Esta semana a história que contarei, ouvi de Maria Helena, a Gêge, se mentira ou verdade não sei, mas sei que todas no salão de beleza acreditavam no que ela dizia, pois um Gêge não mente nunca. De início de conversa é bom informar ao leitor o que significa ser Gêge, para o povo negro da Bahia e para aqueles que se definem como tal.
Houve um tempo em que era perigoso se dizer Gêge, pois eles eram culpabilizados por inúmeros crimes, eram vistos sempre como suspeitos, perigosos. Mas os Gêges vieram da mesma região que os Iorubas, o noroeste da África. Eles eram grandes feiticeiros islamizados e tinham desde lá desentendimentos políticos com os Iorubas. Os Gêges se consideravam legítimos donos da terra e de conhecimentos ancestrais que lhes concedia sabedoria e mistérios que os Iorubas jamais conheceram. A terra da qual se consideravam donos não era um pedaço qualquer, mas sim todo o planeta, pois sobre ela reinaram milhões de anos, antes mesmo que os “brancos” aqui rastejassem como coacervados ou provassem a tal maçã.
Maria Helena contava que seus mais velhos diziam que sabiam como desaparecer e como ficarem invisíveis em diversas situações. Podiam tomar o formato de qualquer ser vivo e viajar o mundo todo sem ninguém perceber. Os Gêges conheciam a natureza humana como nenhum outro povo, simplesmente por terem nascido antes de todos e nesse longo tempo, terem desenvolvido a habilidade de ler o pensamento das pessoas através de vários oráculos.
Se o tempo de repente nublava um Gêge desconfiava que algo sobrenatural estivesse ali implícito, se um cachorro latia enquanto as mulheres falavam, Maria Helena se calava, pior se um galo cantasse fora da hora, aí podia esperar, pois o que ela previa geralmente acontecia. Quando um raio cortava o céu ela balançava a cabeça e lia o que o céu dizia. Já, se fazia sol, colocava toda roupa para receber os raios solares e só depois guardava. Se ela sonhasse, todas se benziam e o silêncio era total até ela terminar de contar, nada se mexia. Assim é um Gêge, não se pode duvidar da sabedoria africana, particularmente dos povos mais antigos que ficaram milhões de anos observando e fazendo sua leitura científica deste mundo.
Um Gêge não anda, desliza como uma cobra, aliás, eles têm orgulho de se dizerem parentes das serpentes. Um Gêge não fala, profetiza, sussurra e sua voz parece geralmente uma oração, tem o poder de encantar. Um Gêge não come qualquer coisa, pois precisa saber e confiar na origem do que lhe é servido, uma vez que seu povo foi inúmeras vezes envenenado. Um Gêge não vai ao médico, porque utiliza exclusivamente as folhas de Ossaim. Um Gêge não confia nunca num “branco”, pois para eles um ser desprovido de cor é um ser marcado pelos Deuses para ser visto em qualquer lugar e isto os torna suspeitíssimos. Para vocês terem uma idéia, minha mãe muitas vezes quando reclamava comigo dizia: “Você parece que é Gêge!”, dito isto, do ponto de vista dela, era ser uma pessoa difícil e ensimesmada.
Mesmo em África os outros povos já temiam os Gêges, lá Maria Helena contava que seu povo vivia nas montanhas em cidades extremamente desenvolvidas, lugares escondidos e quando desciam para chegar até as outras cidades, era geralmente para levar o recado dos Desuses, presságios, informações caras, aos reis de outros povos. Nas cidades, quando eles chegavam o povo já sabia que algo estava para acontecer, pois todos respeitavam os Gêges. Foi assim com a escravização do povo Ioruba, eles foram avisados, mas não confiaram nos Gêges e essa era uma das mágoas silenciadas entre esses dois povos.
Maria Helena costurava sua própria roupa, ela tinha os modelos que vinham em sonho, e, mesmo tendo máquina de costura e amigas costureiras, ela não confiava. A vestimenta era toda combinada: vestido com torço e bolsa, até o sapato ela forrava. Pois sua roupa ao tempo em que era costurada era também abençoada, cada ponto recebia um sussurro e isso só ela sabia. Ela cozinhava em fogão de lenha, embora tivesse fogão a gás, que ficava em sua cozinha e só era utilizado para cozinhar a comida dos “brancos” na época do seu aniversário.
Sua casa tinha energia elétrica, mas não se acendia uma luz, ela era iluminada com a luz da lua e de candeeiros muito fortes, a energia elétrica só era utilizada também em seu aniversário. O chão de sua casa era de barro, embora ela tivesse condições de colocar o piso que quisesse, mas era assim que ela gostava e no seu aniversário jogava pacientemente areia fina e folhas de pitanga em toda sala, sempre entoando rezas. Seu aniversário, aliás, era comemorado duas vezes no ano: uma em que ela recebia os “brancos” dos lugares onde trabalhou ou trabalhava e em outra onde ela recebia os negros, amigos mais próximos, Gêges vindos de Cachoeira, que nem ela, e pessoas negras de outras nações.
Maria Helena identificava as pessoas por nações, era assim que ela fazia: observava o jeito de ser, a cor da pele, o cabelo, o perfil, o jeito do corpo, as opiniões, a risada e refletia. Observava também o andar, o gesticular e o tipo de comentário que cada pessoa fazia. A isso ela acrescentava os ruídos externos, o movimento dos ventos, o horário em que conheceu o indivíduo, e, entre outras observações, ela concluía. Daí em diante decidia se confiaria ou não. Inicialmente ela falava pouco com qualquer pessoa, preferia deixar a pessoa falar e ouvia, às vezes com os olhos fechados, outras vezes encarando firmemente o falante.
Um dia ela chegou pra fazer o cabelo e tinham outras duas mulheres a sua frente. Ela sentou e cochilou, enquanto as mulheres tagarelavam. Elas falavam de seus homens, namorados, companheiros etc. De repente, Maria Helena acordou e falou: “De maio a abri não vejo de quem rir, sete luas passarão e sete vezes chorarão”, em seguida profetizou algo na sua língua, que ninguém entendeu. As mulheres imediatamente se calaram.
As crianças queriam ser Gêge, porque tinham medo e imitavam Maria Helena, exceto Marinalva, uma das filhas adotadas de Rosa. Marinalva era pequena, mas muito pesada, tinha um corpo musculoso e firme, ela era a mais negra e retinta, das filhas adotadas de Rosa e vivia dando golpes de capoeira no ar. Seu cabelo nunca crescia, seus olhos eram graúdos e suas roupas eram sempre desajustadas, pois eram as sobras das sobras dos outros irmãos maiores. Rosa levou Marinalva pra fazer o cabelo um dia, se queixando da dificuldade de penteá-lo e dizendo que só o ferro pra amansar aquele pixaim, mas Maria Helena não deixou, tomou a menina assustada das mãos de Rosa e lhe fez tranças em Nagô.
Rosa lhe deu o nome de Marinalva, embora na sua certidão constasse outro nome, mas isso para nós não importava, era com apelidos que ela era tratada: “Tiziu, King-Kong, Betume”, enfim, tudo que fosse bem preto assim ela era chamada. Era uma garota muito estranha, observadora, as outras crianças não gostavam dela, porque ela era preta demais. Inventavam apelidos só para Marinalva, pois ela ainda por cima mijava na cama, falavam que ela não tinha mãe nem pai, que era filha do pé de Aroeira ou da Jabuticabeira. Mas, Marinalva não chorava às vezes ela até sorria e parecia que gostava e quando ela sorria parecia que o mundo parava, pois duas covinhas se formavam nas suas bochechas, seus olhos brilhavam iluminando todo o rosto e a gente se desconcertava.
Quando Rosa ia à Cidade Alta, entregar suas trouxas de roupa, Marinalva nunca queria ir, preferia ficar na casa de Maria Helena. Aí todo mundo respeitava, porque Maria Helena, que não dava trela pra criança alguma, com Marinalva ela até sorria e cantava cantigas do povo Gêge, histórias que ninguém sabia ela dividia com Marinalva. O tempo foi passando e Marinalva foi ficando cada vez mais na casa de Maria Helena.
A menina passou a costurar também suas roupas e a sussurrar como Maria Helena, passou a dormir cedo e acordar quando cantavam as galinhas. Nas brincadeiras de rua, de repente Marinalva aparecia e desaparecia, quando oferecíamos uma merenda ela nunca queria. Um dia Maria Helena foi pra Cachoeira, num certo período do ano, antes de seu aniversário como sempre e levou Marinalva junto com ela. As outras crianças ficaram com inveja da viagem. Quando a garota voltou, ela estava diferente, com o cabelo raspado, bem cortado rente, com seu sorriso mais lindo e vestindo branco diariamente.
A garota contava histórias de Cachoeira e dos lugares que conheceu na companhia de Maria Helena. Dizia que foi em festas maravilhosas e que lá ganhou muitos presentes: colares de contas, vestidos longos, sandálias de couro, torços e pulseiras prateadas, nesse lugar, disse ela, trataram-na como nós tratávamos as meninas “brancas”.
Na noite de finados Maria Helena foi à missa na igreja do Rosário dos Pretos e levou Marinalva com ela, na volta ela errou o caminho e a menina terminou caindo numa vala aberta, no buraco, ficou com o pé preso e gritou pedindo ajuda. Maria Helena se desesperou ao ver sua afilhada naquela situação, saiu, trouxe ajuda, mas quando voltou ela não estava mais no mesmo lugar, as pessoas só viram o rastro de uma cobra e a sombra da serpente, negra, rastejante. Alguns se armaram de paus e pedras e correram para matar o animal, mas Maria Helena não deixou, tomou a frente e imediatamente praguejou em Gêge-Nagô.
A cobra era Marinalva, filha de Bessém, rainha do povo Gêge uma nobre entre nós, pessoas tão pobres... Nesse momento ela desapareceu e só voltou sete dias depois, Maria Helena então, pediu permissão a Rosa e levou Marinalva pra Cachoeira, ela mora lá até hoje e se confirmou uma grande feiticeira.