sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

MÃE DAS ÁGUAS QUE TANTO CHORAMOS...


De repente Rosa entrou no salão chorando desesperada, sentou numa esteira de palha, que havia na cozinha e chorou de soluçar por muito tempo. Eu saí e fui pegar água com açúcar pra ela. Naquela época eu oferecia água com açúcar pra tudo, na minha perspectiva de criança aquele era um santo remédio. Meu pensamento divagou porque alguém antes já tinha me perguntado o que queria ser quando crescesse e respondi: “quero ser criança agora e depois cientista louca” (efeitos da televisão sobre minha mente), mas a presença de Rosa, desesperada, era uma oportunidade de testar meus conhecimentos de cura. Rosa bebeu a água, se acalmou e começou a falar, enquanto eu acariciava seu cabelo. Na verdade, parte do que ela dizia todas ali já sabiam.

 

Meu caro leitor, apesar do salão de sábado ser um momento de encontro dessas mulheres, as coisas que acontecem em comunidades como a do Barro Vermelho, tornam-se do conhecimento de todas. Não há segredos entre essas mulheres, há discrição, às vezes, e certas coisas elas não comentam, assim diante das crianças. Mas tudo que acontece afeta a todas, se uma adoece as outras sentem, se preocupam, se alguém está feliz também se sente e se festeja junto.


Elas sabiam que Rosa brigava muito com o marido, Sr. Juvenal. Isso acontecia geralmente quando ele bebia, mas tudo começou quando eles se conheceram. Juju era trabalhador da Empresa de Correios e Telégrafos, ele era carteiro. Um dia ao ver Rosa dançando em uma roda de samba no Rio Vermelho, ficou encantado com seu rebolado, sua beleza esguia e negra. Naquele momento ele pensou: ”Vou pegar essa preta e fazer muitos filhos nela”. Rosa tinha a cintura bem fina, os seios fartos e duros e uma bunda enorme. Juju avaliou que Rosa seria uma grande parideira, que além de lhe dar muitos prazeres na cama também lhe daria muitos filhos saudáveis.


Os dois namoraram, casaram e tudo foi muito bem no início, foi quando chegaram para morar no Barro Vermelho. Os colegas de trabalho elogiavam Rosa, sua beleza, e Juju se envaidecia. O tempo passou, mas Rosa não engravidou e um dia o chefe de Juju fez uma piada, pondo em cheque a masculinidade dele por não ter feito ainda um filho em Rosa. Isso foi o suficiente para ele ir para o bar, beber e ao chegar a casa cobrar aos berros este filho que Rosa não lhe dava.

 

Dizia que ela não prestava como mulher, que ele estava arrependido de ter se casado com ela, que ela não lhe servia, não lhe agradava, não lhe saciava e que sexualmente não mais lhe interessava. Rosa chorava baixinho não reagia, ela também se sentia culpada. As mulheres negras da Comunidade do Barro Vermelho ouviam de suas casas e também choravam com Rosa, ninguém se metia, mas todas ao seu modo tomavam suas providências.

 

Cora rezava um terço; Conceição foi à missa no Bonfim e naquela semana pediu ao Bom Jesus uma solução para o problema de Rosa; Joanete colocou o nome de Rosa nos pedidos de oração do Centro Espírita que ela frequentava; Joana fez um Ebó pra Iemanjá, orixá de Rosa; Cândida pediu ajuda a seu patrão que era médico e Maria Helena separou algumas folhas para Rosa pôr dentro de casa. Eu, como mulher negra, uma ialodê criança do Barro Vermelho, aprendi também a fazer minha parte, então corri até o canto na casa de Rosa, no local onde ficava a sacola de cartas de Juju e pus fogo em todas as cartas dele.

 

A briga logo acabou porque ele foi tentar apagar o fogo e bêbado caiu por cima da sacola de cartas. Foi um Deus nos acuda, mas Juju não teve nada, dormiu em seguida com a cara cheia de cachaça.


Essa era a rotina de Rosa, que com o passar do tempo foi ficando mais bonita e todos a admiravam, diziam que era porque ela não tinha parido, pois mulheres que têm muitos filhos ficam logo desfiguradas. A barriga, os seios, a cintura, as varizes, enfim, parir, naquele tempo, era sinônimo de ficar desfigurada. Mas, apesar de querer ter sido desfigurada, Rosa permanecia bonita, isso todos achavam menos Juju, que por sua vez deu pra trair Rosa com diversas mulheres que encontrava. Por conta disso, Rosa se desgostou e não mais quis se cuidar. Não fazia mais o cabelo, suas roupas eram sujas e rasgadas, andava toda desmazelada.

 

E Juju por sua vez bebia cada vez mais e nas brigas gritava que ela estava acabada, feia, derrubada e que não o atraia mais e para concluir, que nem um filho ela lhe dava. Esse era o drama de Rosa, mas naquele dia ela entrou no salão decidida a deixar de chorar e a mudar, resolveu trabalhar. Conseguiu roupas de ganho pra lavar e engomar, das famílias de brancos da cidade alta.

 

Um dia quando voltava para sua casa, bem em frente ao lugar onde morava, encontrou uma criança, de uma das mulheres de seu marido. A mãe a abandonou lhe deixou um bilhete e viajou. A criança era deficiente, tinha uma perna amputada e aquela foi a primeira das filhas adotadas de Rosa. Ela teve seis filhos adotados, mas que eram na verdade filhos e filhas de Juju com outras mulheres.


Daí em diante Rosa não mais chorava e quando Juju bebia e a gritaria começava, era ela que dizia que ele não prestava que estava acabado com seus filhos deixados, a cachaça o tinha desfigurado, na cama ele não a satisfazia e que bem merecia tomar um corno bem dado.


Foi nessa época que chegou à casa de Rosa uma menina, que não era deficiente nem filha de Juju, ela foi chamada de Marinalva. Rosa lhe deu esse nome porque foi na volta da festa de Iemanjá, depois de deixar um presente no mar, na Marina do Rio Vermelho, que ela foi encontrada. Marinalva veio num balaio, como aqueles que seguem nas ondas brancas de Janaina, perfumada e sorrindo. Negra como uma jabuticaba, pequena e muito pesada. Ninguém sabia quem era sua mãe, a menina ainda não falava. Juju continuou a beber, mas desde que a menina chegou ele não mais gritou, porque Marinalva chorava. Rosa se afeiçoou demais a Marinalva, procurou lhe registrar como filha e ela se tornou a sétima, a caçula de suas filhas adotadas.


Todo ano, no dia dois de fevereiro, Rosa comemora o aniversário de Marinalva, leva a menina ao terreiro, vai a praia agradecer pela filha que pediu e ganhou de Odôyá e faz suas orações.


As mulheres do Barro Vermelho também, porque sabem o que essa menina representa pra comunidade, então: Cora faz suas orações a Nossa Senhora; Conceição vai à missa na Igreja de Santana; Joanete vai ao Centro e acende velas pra Sereia; Joana faz um belo balaio e leva ao mar como um presente; Cândida briga com o patrão e destrói a medicina porque nada fez, Maria Helena contribui com o balaio enchendo ele de flores e eu, doei minhas bonecas brancas, coloquei todas no balaio, porque não preciso mais delas, nós já temos Marinalva.

 

Nesse dia, nas águas de Kayala, Rosa se banha e festeja o dia inteiro. Marinalva é de Béssem e de vez em quando ela desaparece, seja na praia, em casa, ou na rua brincando. Todo mundo já sabe que depois ela volta e chega sempre como um presente, mais linda, perfumada, feliz e faz é festa no juízo da gente.


Odôyá!

sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A HISTÓRIA DAS NOSSAS ÁRVORES GENEALÓGICAS


Rebanho de sacanas! Bom mesmo é buscar ser feliz e só isso deveria bastar, os pensamentos de Madalena eram estes naquele início de ano em sua comunidade. Ela ganhou presentes de natal como poucas pessoas da rua e sua preocupação não incluía o peso do comércio nas demandas natalinas. Madalena morava na comunidade do Barro Vermelho, ela era uma das poucas crianças negras com pai dentro de casa.

O pai de Madalena era alfaiate, um homem bonito digno, sempre bem vestido. Andava rotineiramente com uma calça de linho bem cortada e bem engomada, com uma boina na cabeça, óculos, uma fita métrica no pescoço e uma agulha na boca. Seu atelier ficava no Pelourinho e para lá seguiam os homens de dinheiro da cidade alta em busca do seu corte preciso. Ele se chamava Bionor e costurava desde pequeno, aprendeu o ofício com o pai.

Sr. Bionor era um homem respeitado na comunidade, pois vivia para a família, o candomblé e seu trabalho. Eles tinham cinco filhos, quatro meninos e Madalena a caçula. Jorge era o mais velho e ajudava o pai no ofício de alfaiate além de aprender saxofone na filarmônica da igreja, Osvaldo e Antonio Carlos eram mabaços, um jogava capoeira e o outro queria ser cabelereiro. Os mabaços e Madalena eram nossos companheiros de brincadeiras.

Para nós, crianças sem pai, aquela era uma família estranha, na hora do almoço eles corriam para ir almoçar em casa, pois o pai queria todos na mesa, a noite alguns iam a igreja com a mãe e nos finais de semana de obrigação, todos iam ao terreiro. Sr. Bionor era Ogã de Oxumaré da casa de Joana, os meninos já estavam aprendendo a tocar como alabês e isso enchia de orgulho esse pai. Mas o mais estranho era Madalena toda dengosa e enfeitada, como um bibelô,  nós achávamos ela muito chata, por tudo chorava e corria pra casa, então colocamos um apelido nela: Boca de Afôfô, porque ela vivia inventando histórias...

Talvez o leitor não compreenda o significado desta situação, pois para muitas famílias, durante muito tempo e mesmo em algumas culturas, a presença paterna é condição inclusive para ser considerada “família”, mas isso não se aplica às famílias negras de Salvador. Isso não se aplicava às famílias negras de comunidades como a do Barro Vermelho, onde ter pai dentro de casa era uma vaidade, quase uma superstição.

Essa era a discussão das mulheres no salão de beleza de Conceição numa tarde quente de sábado. Algumas até consideravam que ter um homem dentro de casa atrapalhava, não significava necessariamente ter um companheiro, um pai e davam exemplo de certos “homens” e ao falarem sobre esse tipo de homem elas entortavam a boca em diferentes posições e todas compreendiam. Então como poderia ser considerada uma “família”? Outras comentavam que isso não importava, pois essa consideração pode realmente variar e derivar em muitas configurações diferentes de família.

Então “família” era aquela que você considerava como família, mas sem dúvida a ausência dos homens mesmo quando estão presentes era uma das questões duras que um dia teríamos que enfrentar. Afinal a maioria das famílias era chefiada exclusivamente por mulheres, mas tiveram a participação dos homens no momento de conceberem os filhos, logo depois os homens partiam sem nenhuma responsabilidade sobre tais crianças e ninguém sabia por que eles faziam isso.

Para estas mulheres havia ali um problema, que desembocava na violência presente na vida dos jovens negros, pois os meninos acreditavam que a responsabilidade por suas famílias agora era deles e numa sociedade machista, cedo partiam para uma vida arriscada na busca de se mostrarem homens para suas comunidades, tinham que passar por processos de iniciação cada vez mais cedo e mais complexos, a fim de serem considerados adultos e capazes de manter a família que quisessem.

Neste ponto, fiquei pensando no peso dessa situação nas nossas trajetórias de vida. Lembrei-me de uma conversa que tive com o professor John Thornton, em Boston, quando ele me mostrou a árvore genealógica de sua família. Uma enorme árvore com galhos espalhados pelo mundo. Sua origem era europeia, Suíça e Irlandesa, os Thornton foram fundadores dos EUA. Muitos fugiram da Europa, segundo professor John, por conta do racismo e da intolerância religiosa, pois eles pertenciam a um segmento religioso bastante perseguido na Suíça e seu grupo étnico também era bastante perseguido na Irlanda. Tudo isso dava pra contar só de ver sua árvore.

Uma árvore traduzia vários significados e histórias de vida que se desencadearam em novas e variadas perspectivas de famílias. O professor John, por exemplo, estava agora casado com Linda, uma mulher negra caribenha e tinham como filhas duas meninas negras, afro americanas. Ele me falou também das várias situações de racismo enfrentadas por ele como homem branco, que tais situações geralmente se davam quando ele estava na companhia de pessoas negras: suas filhas, sua esposa, seus amigos e mesmo seus alunos negros.

Quando andava sozinho pelos lugares ele nunca foi abordado, nunca se sentiu vistoriado, mas na companhia dos negros muitas vezes foi abordado de forma discriminatória, então ele compreendia o racismo e imaginava quão difícil para os negros era viver numa sociedade racista e ele como homem branco também sabia o que sua pele lhe proporcionava de privilégios dentro dessa mesma sociedade.

Mas, sua árvore me fez refletir e pensar em nossas árvores genealógicas. Achei fantástica a ideia de como poderíamos reconstruí-las? Que importância teria para nós, negros e negras da diáspora, a reconstrução destas árvores? O que nos seria revelado ao final desta construção? Que outras histórias tais árvores contariam ao nosso povo? Creio que este seria um trabalho histórico e terapêutico no sentido de nos fazer resgatar nossas identidades e de nos vermos como parte da natureza, árvores que somos.

Mas, a verdade é que apresentaram para nós, negros da diáspora, outra árvore, aquela do esquecimento no Senegal, no Porto de Goré. Antes de deixar o porto de Ouidah (na atual República do Benin, África), os negros escravizados eram levados à Árvore do Esquecimento – plantada pelo rei Agadja em 1727. Depois de nove voltas dadas pelos homens – as mulheres davam sete – origens, identidade cultural, lembranças de suas moradas e de suas localizações geográficas perdiam-se no limbo.

A memória era reconhecida pelos mercadores de escravos como uma poderosa arma de resistência. O poder da Árvore só pôde ser questionado por um único motivo: a sobrevivência da raiz identitária africana na diáspora.

Era preciso simbolicamente, esquecer quem era e assumir uma nova identidade, vazia de lembranças de suas histórias de vida. A lembrança geralmente provocava depressão na população escravizada, tal doença eles chamavam de “Banzo”, e muitos negros morreram dessa doença.

Talvez por isso nos fosse contada uma história vazia de nós mesmos, uma história vazia de brilhantes trajetórias de heróis e heroínas negras vitoriosas ou vencidas, nos contaram uma história de mão única que nunca fez sentido e que agora temos a tarefa de reconstruir.

Entretanto, nem tudo foi perdido, pois, dar voltas em uma árvore não foi suficiente para esquecermos quem somos, aliás, isso começou a ser resolvido quando três mulheres africanas chegaram aqui e reorganizaram meticulosamente as histórias de vida do seu povo. O trabalho terapêutico foi duro: cantaram canções, reelaboraram unguentos, banhos, beberagens, curas, aromas e devolveram para nossas bocas as palavras engolidas, nos contaram as histórias esquecidas, preencheram nossos sonhos com outras aventuras e refizeram nossas árvores genealógicas perdidas. Replantaram nosso universo de inúmeras árvores.

Através delas conhecemos nosso passado de glórias e de infortúnios como todo povo. Conhecemos nossos reinados devastados, príncipes, princesas, reis, rainhas, fortunas em búzios, especiarias, valores, tecidos e ouro. Soubemos das receitas de inúmeros feitiços, conhecimentos, saberes, práticas e habilidades, reaprendemos nossas comidas, músicas festejos e alegrias. Devolveram o sorriso que já não mais existia, cuidaram do “Banzo” com o único remédio possível que tinha: o amor.

Mas, o principal que elas fizeram, sabendo muito bem o que estavam fazendo, foi nos reerguer como povo negro na diáspora, civilizando-nos e preenchendo de fé o nosso desejo de liberdade. Restabeleceram um mundo retirado das cinzas do racismo, povoaram nossa memória com o imaginário de antigos reinados africanos daquela época até os dias de hoje, sem dúvida uma terapia poderosa, sem bulas, prescrições, nem receitas, um modelo negro de promover saúde, sem deixar uma linha escrita ou uma árvore desenhada, replantaram florestas.

Elas devolveram nossas almas de modo que a cada toque daquela música, a cada aroma daquelas folhas, unguentos, feitiços, a cada sabor e cheiro de suas comidas, a cada movimento daquela dança no ritmo de suas músicas o mundo perdido retorna mais vivo do que nunca e nossas árvores vão sendo ritualmente refeitas, vemos e sabemos por exemplo, que pertencemos a família do rei de Oyó, Xangô era seu nome.

Ele era um rei poderoso que teve muitas mulheres e conquistou muitas terras, inúmeras histórias nos foram contadas sobre ele. Também sobre outros reis como Ogum, que guerreou e venceu todas as batalhas ao lado de seu irmão Oxóssi. Suas histórias nos falavam também do protagonismo das mulheres negras, bravas guerreiras, como Oyá que acompanhou seus maridos e lutou nas guerras, ou Oxum que através do feitiço venceu muitos exércitos e mesmo sobre Iemanjá, que naufragou tantos navios e consolou tantos dos nossos, aqueles que preferiram morrer em suas águas a se tornarem escravos de outros povos.

Isso tudo Madalena sabia, por isso não acreditava que a violência fosse capaz de desfazer sua família, ou de levar seus irmãos, ela sabia coisas que outras crianças como nós ainda não entendíamos, por isso não se importava com a inveja que tínhamos do seu pai.

Um dia Madalena nos contou uma dessas histórias e foi mágico, percebemos e aprendemos que nós também tínhamos pai, ninguém neste universo recriado por ela viveria sem essa “família”, eu aprendi que meu pai era Ogum, que ele foi um grande general, aprendi que ele vivia dentro de mim e me conduzia por todos os caminhos por onde já passei, passo e passarei.

“Famílias chefiadas exclusivamente por mulheres” são assim chamadas nossas famílias, a das crianças do Barro Vermelho, mal sabem eles quantos príncipes, reis e generais dividem essa tarefa com essas mulheres, mal sabem eles que quando se constrói uma floresta genealógica dessas, dificilmente sucumbimos.

Mas, queria agora poder falar com Madalena e perguntar a ela sobre que fetiço fazer para sobrevivermos em uma sociedade que mata diariamente, sem piedade, nossas jovens árvores e destrói velhas bibliotecas?