Quando criança, em Nazaré, nós não sabíamos que éramos de Candomblé (Reis, 2014), toda comunidade vivia daquele jeito. Minha madrinha era rezadeira renomada na cidade, não tinha doente que ela não levantasse do leito de morte. A casa dela era um sobrado perto do Batatan, tinha uma loja onde tudo acontecia. Ás vezes eu ia dormir e o batuque continuava lá, cedinho era acordada pra ir buscar água na fonte, depois da escola ia buscar folhas na beira do rio e quando chegava desfolhava as folhas para os banhos, jogava milho pras galinhas, alimentava os bodes, levava roupa de ração pra lavar no rio e ia sempre cantando em Nagô.
Minha madrinha muitas vezes explicava as coisas, falando baixinho, fixando o olhar pra gente aprender, na cozinha tinha sempre comida pro povo da casa e pra quem chegasse, éramos muito pobres mas não havia fome como aqui, criança não passava fome, comíamos tudo que se encontrasse em nosso caminho: jaca, caju, castanha, tomate verde com sal, manga pêca, farinha do mercado, melão de Santo Antonio no caminho do rio, algumas coisas não eram comestíveis, cuspíamos logo fora. Minha madrinha era convidada pra tudo quanto é festa da cidade: casamento, batizado, aliás ela tinha muitos afilhados... e só uma filha que herdou seu santo e eu que herdei os provérbios e as rezas dela, sei todas. Se chamava Durvalina e eu tinha muito orgulho de ser afilhada dela (D. Candida, 2014).
Tio Zé Pinto era Ogã da casa e não faltava em nenhuma obrigação. Ele era um homem rico, para nossos padrões, porque ele tinha uma barraca de farinha na feira, tinha carro-de-boi e vendia água pra casa dos brancos. As festas na casa dele varavam a noite e ele mandava matar um boi, era quando toda comunidade comia e levava ainda carne pra casa.
Minha madrinha cantava com sua voz rouca e olhava pro céu de olhos fechados tentando lembrar toda melodia em Iorubá, a língua dos nossos antepassados, lembro que ela sempre agradecia a Zambê ao final. Era uma mulher negra, gorda, muito bonita, desejada e tio Zé Pinto era um homem negro, retinto, casado com uma branca metida, mas acho que eles tinham um caso.
Eu demorava semanas pra voltar pra casa, preferia ficar na casa de minha madrinha, pois lá ninguém me batia, já em casa era um sapeca Iáiá por qualquer coisa. Em casa as mais velhas eram responsabilizadas pelo que acontecesse com os mais novos e eles sempre aprontavam, minha saída era fugir pra casa de minha madrinha e se minha mãe fosse me buscar ela não deixava eu ir e dizia: -Deixa a menina Antonia você sabe que ela tem caminho e obrigação aqui com o santo dela.
Bastava isso e minha mãe deixava, mudava de idéia e ia conformada, ela sabia que eu estava em boas mãos, as mãos de Durvalina Oyá.
O alabê da casa se chamava Zé Reis, mas todos o chamavam de Réis, referência ao dinheiro da época. Seu Zé era tocador esperado em muitas festas da região e minha madrinha às vezes ia com ele em outros Candomblés. Quando ela chegava o couro dobrava, muita gente virava no santo e ela sorria com a mão nas cadeiras, de repente entrava na roda e dançava sorrindo como ninguém. Na sua dança muita gente tonteava, o vento balançava as bandeirolas que enfeitavam a casa e os alabês tocavam com vontade, todos batiam palmas e a festa sempre ficava animada.
D. Durvalina de Oyá era mulher negra, rotunda e feiticeira que fazia questão de ninguém esquecê-la.