As coisas parecem ser muitas vezes sonhos,
ilusões, dejávu, premonições que nos chegam de forma simples, nas palavras que
quase falamos e vemos brotar da boca de alguém; ao sentir saudade de uma pessoa
que surge de repente em sua frente, aparentemente do nada; de visitar novos
lugares sabendo exatamente a imagem que surgirá ao dobrar uma esquina; ou
provar uma fruta desconhecida e sentir um sabor antigo, bastante conhecido; de
sentir aromas que remontam a cenários; de beijar ou transar com alguém que se
desejou muito, mas que te toca e acaricia exatamente como sonhastes; de antever
mudanças no tempo antes do noticiário; ou, a que mais me aflige, de não gostar
de pessoas e coisas antes mesmo de ser apresentado a essas; ou até mesmo o contrário,
de amar certas pessoas e coisas muito antes de conhecê-las.
Não sei meu caro leitor, mas isso é coisa
constante na vida das mulheres negras, sensações que de tão frequentes não surpreendem,
nem incomodam mais, apenas se tornam parte da natureza do ser, que quando sonha,
acorda mais preparado para os acontecimentos diários, pois já viveram tais
situações de diversas formas enquanto dormiam.
Não saberia que nome dar a essas
experiências, mas sei que de tanto ouvi-las, senti-las e percebê-las em mim e
em outras pessoas, penso que elas mereceriam um estudo, talvez, ou uma conversa
franca mais séria a respeito.
Por outro lado, quando ouço Carmelita contar
seus sonhos e acontecimentos dessa natureza, me aproximo dela, fecho os olhos enquanto
ela conta e me arrepio invariavelmente diante das sensações que mexem comigo a
partir da sua experiência, na verdade, até já preparo meu corpo para essa onda
de arrepios.
Carmelita nem sabe disso, ela não é minha
amiga, até tenho reservas com relação a ela. Mas quando ela chega no salão eu
me aproximo, me calo e escuto sua voz e seus casos. Sua voz por si só já é um
encantamento, ela fala baixo, rouco, pausado, suspira em certos momentos e o
desfecho dos seus casos não são concretos, pois nos deixam sempre sem saber a
que conclusão chegar. Observo que outras mulheres sentem o mesmo que eu quando
ela fala, e ficam encabuladas logo em seguida querendo concluir o que ela não
explicou direito.
Para você ter uma ideia, meu caro leitor, certa
vez Carmelita nos contou que ouviu de outra pessoa, que em sua cidade estava
tendo uma onda de Febre Tifoide muito forte, nesse lugar muitas pessoas até
tinham morrido de Tifo, mas o mais impressionante é que as pessoas que
sobreviveram à febre perderam seus cabelos. As pessoas eram negras, todas
negras, mas tinham os cabelos muito lisos e ficaram carecas por um tempo após a
febre, depois, quando os cabelos voltaram a nascer, cresceram extremamente
crespos e elas tomaram aquilo como um castigo divino.
Daí em diante a discussão crescia entre as
mulheres no salão, pois muitas conheciam e afirmavam terem visto casos
parecidos, mas ninguém sabia o que significava ou como se dava esse processo,
ou mesmo se haveria como revertê-lo. Carmelita afirmava que isso se deu com
ela, pois segundo sua mãe ela tinha um cabelo que não dava uma volta, mas
depois de sobreviver a Tifo, se transformou numa mulher negra de cabelos crespíssimos.
Enquanto Conceição fazia o cabelo dela ia
pensando nos benefícios da Tifo para o seu negócio, afinal de contas se todas
elas tivessem o cabelo liso, não precisariam alisá-los. Joanete pensava no que
aconteceu com todos os brancos de cabelo liso e que tiveram Tifo, ou será que
essa era uma doença só de negros? Cora achava Carmelita mentirosa demais, pois
ela conhecia toda sua família e não havia uma pessoa se quer de cabelo liso
para comprovar essa transformação.
Mãe Joana ria e dizia que cabelo crespo é que
é bom, pois não nega a origem e ainda prova que resistiu a Tifo. Maria Helena acreditava seriamente na história
e contava mais casos a respeito, mas incluía a doença que originou a calvície
dos homens (essa depois eu conto). E eu, aprendiz de feiticeira, pensava em
descobrir através da ciência o elemento endurecedor de cabelos contidos na Tifo
e quem sabe transformá-lo em um spray e borrifar em todos os cabelos lisos que
encontrasse pela frente, pois desse modo ajudaria Conceição a fazer mais
cabelos crespos.
Por conta desses casos e situações foi que
Conceição resolveu comprar um livro que decifrava todos os sonhos. Assim, à
medida que as mulheres contavam seus sonhos no salão, ela consultava o livro e
dava o veredito dos significados, pois não suportava essas histórias sem um
final concreto e feliz.
Mas, teve um caso que ela não encontrou
respostas no tal livro, foi um caso contado por Zulmira. Nesse ponto, preciso
descrever quem era Zulmira para que você melhor compreenda meu caro leitor. Ela
era uma mulher que teve Paralisia Infantil, segundo minha mãe. Uma mulher
negra, magra e que por conta da paralisia tinha uma perna mais fininha que a
outra. Ela trabalhava como lavadeira e passava pela Rua do Barro Vermelho
carregando suas trouxas de roupa sempre mancando, por conta da perna.
Zulmira frequentava o terreiro de Joana, ela
era filha de Ossaim e contam que esse orixá recebeu de Olodumaré o segredo das
folhas. Ossaim sabia que algumas delas traziam a calma, vigor, outras, a sorte,
a glória, ou ainda as doenças, acidentes e a miséria. Ossaim cuidava da saúde
de todos através das folhas, mas ele próprio também mancava, ele tinha uma
perna só e embora isso não fosse um problema para sua mobilidade, pois ele
estava em todos os lugares com o vento, ainda assim muita gente duvidava do seu
poder de curar, pois pensavam que ele deveria curar a si mesmo, se realmente
fosse um bom curandeiro.
Mas Ossaim sabia que suas limitações de saúde
o faziam era muito mais capaz de compreender o sofrimento dos outros, por ele
próprio saber conviver com sua doença e esse era seu segredo, um fundamento.
Então, Zulmira de Ossaim ao ouvir a história
de Carmelita contou que na verdade não foi a febre que causou a queda de cabelos
e sim a vaidade e o desprezo pelos outros negros que havia naquela comunidade,
como existe até hoje por parte de alguns brancos. Para corrigir esse problema
foi mandado um vento que varreu da cabeça de algumas pessoas os cabelos lisos e
trouxe os crespos.
Por conta disso, as mulheres negras tinham a
oportunidade de refletir a partir de seus cabelos, de se encontrar para cuidar
de si e das outras e de criar penteados revolucionários que expressam a
revolução de suas ideias, mas muitas ainda insistem em manterem-se alisadas,
para experimentar outras texturas e ampliar seus conhecimentos sobre o olhar do
outro a partir das diversas possibilidades de experiências estéticas possíveis.
E também, para contribuir com a sustentabilidade de pessoas como Conceição,
esse é outro segredo, nós mulheres negras atuamos melhor em rede, um
fundamento.
Como você pode ver caro leitor, cada mulher
interpreta o que Carmelita diz e ressignifica no seu universo, agora me diga
sobre sua experiência, você conheceu alguém que teve Febre Tifóide, dormiu de
cabelo liso e acordou com o cabelo crespo?
Ou mesmo alguém de Ossaim, que ao viver a
experiência da doença se torna alguém melhor em cuidar dos outros?
Essas eram questões que eu registrava a
partir das histórias das mulheres negras daquele salão, pois eu pensava em
também escrever meu livro dos sonhos. Um livro diferente do de Conceição, mas
um livro para nós mulheres negras, com questões, provérbios, respostas,
ensinamentos, conhecimentos e saberes repassados por elas, as mulheres do Barro
Vermelho.