sábado, 28 de fevereiro de 2015

Novela das Mulheres Negras - Capitulo XXX


Claudete de Ogum: a Evangélica
 
O salão de beleza colocava em perspectiva, diferentes visões de mundo para as mulheres negras, que experimentavam e desejavam alterar sua estética, cuidar de si e no tempo que tinham para elas, compartilhar sonhos e fofocas. Tudo isso ao final, contribuía como ensinamentos divididos de vidas comparadas e elas saiam dali muito mais fortalecidas, como quem acaba de ler um bom livro, neste caso, o texto, era a história de suas vidas cotidianas. 

Desta vez uma mulher em particular chamou a atenção das demais, era Claudete, a evangélica. Ela se dizia extremamente religiosa e ia toda semana duas vezes à igreja nos cultos dominicais e nos encontros de estudos bíblicos. Este final de mês, ela estava agitada, pois sua igreja iria receber a visita de um grande bispo e todas as adeptas queriam estar bonitas. 

Nós chamávamos as evangélicas de “crentes” e reconhecíamos qualquer uma delas de longe, pelo jeito de andar e se vestir, sempre com cores desbotadas, neutras, saias longas, nunca calças, roupas fechadas sem decotes, cabelos longos sempre que possível, mas, devo confessar que eu e outras crianças tínhamos muito medo delas.  

Levavam a bíblia nas mãos e conversavam pouco quando estavam no salão de beleza. As mais jovens desejavam casar logo, as mais velhas, casadas, tinham casamentos difíceis com homens violentos, alcoólatras, jogadores, desempregados, homens problemáticos. 

Claudete era crente e tinha muito orgulho disso, ela sabia bem da vida de todas as mulheres da comunidade e pouco comentava. Era casada com Hermógenes, pedreiro e jogador de baralho de todas as tardes na esquina da rua. Trabalhava na casa dos brancos como doméstica e se gabava de ser uma empregada eficiente além de ter, segundo ela, a melhor patroa do mundo branco. O casal tinha dois filhos, dois meninos quase adolescentes e encrenqueiros, que viviam se metendo em confusões no bairro.  

Esta semana a crente foi fazer o cabelo para ficar mais bela durante a visita do bispo. Conceição não marcava com mais ninguém quando fazia o cabelo longo de Claudete, pois dava muito trabalho, por ser comprido e muito cheio. Mas, outras mulheres estavam no salão cuidando de suas coisas e a conversa estava quente em torno de muitos acontecimentos ruins que vinham enlouquecendo a vida delas. 

Os evangélicos, meu caro leitor, se dividem em diversas denominações religiosas que acreditam em Cristo e professam seu retorno, querem converter a todos, não se importando com a religião a que pertencem, mas afirmando que sua fé é a mais verdadeira e que seu segmento é o escolhido por Deus. Portanto, os crentes são diversos e na grande maioria são pessoas que pertenciam a outras religiões e passaram pelo processo de conversão após alguma crise. 

A crise de conversão é um fenômeno comum e um marco importante entre as adeptas, caracteriza-se como o momento em que depois de muitos problemas e aflições o crente aceita aquela forma de religiosidade e seus dogmas, como uma tábua de salvação da alma em conflito. Ao aceitar, tudo em sua vida parece ser resolvido e ele passa a crer que seu sofrimento foi apenas parte de um processo que precisava ser vivido e vencido através da aceitação daquela única forma de religiosidade, sua vida então se torna um relicário, uma experiência divina, uma dádiva. 

O segmento evangélico cresceu no Brasil mais profundamente depois da queda do regime militar e vem crescendo a cada dia com a criação de novas igrejas renovando suas promessas. Estas igrejas se proliferam nos bairros populares das periferias entre a população mais desprovida de acesso a diversas necessidades.  

Os crentes buscam seus fiéis junto aos mais desesperados e sofridos que depositam seu dinheiro e sua fé num “senhor” Jesus que lhes promete amor incondicional, fidelidade, paz e de nunca lhes deixar sozinhos, nem mesmo nos seus piores momentos. Sem dúvida uma promessa poderosa. 

Esse Jesus, no pensamento coletivo, é um homem branco heroico, tem cabelos loiros e longos, os olhos azuis e promete vida eterna a quem o siga e acredite nele. Ter um Senhor como este no imaginário de muitas mulheres negras é como ter o Príncipe Encantado, um Pai Protetor, um Super-herói, ou o Senhor da Casa Grande, mas, um senhor bondoso, generoso que vem sempre em seu socorro e atende a todos os seus desejos.  

Tal senhor se contrapõe a imagem mítica, também bastante venerada pelo crente, de um Diabo/Demônio, geralmente negro, que representa todo mal, as tentações e tudo que signifique pecado, mas ao aceitar os dogmas da igreja a proteção contra tal figura estaria garantida.  

Esta era a magia dessas igrejas e Claudete estava determinada a segui-las em busca de tudo isso, pois acreditava, antes de mais nada, que muitos eram os seus demônios. E, não sei se você sabe meu caro leitor, mas o maior prazer de uma crente é promover a disputa entre Jesus Cristo e o Diabo em seu próprio corpo, tal duelo povoa o imaginário de todas elas e muitas tremem de prazer ao imaginar todos os seus pecados sendo purgados pelo Senhor Jesus, com sua imagem sadomasoquista seminua, presa numa cruz, um homem branco totalmente submisso e devotado a lhes proteger de tudo. 

Acontece que antes de ser evangélica e buscar este Senhor Jesus, Claudete era filha de santo do terreiro de Joana, toda sua família era de Candomblé, ela foi criada desta forma e embora negasse esse pertencimento tudo nela transparecia isso. 

Claudete sabia versos decorados da bíblia cristã e embora fosse semianalfabeta ela tinha orgulho de fazer leituras de tais versículos. Para ela representava muita sabedoria poder ler um livro daquela grossura e com tanto poder, o poder de dizer a única verdade possível e comprovada pela escrita religiosa, bem mais poderosa que a cientifica.  

Ela se envergonhava de ter parentes de Candomblé e de seu passado como Iyaô, tinha aquilo tudo como seu maior pecado e invocava sempre músicas de louvor cada vez que seu pensamento divagava pensando nas festas, ou quando ouvia o estouro de um foguete e seu corpo arrepiava. 

Aliás, meu caro leitor, Claudete muitas vezes deixou seu marido na cama nas noites quentes da Bahia, ao ouvir o som dos atabaques e o estampido dos foguetes, particularmente nas noites dedicadas a Ogum, seu orixá. Seu corpo queimava em febre, tremia, sua mente sumia e ela tinha medo de si mesma. O marido ficava assustado, escondia as facas e facões que houvesse dentro de casa, pois muitas vezes Claudete o ameaçou com a lâmina em punho, tomada por tal espirito, para ela, um espírito Demoníaco extremamente quente e perigoso. 

Quando ia ao mercado, farmácia, escola dos filhos a cada interpelação Claudete invocava um versículo da bíblia e dava lições de moral e discursos infinitos a quem lhe questionasse algo. Quando ia as compras procurava sempre lojas de “irmãos” da sua própria igreja, quando ia a festas eram festas religiosas com outras adeptas e todos os seus momentos de lazer era entre os outros crentes.

Seu marido logo se tornou pastor e prosperou, pois durante o dia pregava a palavra de Deus, a noite realizava cultos e na madrugada quebrava pedras de crack para o comércio local.
 
Mas quando estava sozinha Claudete sofria, pois na sua igreja aprendia que devia odiar o Candomblé, que aquela era a religião do Demônio, que todos os rituais que participou na vida tinham que ser expurgados, que seus parentes não deviam sequer andar a seu lado.

Era no espaço do salão que ela relaxava e quando as mulheres falavam de suas aflições Claudete orientava que colocassem folhas e flores dentro de casa, ou que buscassem água do mar para fazer certos preceitos, orientava chás, banhos, amuletos, falava do que aprendeu enquanto Iyaô por toda sua vida e que fazia parte dela para além da sua afiliação religiosa atual.

Todas gostavam e riam muito com ela, irmã Claudete seguia sempre sua intuição, sua essência verdadeira, com versos decorados da bíblia, ela duelava internamente de espada em punho seus demônios, contidos num corpo delicado e embranquecido a ferro quente, lindamente louca, crente em Jesus, mas dona de um espirito negro forte, feita ainda na barriga da mãe pra Ogum, o senhor dos seus arrepios.

Ogunhê!

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