Hoje era dia de festa na comunidade do Barro Vermelho, era o batizado de Marinalva, afilhada de Maria Helena, a Gêge. Para essa realização a madrinha reservou uma data específica no calendário da igrejinha local. Pois é caro leitor, Marinalva de Béssem, afilhada de Maria Helena do Gêge, feita em Cachoeira aos oito anos de idade, hoje ia ser batizada na igreja de São Jorge, numa paróquia católica local.
Nessa época já havia muita intolerância religiosa e a tensão se dava entre católicos e candomblecistas, muito mais da parte dos católicos que dos outros. Hoje o salão de beleza estava cheio, até as crianças queriam fazer os cabelos com ferro quente. Minha tia reclamava muito diante de tanto trabalho e tanta zoada. Pra completar ela ligava o rádio, afim de não perder o programa de Sr. Joãozinho da Goméia, pois hoje ele ia ensinar uma simpatia para mulher que traía e não queria ser pega pelo companheiro. As mulheres riam e falavam muito alto. Minha tia mandava as crianças saírem, quando iam falar coisas que não eram permitidas às crianças ouvirem, então íamos pra rua.
Fomos ver a arrumação na casa de Marinalva. Perguntavam a Maria Helena porque batizar a menina numa igreja católica se ela era Gêge. Maria Helena respondia com perguntas: E porque não? Quem construiu essa igreja? Você sabe o que ela tem na fundação? A casa estava sendo toda enfeitada com flores, angélica, rosas, folha de pitanga e em cima da cama estava o vestido que Marinalva ia vestir feito por sua madrinha.
Era um vestido branco, todo no rechilieu bordado, combinando laço, bolsa e sapato. Nesse ponto é importante relembrar ao leitor a importância da estética para nós mulheres negras, esta é particularmente uma estética centrada em símbolos e valores que nos constituem, nos reintegram entre os nossos. É uma estética extremamente complexa, pois diz respeito ao que somos, nossa identidade mais remota; ao que somos para o grupo a que pertencemos, nossa identidade coletiva e ao que devemos representar em público, nossa identidade social. Some-se a isso o fato dessa menina ser uma Gêge.
Ai é preciso entender que esse povo sempre foi e ainda é muito meticuloso. Minha tia dizia que eles são “cheios de nó pelas costas”, eu imagino que isso diga respeito a uma natureza quase anfíbia, de ser mutante, mas num processo de transmutação exotérica que supera o entendimento profundo que outros grupos étnicos possam ter da natureza humana/divina do ser.
Desconfio que nós mulheres negras, precisamos entender um pouco das nações que convivem aqui no Brasil, particularmente na Bahia e em se tratando dos que aqui primeiro chegaram, precisamos bater a cabeça e buscar compreender muito mais os menos entendidos: os Gêges. Os Gêges sempre foram vistos como inimigos, por parte dos povos conquistados pelos reis de Daomé. Quando os conquistadores eram avistados pelos nativos de uma aldeia, muitos gritavam dando o alarme “Pou okan, djedje hum wa!” ("Olhem, os Gêges estão chegando!). Quando os primeiros daomeanos chegaram ao Brasil como escravos, aqueles que já estavam aqui reconheceram o inimigo e gritaram: “Olhem os Gêges estão chegando” e a antipatia se instalou entre estes.
Os Gêges se espalharam pelo Brasil, fundaram várias dinástias, mas se mantiveram reservados, por conta das implicações do passado, dái a dúvida, a desconfiaça, a reserva dos demais frente aos Gêges e dos Gêges frente aos demais. Mas, esse é um mistério que muitos resolveram também enfrentar, pois aqui na condição de povos escravizados essas diferenças não contavam, erámos todos negros/escravos e aos poucos, um povo foi conhecendo melhor o outro e percebendo suas tradições e crenças, uma coisa foi sendo incorporada a outra e a mistura se deu entre os povos negros.
Daí Maria Helena não via problema em ir a missa, ou em batizar sua afilhada na igreja, afinal o que era uma igreja católica diante da complexidade das religiões negras? Para ela era mais um tipo de crença que conferiria a jovem um melhor trânsito, maiores conhecimentos, ampliaria seus saberes inicáticos e fortaleceria sua identidade ao perceber melhor as diferenças entre cada mitologia, era mais um ingrediente da mistura.
Alguns negros da comunidade achavam errado, pensavam que Maria Helena queria agradar aos brancos, afinal ela trabalhava pra eles, fazia festa de aniversário e convidava os brancos para um dia só deles. Ela era uma preta que agia de forma muito escorregadia e perigosa entre o mundo dos brancos e dos negros, de modo que nem os brancos confiavam nela, nem os pretos, mas todos certamente a temiam.
Para o batizado de Marinalva vieram os parentes de Cachoeira e até a família biológica da menina. Rosa também estava aflita e alegre por rever seus amigos, compadres e parentes. A única pessoa que estava triste era a princesinha Marinalva. De vez em quando ela suspirava, outras vezes silenciava, ficava parada olhando pro tempo e errava tudo que começava. A madrinha logo suspeitou e perguntou o que estava acontecendo para ouvir da boca de Marinalva. Ela só falou pra Maria Helena, ela estava sentindo que o orixá se aproximava, sentia o corpo tremer, o coração disparar, a vista escurecer e uma voz sussurrar uma cantiga de cobra que Marinalva há muito não escutava. Maria Helena então lhe deu água, falou em seu ouvido e mandou que ela fosse brincar.
Fomos todos com Marinalva correr pícula, pular corda e de repente vieram correndo avisar que a polícia estava na rua de cima e que prenderam Pai Onorato, um velho babalorixá de uma antiga casa do bairro. Naquele tempo era assim. A polícia prendia pai de santo, prendia atabaque e quem quer que se metesse no fato. Fomos correndo ver o que se passava e no lugar muita gente olhava, o velho pedia que o deixassem em paz e os policiais entraram e quebraram tudo no terreiro, segundo eles, a mando do delegado.
Foi um salseiro danado, logo foram chamar o padre, mas este não quis se meter e foram chamar Maria Helena, por ser mais velha e mais respeitada na comunidade. Diante do policial Maria Helena parecia uma menina, pois era baixinha e o homem era enorme. Mas ela não titubeou, olhou fundo no olho do homem e em seguida praguejou, como só um Gêge sabe fazer!
Disse que via toda vida dele diante dos seus olhos frios, ele foi um menino covarde, apanhou e chorou em muitas noites sozinho, mas que ao ganhar aquela farda, cheia de estrelas e colarinho, passou a agir como bicho. Um negro que se respeita procura saber sua história, sua origem, sua memória e deve defender aquilo que lhe mantém firme, não o que lhe fragiliza e lhe põe de joelhos diante do mundo. Um policial negro precisa refletir sobre seu papel, seu exemplo e a quem serve quando age sem pensar.
Os policiais não quiseram ouvir e continuaram a quebrar, mas de repente diante do assentamento de Oxumaré, de dentro da fonte saiu uma cobra atravessando o barracão na direção do soldado. O bicho se enrolou na perna do guarda enfezado, o povo correu com medo se espalhando, gente pra todo lado, só ficaram Maria Helena e o guarda que de preto ficou branco completamente assustado.
Então, Maria Helena perguntou a ele o que deveria fazer para se livrar da cobra, pois tinha certeza que ele sabia, porque viu tudo em seus olhos, tudo que lhe foi ensinado. O guarda soltou um ilá, pegou a cobra com as mãos e caiu ao chão transformado. Lembrou da sua infância, pois ainda na barriga da mãe ele também tinha sido iniciado.
A cobra entrou num buraco e o homem em prantos foi amparado pelo povo, Maria Helena o levou pra um quarto e lá eles demoraram, quando saíram ele estava recomposto, chamou seus camaradas e foram embora cabisbaixos.
O clima se estabilizou na comunidade e os preparativos da festa continuaram, mas Marinalva sumiu e quando a encontraram estava deitada na cama, com uma estrela na mão da farda do policial que a cobra tinha arrancado.
Arrô Bô Bô!