Hoje ela teve que ouvir que os homens também têm boas histórias, incríveis histórias de grandes, fantásticos homens. Essa avaliação veio, é claro, de pessoas de quem ela gostava muito e que sabiam valorizar bons casos a partir do caráter singular, que cada um de nós pode apresentar. Mas estamos na Bahia onde gente com tais características são maioria, homens e mulheres repletos de belas e tradicionais histórias, disso não tenho dúvidas. O interessante são as coisas que se perdem, as histórias que não registramos e não nos chega se não houver registro.
Numa sociedade como a nossa é preciso se dar ao
trabalho de registrar tais histórias, mesmo porque não há interesse dos grupos
hegemônicos em determinados fatos e para os contra-hegemônicos existem poucos
espaços onde essas narrações ecoem e despertem curiosidade. Ou seja, não
podemos esperar que queiram saber sobre nossas histórias, mas nós precisamos
conhecê-las. Portanto, se não quiser que ninguém saiba não me conte suas
histórias.
Ela despertou seu interesse pelas experiências
das mulheres, por ser mulher e por estar mais próxima destas. Mas os grandes
homens também fazem histórias que mudam o rumo dos ventos, até porque todos
eles saíram de grandes mulheres. Um destes homens de quem ela ouviu falar foi
alguém assim.
Diante dele peço licença às mulheres e busco na
memória algumas de suas façanhas que já me contaram, ou ouvi faz muito tempo. O
leitor pode estar curioso, mas pode também não acreditar que já existiu alguém
assim na Bahia. Mas, o mais fantástico é que ainda existem e nascem todos os
dias pessoas como essa.
Ele pertencia a uma família católica e quando
criança foi coroinha da igreja do Paço, numa pequena cidade do Recôncavo
baiano, mas quando nasceu era muito fraco e sua família achava que ele não
sobreviveria à próxima epidemia, por conta disso levaram-no para ser iniciado
no Candomblé para, como se diz até hoje, “ser cuidado”. Ele foi feito numa casa
Angola de uma Iyalorixá bastante respeitada e famosa na cidade de Cachoeira.
Depois com a morte de sua Iyalorixá, refez o
santo numa casa Ketu, mudando de nação ainda criança. Menino foi morar na
capital abandonando cedo à casa dos pais. Mesmo indo de encontro à vontade de
seu pai ele fugiu de casa e na capital foi tentar sobreviver começando cedo a
trabalhar, em um armazém no Pelourinho. Um homem no corpo de um menino, alguém
que não veio ao mundo a passeio e que sabia para onde ir, viveu intensamente
seu destino e, portanto sua trajetória começou bem cedo. Seu nome era João e
como era baixinho e muito jovem chamavam-no de Joãozinho.
Entretanto, Joãozinho sofria de fortes dores de cabeça e passou
muitas noites em claro chorando e sofrendo sem conseguir dormir. Muitas vezes
acordava assustado com os sonhos que tinha onde aparecia sempre um menino
pequeno e preto correndo e sorrindo, indo ao encontro de um homem montado a
cavalo que seguia na direção da lua.
Certa vez, contou seu sonho a uma
baiana de acarajé que tinha um ponto em frente a loja onde ele trabalhava e ela
resolveu levá-lo num terreiro de Candomblé, no Engenho Velho da Federação.
Ainda adolescente ele se assumiu como homossexual, pois percebeu-se fascinado
pelo professor de geografia e literatura, no Colégio Central da Bahia. Depois
que provou do amor de um homem ele não quis mais saber de mulheres, pois como
amante se entendia muito melhor com os homens.
Muito
jovem começou a receber um caboclo. Os caboclos não são Orixás, mas espíritos
encantados, originários das religiões indígenas, sem relação direta com a
África. Esses candomblés de caboclo foram alvo do desprezo do povo de Ketu,
zelosos de sua “pureza” africana porque, nessa época, havia um empenho por
parte de influentes intelectuais em firmar a idéia de que havia nos terreiros
Ketu uma certa “pureza” e maior “nobreza”, com relação às raízes africanas e
isso deixava Joãozinho muito triste.
Ele era
um dos poucos homens que frequentava o salão de beleza na casa de Cora. Ia lá
sempre que podia, para pintar o cabelo, afim de mudar o visual, às vezes
espichava a ferro, outras vezes fazia tranças em Nagô. Ele era um homem
vaidoso, muito belo e cobiçado. As mulheres ficavam ouriçadas com a presença
dele no salão, todas queriam paquerá-lo e ouvir suas histórias de experiências
picantes. E embora João gostasse muito das mulheres, admirava-as, mas não como
amantes.
O certo
é que ele foi considerado um homem adiante de seu tempo: negro que alisava e
pintava os cabelos por vaidade, sem se preocupar com a polêmica de poder ou não
colocar ferro quente na cabeça de um iniciado; homem que não se envergonhava de
ser homossexual na homofóbica Bahia; pai-de-santo que afrontava os princípios
de que homens não podiam “receber” o Orixá em público, tornando-se famoso pela
sua dança; incorporava ao Candomblé a entidade indígena do Caboclo Pedra Preta;
adepto de Angola, numa cidade dominada pela cultura jeje-nagô; babalorixá
jovem, numa sociedade dominada por iyalorixás mais velhas o que, segundo seus
filhos-de-santo, ativou o despeito das mães de santo tradicionais da Bahia.
Seu sonho era ser famoso, artista,
bailarino, ou jornalista. Assim ele foi até a rádio Sociedade da Bahia e por lá
começou um programa de rádio que ia ao ar todos os domingos, pela manhã. Nesses
programas ele respondia cartas de ouvintes e recomendava tratamentos diversos
para todos os tipos de males, de acordo com a recomendação de seu caboclo.
Dessa forma tornou-se mais famoso que o Cardeal da Silva. Suas recomendações
eram repassadas de boca em boca e a Feira de São Joaquim passou a vender mais
que nunca as ervas recomendadas por ele.
Seu
primeiro terreiro foi num bairro chamado Ladeira de Pedra. Lá, tocava
indiferentemente Angola e Ketu, o que contribuía – e muito – para aumentar o
escândalo em torno de seu nome. Um dia despediu-se de Salvador e foi morar no
Rio de Janeiro, na sua despedida fez uma festa no Teatro Jandaia, apresentando
ao público pagante danças típicas do Candomblé, escândalo final para os adeptos
baianos, e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde abriu casa em Duque de Caxias,
Baixada Fluminense.
Seu terreiro era feito com modestas
instalações, no entanto aquele local na Baixada Fluminense, foi ficando cada
vez mais famoso, pela presença dele e pela grande quantidade de templos
afro-brasileiros que ali passaram a se localizar. No novo endereço atendia
políticos, embaixadores, consules, presidentes artistas e pessoas ricas da
sociedade carioca.
O
próprio João nunca revelou os nomes de seus filhos ou clientes; seus filhos de
santo é que espalharam essas notícias, orgulhosos do status da casa de seu pai.
Costas quentes ou não, o caso é que ele nunca teve seu terreiro invadido pela
polícia, nem jamais foi preso, ao contrário do que acontecia com diversas casas
naquela época.
Contam que chegou a fazer despacho
para Exu em plena Praça XV, no Rio de Janeiro. O caso é que tornou-se o
primeiro pai-de-santo realmente conhecido no Brasil. Sabia do poder da imprensa
e manteve relações com publicações importantes, deixando-se fotografar com os
trajes dos Orixás.
Utilizando-se
deste recurso, foi um dos primeiros que mandava colar nas paredes dos
mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias papéis e cartazes onde
se divulgava todo o calendário semanal do terreiro, como por exemplo:
Segunda-feira: dia de distribuições de sopas e agasalhos aos pobres, festa para
Obaluaiê e Gira para Exus. Quinta-feira: dia de festa à Iansã, Oxóssi e Ogum.
Sexta e Sábado: Festas de confirmação de Iaôs e atendimento médico, sábado à
tarde.
A comunidade aparecia em peso, e
mesmo os que não freqüentavam o Candomblé iam para ver as festas. Ele
transformou sua casa num centro comunitário onde o povo da Baixada livremente
frequentava e encontrava abrigo. Grande parte daqueles que freqüentavam não
eram filhos de santo, e sim pessoas que estavam naquele momento fascinadas pelo
grande movimento de popularização do Candomblé na cidade do Rio de Janeiro e
pela figura de João.
A noção
de pertencimento ao culto dos Orixás era visível no terreiro, era uma espécie
de associação mística ao campo religioso, em que os laços de associação do
indivíduo, com a forma de culto se redefinia a cada divulgação das festas de
Candomblé, tanto na imprensa carioca como nos mercados populares da Baixada
Fluminense. E dessa forma a população assumiu cada vez mais este pertencimento,
com orgulho, auto-estima, devoção e admiração por aquele fascinante pai de
santo.
Certa vez João resolveu participar
do carnaval carioca vestido de mulher. O assunto rendeu uma polêmica terrível
com outros babalorixás e chefes de terreiros da Umbanda. Ele brigou pelo seu
direito ao livre-arbítrio, declarando que jamais permitiria que qualquer outro
pai ou mãe de santo se intrometesse em sua vida.
Ele
nunca deixou de atender através do seu caboclo, que segundo ele: “o caboclo me
deu tudo, se como e bebo foi ele que me deu, ele é meu marido, meu pai, meu
filho, sem ele não saberia quem sou e na presença dele muitas vezes me
confundo, pois somos um único ser habitando este cavalo, muitas vezes em um só
tempo”.
Quando completou vinte e cinco anos de santo ele voltou a ter seu misterioso sonho com o pequeno menino correndo atrás do homem a cavalo em diração à lua. Daí resolveu voltar à Bahia e deu “obrigação” com uma famosa mãe de santo daqui. Veio fazer a obrigação dele; tirar a mão de Vumbi e fazer bodas de prata. Mas ele não só fez sua obrigação com esta Iyalorixá, como foi o primeiro homem que ela permitiu que vestisse o Orixá e dançasse em público “virado” no santo em sua casa.
Porém, é fato que, embora até o fim da vida continuasse tocando tanto Angola quanto Ketu, a partir desse processo passou a orientar seus filhos de santo para que seguissem uma orientação única, optando entre Ketu e Angola.
No dia 18 de março teve novamente
aquele sonho, mas dessa vez viu o menino que o levava até o homem montado a
cavalo, em direção à lua e viu seu rosto no rosto do homem que conduzia o
cavalo. João entendeu que não havia mais mistérios, era Oxóssi, era seu caboclo
e era ele. O homem, o menino e o cavalo.
Foi sepultado no cemitério de Duque
de Caxias, num dia em que uma chuva de proporções míticas caiu sobre o Rio de
Janeiro e exatamente na hora em que seu ataúde baixava à sepultura raios e
trovões rasgaram o céu. Para os adeptos, uma manifestação de Iansã recebendo
seu filho, que culminou com muita gente “virando no santo” em pleno cemitério.
Depois, os assentamentos de
Joãozinho da Goméia foram transferidos para uma nova Goméia, em Franco da
Rocha, São Paulo, onde os ibás de seu Oxóssi e de sua Iansã estão sendo
devidamente cuidados e “alimentados”, e podem ser visitados pelos adeptos que
fazem parte da familia de santo até hoje.
Essa é
parte da história de um grande homem, que se fez homem ainda menino, renascendo
a partir de uma nova iniciação, recriando um universo a partir de seus sonhos,
reorganizando a sociedade a partir da possibilidade de novas vivências
comunitárias, reinventando o conceito de ser e tempo no seio da mais
tradicional das religiões e em plena ditadura.
Tudo
isso, meu caro leitor, só pra você lembrar que não existem limites para alma do
povo negro da Bahia.