, cada ponto recebia um sussurro e isso só ela sabia. Ela cozinhava em fogão de lenha, embora tivesse fogão a gás, que ficava em sua cozinha e só era utilizado para cozinhar a comida dos “brancos” na época do seu aniversário.

Sua casa tinha energia elétrica, mas não se acendia uma luz, ela era iluminada com a luz da lua e de candeeiros muito fortes, a energia elétrica só era utilizada também em seu aniversário. O chão de sua casa era de barro, embora ela tivesse condições de colocar o piso que quisesse, mas era assim que ela gostava e no seu aniversário jogava pacientemente areia fina e folhas de pitanga em toda sala, sempre entoando rezas. Seu aniversário, aliás, era comemorado duas vezes no ano: uma em que ela recebia os “brancos” dos lugares onde trabalhou ou trabalhava e em outra onde ela recebia os negros, amigos mais próximos, Gêges vindos de Cachoeira, que nem ela, e pessoas negras de outras nações.

Maria Helena identificava as pessoas por nações, era assim que ela fazia: observava o jeito de ser, a cor da pele, o cabelo, o perfil, o jeito do corpo, as opiniões, a risada e refletia. Observava também o andar, o gesticular e o tipo de comentário que cada pessoa fazia. A isso ela acrescentava os ruídos externos, o movimento dos ventos, o horário em que conheceu o indivíduo, e, entre outras observações, ela concluía. Daí em diante decidia se confiaria ou não. Inicialmente ela falava pouco com qualquer pessoa, preferia deixar a pessoa falar e ouvia, às vezes com os olhos fechados, outras vezes encarando firmemente o falante.

Um dia ela chegou pra fazer o cabelo e tinham outras duas mulheres a sua frente. Ela sentou e cochilou, enquanto as mulheres tagarelavam. Elas falavam de seus homens, namorados, companheiros etc. De repente, Maria Helena acordou e falou: “De maio a abri não vejo de quem rir, sete luas passarão e sete vezes chorarão”, em seguida profetizou algo na sua língua, que ninguém entendeu. As mulheres imediatamente se calaram.

As crianças queriam ser Gêge, porque tinham medo e imitavam Maria Helena, exceto Marinalva, uma das filhas adotadas de Rosa. Marinalva era pequena, mas muito pesada, tinha um corpo musculoso e firme, ela era a mais negra e retinta, das filhas adotadas de Rosa e vivia dando golpes de capoeira no ar. Seu cabelo nunca crescia, seus olhos eram graúdos e suas roupas eram sempre desajustadas, pois eram as sobras das sobras dos outros irmãos maiores. Rosa levou Marinalva pra fazer o cabelo um dia, se queixando da dificuldade de penteá-lo e dizendo que só o ferro pra amansar aquele pixaim, mas Maria Helena não deixou, tomou a menina assustada das mãos de Rosa e lhe fez tranças em Nagô.

Rosa lhe deu o nome de Marinalva, embora na sua certidão constasse outro nome, mas isso para nós não importava, era com apelidos que ela era tratada: “Tiziu, King-Kong, Betume”, enfim, tudo que fosse bem preto assim ela era chamada. Era uma garota muito estranha, observadora, as outras crianças não gostavam dela, porque ela era preta demais. Inventavam apelidos só para Marinalva, pois ela ainda por cima mijava na cama, falavam que ela não tinha mãe nem pai, que era filha do pé de Aroeira ou da Jabuticabeira. Mas, Marinalva não chorava às vezes ela até sorria e parecia que gostava e quando ela sorria parecia que o mundo parava, pois duas covinhas se formavam nas suas bochechas, seus olhos brilhavam iluminando todo o rosto e a gente se desconcertava.

Quando Rosa ia à Cidade Alta, entregar suas trouxas de roupa, Marinalva nunca queria ir, preferia ficar na casa de Maria Helena. Aí todo mundo respeitava, porque Maria Helena, que não dava trela pra criança alguma, com Marinalva ela até sorria e cantava cantigas do povo Gêge, histórias que ninguém sabia ela dividia com Marinalva. O tempo foi passando e Marinalva foi ficando cada vez mais na casa de Maria Helena.

A menina passou a costurar também suas roupas e a sussurrar como Maria Helena, passou a dormir cedo e acordar quando cantavam as galinhas. Nas brincadeiras de rua, de repente Marinalva aparecia e desaparecia, quando oferecíamos uma merenda ela nunca queria. Um dia Maria Helena foi pra Cachoeira, num certo período do ano, antes de seu aniversário como sempre e levou Marinalva junto com ela. As outras crianças ficaram com inveja da viagem. Quando a garota voltou, ela estava diferente, com o cabelo raspado, bem cortado rente, com seu sorriso mais lindo e vestindo branco diariamente.

A garota contava histórias de Cachoeira e dos lugares que conheceu na companhia de Maria Helena. Dizia que foi em festas maravilhosas e que lá ganhou muitos presentes: colares de contas, vestidos longos, sandálias de couro, torços e pulseiras prateadas, nesse lugar, disse ela, trataram-na como nós tratávamos as meninas “brancas”.

Na noite de finados Maria Helena foi à missa na igreja do Rosário dos Pretos e levou Marinalva com ela, na volta ela errou o caminho e a menina terminou caindo numa vala aberta, no buraco, ficou com o pé preso e gritou pedindo ajuda. Maria Helena se desesperou ao ver sua afilhada naquela situação, saiu, trouxe ajuda, mas quando voltou ela não estava mais no mesmo lugar, as pessoas só viram o rastro de uma cobra e a sombra da serpente, negra, rastejante. Alguns se armaram de paus e pedras e correram para matar o animal, mas Maria Helena não deixou, tomou a frente e imediatamente praguejou em Gêge-Nagô.

A cobra era Marinalva, filha de Bessém, rainha do povo Gêge uma nobre entre nós, pessoas tão pobres... Nesse momento ela desapareceu e só voltou sete dias depois, Maria Helena então, pediu permissão a Rosa e levou Marinalva pra Cachoeira, ela mora lá até hoje e se confirmou uma grande feiticeira.

sábado, 21 de maio de 2011

A História de Joana ou, de como ela conheceu um verdadeiro Bicho do Mato

Ela morava no interior, em uma cidade do sertão e nas férias de verão vinha ficar em Salvador, essa cidade sim era o que conhecia como “Bahia”. Assim que chegaram as pessoas a chamaram de “Bicho do Mato”, porque ela era muito arredia e assustada. Não confiava em ninguém e se admirava de tudo, no início não falava, se escondia embaixo das mesas, só com o tempo é que ela ia se aproximando e depois falando com um, ou outro. Para ela a Bahia era confusa, apressada e tinha muitas luzes. No interior era capitã do mato, pois junto com outras crianças da sua rua, às vezes passava o dia inteiro nas roças, catando frutas, folhas de chá, formiga do cão, melão de Santo Antonio, lagarta de fogo, mastruz, casa de abelha, calango e flores. Arranhava-se nas cercas de arame farpado, corria de boi perdido e cachorro doido, de modo que quando chegava em casa estava um molambo e sempre apanhava por isso.

Atrás da porta observava o povo da Bahia, seu jeito de falar, sorrir, brincar e seus cabelos “alisados”, eles eram muito diferentes de seus amigos e conhecidos do interior, ela acreditava então e até se sentia mesmo um verdadeiro “Bicho do Mato”, sim eles tinham razão era o que ela era. Um dia à noite, depois que sua mãe foi embora, trabalhar na casa dos brancos, eles brigaram com ela, diziam “Êta Bicho do Mato, não sabe nem pegar numa colher”, aquilo a aborreceu muito, pois não tinha nenhuma ciência pegar uma colher, ela queria ver aquele povo metido a gente da Bahia correndo de um boi perdido de boiada, ia ser engraçado. É triste gente que pensa que é melhor que outra gente só por ser diferente, então ela saiu daquela casa decidida a voltar pro seu mato e sua estratégia foi seguir as luzes que pareciam com os candeeiros de lá do interior. Correu, andou muito na direção dessas luzes e nunca conseguia alcançá-las. As luzes eram na verdade o farol dos carros, em um momento ela cansou de correr e parou pra chorar, foi quando seu tio a viu e a carregou.

Ele era um homem negro, alto e forte, era marinheiro, vestia sempre aquela farda branca, trabalhava na marinha mercante e viajava muito. Nessa noite ela deu sorte dele tê-la encontrado na rua, pois sim, ela já estava perdida. Então ele a acariciou e falou “Que bom que você chegou Bicho do Mato eu trouxe um presente pra você”. Eles sorriram um pro outro por razões diferentes, ela por ter encontrado alguém querido e ele por ter encontrado alguém parecido com seus filhos perdidos, alguém que ele realmente gostaria de abraçar e presentear. Ela sabia que sempre ganhava coisas diferentes de países distantes, que ele trazia das viagens a lugares exóticos. Então ele tentou colocá-la de volta no chão, mas não conseguiu, ela não queria descer, precisava mais um pouco daquele abraço gostoso e queria chegar em casa nos seus braços, só para deixar as outras crianças da rua com inveja. Foi o que aconteceu, as pessoas já estavam procurando por ela, preocupadas com seu sumiço e também não esperavam que ele chegasse naquela noite, então a festa foi dupla, até incensaram a casa.

Bicho do Mato ficou sendo seu apelido, ela contou porque fugiu e das luzes que queria alcançar, todo mundo queria ouvir a história da menina que pensava que farol de carro era candeeiro e pediam milhares de vezes para ela contar a mesma história e todos riam no final. Ela pensava que riam por ter sido um final feliz, mas na verdade era do absurdo, pois só um Bicho do Mato para não conhecer farol de carro e querer alcançá-los, “Já pensou, onde essa menina ia parar???” No dia seguinte seu tio colocou na vitrola um disco, que tinha uma música que falava de um Bicho do Mato  e dançaram juntos. Por isso, dali em diante, ela gostou do apelido e assumiu a identidade de verdadeiro Bicho do Mato.

Mas, Bicho do Mato era muito sabida e logo aprendeu a agir como gente da Bahia, só não gostava de alisar o cabelo. Assim que acabava queria molhar, esquentava muito seu juízo e o pessoal não deixava, a segurava, ela não gostava do cabelo liso, nem do cheiro que ele ficava e o pior: não poder ir à praia, não poder tomar chuva e ficar parecendo um bicho domesticado, isso era demais pra ela. Um dia resolveu o problema cortando no toco uma de suas tranças, todas se assustaram: “Que menina Bicho do Mato”, teve que cortar todo o cabelo pra acertar o estrago, mas só assim ela conseguiu se livrar do ferro.

Gostava de histórias de príncipes encantados e seus cavalos, porque se lembrava do interior e dos ciganos que de tempos em tempos apareciam por lá, montados em cavalos roubados. Os ciganos não demoravam muito em nenhum lugar e assustavam as meninas branquinhas e delicadas, suas mães ficavam preocupadas de suas filhas se apaixonarem e acusavam os ciganos de ladrões, amedrontando as meninas. Lembrava também dos vaqueiros em seus cavalos tocando a boiada, mas lembrava principalmente de Oxossi lá do terreiro de Mãe Zulmira, esse sim era um príncipe.

Aqui na Bahia onde ela ia encontrar Oxossi? Um lugar sem mato, sem roça, sem terreiro, sem mãe, duvido que essas meninas conheçam um príncipe assim. Um dia no meio da aula a professora insistia em contar histórias de príncipes loiros de olhos azuis, ela a interrompeu e falou: “na minha cidade tem príncipe de cavalo branco mais forte que esse branquelo, ele mora no mato e na lua!”, todas riram, não acreditaram, mas perguntaram ”Como ele desce da lua?” ao que ela imediatamente respondeu: “Ele chega, toma o corpo de minha mãe e conversa comigo” a professora a colocou de castigo e as meninas ficaram com medo dela.

Depois disso ela odiou o colégio e não queria mais estudar ali.Virou mais uma vez Bicho do Mato, também na escola, e brigava com todos. Até que de repente ficou muito doente, com febre, de cama, fizeram de tudo, levaram no médico, na igreja, chamaram rezadeira, deram purgante, chá de água de levante, nada adiantou, então chamaram sua mãe, que veio da casa dos brancos só pra cuidar dela. Trouxe maçã em papel de seda azul e trouxe uva, frutas que só as crianças muito doentes comiam, naquele tempo.

A mãe lhe preparou um banho de tapete de Oxalá, encheu seu travesseiro com folhas de pitanga, fez canja, penteou seu cabelo com óleo de côco, massageou seu pequeno corpo, beijou seu rosto e disse em seu ouvido que muito a amava e que não poderia viver sem ela, pois ela era a sua alegria: “Você quer deixar sua mãe triste?” ao que ela fragilmente respondeu: “Dão eu quero é voltar pra casa”. Ai a mãe realmente ficou preocupada e procurou uma mãe de santo, então chamou Joana e lhe entregou nos braços a filha desfalecida.

Joana era experiente, melhor que qualquer médico, quando viu a menina se arrepiou, com aquele cabelo cortado como um homem, o corpo todo lapeado, cheia de cicatrizes, a pele negra como a noite. Ela sentiu que ela era de Ogum e pediu à mãe que providenciasse algumas coisas e foram imediatamente procurar um matagal. Chegaram em São Bartolomeu no início da tarde e lá arrearam um Ebó, em seguida cantaram e banharam a menina nas águas da cachoeira de Oxumarê. Colheram algumas folhas e voltaram ainda de dia. Bicho do Mato passou a usar uma guia de conta azul e só assim melhorou. No outro dia, depois de firmarem um pacto, ela voltou à escola, sua mãe ao trabalho e disso ninguém mais falou.

Agora Bicho do Mato freqüenta o terreiro de Joana e é lá que Oxossi encontra Ogum toda semana.”

segunda-feira, 16 de maio de 2011

Uma novela para as mulheres negras - Capítulo I - O Salão de Beleza

São muitas histórias, parecidas, próximas, vivências de mulheres negras da Bahia. Experiências que nos dão subsídios até para um campo teórico: " a partir do ponto de vista das mulheres negras... "
 
Mas neste espaço quero falar da história de sete mulheres, são elas:
 
Joana a madrinha, Maria Helena a amiga, Conceição a mais jovem, Corinta a mais velha, Cândida a polêmica, Rosa a que nunca engorda e Joanete a poetisa. Essas mulheres raramente se encontravam assim todas reunidas, exceto aos sábados na casa de Corinta quando iam "fazer o cabelo".
 
Devo ainda trazer algumas explicações, aos de fora, pois muitos termos que utilizo são comuns na comunidade negra e outros são próprios, creio eu, deste grupo de mulheres. Vale dizer, que elas tinham algo em comum, além da cor da pele, que era o fato de serem ou já terem sido, todas elas, empregadas domésticas na casa dos "brancos".
 
Essa era a experiência compartilhada por todas a ponto de às vezes elas simplesmente não falarem algumas palavras, apenas gesticulavam, contorciam o corpo, entortavam a boca ou apertavam os olhos e todas riam ou se indignavam, entendendo o código comum entre uma história ou outra, em suas lutas diárias com o universo "branco", sexista e racista de Salvador.
 
Então vou começar apresentando cada uma dessas mulheres para depois detalhar algumas de suas histórias preferidas. São casos comuns que você encontra todo dia nas ruas, em casa, nos mais diversos espaços e muitas vezes até diante do espelho.
 
Joana era comadre de muitas famílias do local, ela era mãe de santo, feiticeira, querida, respeitada na comunidade. Tinha uma risada gostosa, que começava alto e depois ia afinando até acabar. A casa dela era sempre bem arrumada, cheirosa, com flores no jarro e muitas fotografias pela parede. Ela era casada com Dioclécio, um mestre de obras dos bons. Foi ele que construiu as melhores casas da invasão. Um dia Dioclécio recebeu um convite e foi trabalhar no Rio de Janeiro e de lá mandava dinheiro pra Joana. Eles se amavam, Joana só tinha elogios para Dioclécio: “Meu nêgo...ah! Dió...hum hum!".
 
Nos sábados elas se encontravam na casa de Corinta, quando Conceição "fazia o cabelo" de todas. Fazer o cabelo significa dizer que elas dominavam uma tecnologia ultra moderna na época, pois passavam por um processo de alisamento de suas madeixas crespas através de um ferro quente, esse ferro era aquecido no fogo e tinha variados formatos: de prancha, pente ou um ferro específico para cachear, depois que o cabelo fosse bem espichado na prancha. Enquanto Conceição fazia o cabelo de uma delas, as outras aguardavam e a conversa rolava. O sábado, certamente era o dia mais interessante da semana para algumas dessas mulheres, pois neste encontro todas as informações eram colocadas em dia e muito se ria, bebia, ouviam músicas e principalmente falavam dos seus patrões "brancos", dos melhores feitiços e de seus companheiros: os homens negros.
 
Nós, as crianças não tínhamos o direito de participar dessas conversas, esse não era um espaço permitido às crianças por isso, nessas horas, elas nos liberavam, até nos ameaçavam, nos obrigando praticamente a ficar na rua com um grito ensurdecedor: Vaaaaaaaaaaaaaaaaaaaai brincar menina!!! Eu já lhe disse que saaaaaaaaaaaaaaaaaaaia daqui! Hum...hum!
 
Quanto mais alto o tom do grito, mais grave seria o tratamento dado a quem insistisse, pois naquele tempo as mães castigavam as crianças das mais diversas formas, uma vez que, segundo elas: "Orelha não passa cabeça". Elas utilizavam inúmeros provérbios para justificar suas atitudes, coisas que muitas vezes não pareciam ter nenhum sentido, pelo menos para nós, as vítimas.
 
Entretanto, apesar de tudo isso, eu costumava driblar essa regra me oferecendo para catar o feijão, ou o arroz, ou fazer algum favor pessoal como coçar as costas de uma delas, desembaraçar um cabelo para facilitar o trabalho de Conceição, enfim, coisas que meus braços de crianças davam conta. Assim eu conseguia ouvir as conversas das mulheres adultas e que eu considerava sábias, meu único problema era Maria Helena.
 
Maria Helena era Gêge, desconfiava de tudo e de todos, para ela as coisas só poderiam ser feitas eternamente de um mesmo modo, pois qualquer mudança poderia acarretar um mal. Ela não sabia que as outras falavam dela pelas costas, falavam de suas manias. Ela era sozinha, virgem, morava só em uma casa que construiu com o suor do seu trabalho, como vendedora de quitutes nas escolas, a casa não tinha luz, pois Maria Helena preferia luz de candeeiros. Sua casa era um mistério para nós crianças, porque Maria Helena não gostava de crianças. Quando me olhava ela me radiografava, e eu me arrepiava, parecia que ela me lia por dentro, eu não tinha como mentir pra Maria Helena. Seus olhos eram pequenos, pretos e penetrantes. Ela me olhava e falava: "Ah! Essa menina tá ai é...cuidado com essa menina Cora, ela é muito curiosa, isso é um perigo! A desculpa do papa-terra é dormir no chão!"(?)
 
Bom, pretendo contar a vocês os casos que ouvi nesse período, sobre cada uma dessas mulheres, suas estratégias de superação da discriminação racial e de gênero. Naquele tempo eram só casos e se vocês quiserem saber mais, por favor me dêem um retorno, pois não pretendo enviar a quem não se interesse. O objetivo é colocar no Blog e depois organizar uma publicação com essas e outras histórias, mas para tanto, espero contar com sua ajuda!