“Ela morava no interior, em uma cidade do sertão e nas férias de verão vinha ficar em Salvador, essa cidade sim era o que conhecia como “Bahia”. Assim que chegaram as pessoas a chamaram de “Bicho do Mato”, porque ela era muito arredia e assustada. Não confiava em ninguém e se admirava de tudo, no início não falava, se escondia embaixo das mesas, só com o tempo é que ela ia se aproximando e depois falando com um, ou outro. Para ela a Bahia era confusa, apressada e tinha muitas luzes. No interior era capitã do mato, pois junto com outras crianças da sua rua, às vezes passava o dia inteiro nas roças, catando frutas, folhas de chá, formiga do cão, melão de Santo Antonio, lagarta de fogo, mastruz, casa de abelha, calango e flores. Arranhava-se nas cercas de arame farpado, corria de boi perdido e cachorro doido, de modo que quando chegava em casa estava um molambo e sempre apanhava por isso.
Atrás da porta observava o povo da Bahia, seu jeito de falar, sorrir, brincar e seus cabelos “alisados”, eles eram muito diferentes de seus amigos e conhecidos do interior, ela acreditava então e até se sentia mesmo um verdadeiro “Bicho do Mato”, sim eles tinham razão era o que ela era. Um dia à noite, depois que sua mãe foi embora, trabalhar na casa dos brancos, eles brigaram com ela, diziam “Êta Bicho do Mato, não sabe nem pegar numa colher”, aquilo a aborreceu muito, pois não tinha nenhuma ciência pegar uma colher, ela queria ver aquele povo metido a gente da Bahia correndo de um boi perdido de boiada, ia ser engraçado. É triste gente que pensa que é melhor que outra gente só por ser diferente, então ela saiu daquela casa decidida a voltar pro seu mato e sua estratégia foi seguir as luzes que pareciam com os candeeiros de lá do interior. Correu, andou muito na direção dessas luzes e nunca conseguia alcançá-las. As luzes eram na verdade o farol dos carros, em um momento ela cansou de correr e parou pra chorar, foi quando seu tio a viu e a carregou.
Ele era um homem negro, alto e forte, era marinheiro, vestia sempre aquela farda branca, trabalhava na marinha mercante e viajava muito. Nessa noite ela deu sorte dele tê-la encontrado na rua, pois sim, ela já estava perdida. Então ele a acariciou e falou “Que bom que você chegou Bicho do Mato eu trouxe um presente pra você”. Eles sorriram um pro outro por razões diferentes, ela por ter encontrado alguém querido e ele por ter encontrado alguém parecido com seus filhos perdidos, alguém que ele realmente gostaria de abraçar e presentear. Ela sabia que sempre ganhava coisas diferentes de países distantes, que ele trazia das viagens a lugares exóticos. Então ele tentou colocá-la de volta no chão, mas não conseguiu, ela não queria descer, precisava mais um pouco daquele abraço gostoso e queria chegar em casa nos seus braços, só para deixar as outras crianças da rua com inveja. Foi o que aconteceu, as pessoas já estavam procurando por ela, preocupadas com seu sumiço e também não esperavam que ele chegasse naquela noite, então a festa foi dupla, até incensaram a casa.
Bicho do Mato ficou sendo seu apelido, ela contou porque fugiu e das luzes que queria alcançar, todo mundo queria ouvir a história da menina que pensava que farol de carro era candeeiro e pediam milhares de vezes para ela contar a mesma história e todos riam no final. Ela pensava que riam por ter sido um final feliz, mas na verdade era do absurdo, pois só um Bicho do Mato para não conhecer farol de carro e querer alcançá-los, “Já pensou, onde essa menina ia parar???” No dia seguinte seu tio colocou na vitrola um disco, que tinha uma música que falava de um Bicho do Mato e dançaram juntos. Por isso, dali em diante, ela gostou do apelido e assumiu a identidade de verdadeiro Bicho do Mato.
Mas, Bicho do Mato era muito sabida e logo aprendeu a agir como gente da Bahia, só não gostava de alisar o cabelo. Assim que acabava queria molhar, esquentava muito seu juízo e o pessoal não deixava, a segurava, ela não gostava do cabelo liso, nem do cheiro que ele ficava e o pior: não poder ir à praia, não poder tomar chuva e ficar parecendo um bicho domesticado, isso era demais pra ela. Um dia resolveu o problema cortando no toco uma de suas tranças, todas se assustaram: “Que menina Bicho do Mato”, teve que cortar todo o cabelo pra acertar o estrago, mas só assim ela conseguiu se livrar do ferro.
Gostava de histórias de príncipes encantados e seus cavalos, porque se lembrava do interior e dos ciganos que de tempos em tempos apareciam por lá, montados em cavalos roubados. Os ciganos não demoravam muito em nenhum lugar e assustavam as meninas branquinhas e delicadas, suas mães ficavam preocupadas de suas filhas se apaixonarem e acusavam os ciganos de ladrões, amedrontando as meninas. Lembrava também dos vaqueiros em seus cavalos tocando a boiada, mas lembrava principalmente de Oxossi lá do terreiro de Mãe Zulmira, esse sim era um príncipe.
Aqui na Bahia onde ela ia encontrar Oxossi? Um lugar sem mato, sem roça, sem terreiro, sem mãe, duvido que essas meninas conheçam um príncipe assim. Um dia no meio da aula a professora insistia em contar histórias de príncipes loiros de olhos azuis, ela a interrompeu e falou: “na minha cidade tem príncipe de cavalo branco mais forte que esse branquelo, ele mora no mato e na lua!”, todas riram, não acreditaram, mas perguntaram ”Como ele desce da lua?” ao que ela imediatamente respondeu: “Ele chega, toma o corpo de minha mãe e conversa comigo” a professora a colocou de castigo e as meninas ficaram com medo dela.
Depois disso ela odiou o colégio e não queria mais estudar ali.Virou mais uma vez Bicho do Mato, também na escola, e brigava com todos. Até que de repente ficou muito doente, com febre, de cama, fizeram de tudo, levaram no médico, na igreja, chamaram rezadeira, deram purgante, chá de água de levante, nada adiantou, então chamaram sua mãe, que veio da casa dos brancos só pra cuidar dela. Trouxe maçã em papel de seda azul e trouxe uva, frutas que só as crianças muito doentes comiam, naquele tempo.
A mãe lhe preparou um banho de tapete de Oxalá, encheu seu travesseiro com folhas de pitanga, fez canja, penteou seu cabelo com óleo de côco, massageou seu pequeno corpo, beijou seu rosto e disse em seu ouvido que muito a amava e que não poderia viver sem ela, pois ela era a sua alegria: “Você quer deixar sua mãe triste?” ao que ela fragilmente respondeu: “Dão eu quero é voltar pra casa”. Ai a mãe realmente ficou preocupada e procurou uma mãe de santo, então chamou Joana e lhe entregou nos braços a filha desfalecida.
Joana era experiente, melhor que qualquer médico, quando viu a menina se arrepiou, com aquele cabelo cortado como um homem, o corpo todo lapeado, cheia de cicatrizes, a pele negra como a noite. Ela sentiu que ela era de Ogum e pediu à mãe que providenciasse algumas coisas e foram imediatamente procurar um matagal. Chegaram em São Bartolomeu no início da tarde e lá arrearam um Ebó, em seguida cantaram e banharam a menina nas águas da cachoeira de Oxumarê. Colheram algumas folhas e voltaram ainda de dia. Bicho do Mato passou a usar uma guia de conta azul e só assim melhorou. No outro dia, depois de firmarem um pacto, ela voltou à escola, sua mãe ao trabalho e disso ninguém mais falou.
Agora Bicho do Mato freqüenta o terreiro de Joana e é lá que Oxossi encontra Ogum toda semana.”
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