sábado, 27 de agosto de 2011

“Lazara da Vila de Coração de Crioula, distrito de São Bartolomeu”

 
Ela se chamava Lazara,  seus pais tinham lhe dado esta graça por serem eles devotos do santo padroeiro de sua comunidade. Desde pequena ela não gostava do nome, recebeu muitos apelidos na infância, na escola e mesmo depois de crescida as pessoas estranhavam e ela tinha sempre que justificar as razões de tal nome. Seus irmãos também não escaparam das demonstrações de fé dos pais: o do meio se chamava Roque, as mabaças eram Cosma e Damiana e o menor chamava-se Bartolomeu. Traduções na língua cristã das suas essências e alcunhas de origem...

Entretanto, Lazara nunca perguntou o porquê de tanta devoção, apenas aceitou e buscou conviver, como a maioria dos moradores do vilarejo que se chamava: Coração de Crioula e tinha uma população de quase duas mil pessoas. O lugarejo pertencia a um povoado maior localizado no Recôncavo da Bahia. A população era composta de pessoas negras que sobreviviam da pesca, da agricultura e do artesanato.

Lazara finalmente estava de volta e trazia muitas saudades, sonhos e o desejo de fazer muitas coisas, somado a curiosidade de descobrir tantas outras. Coisas que pudessem ajudá-la na sua pesquisa de mestrado e também a dar um retorno para a comunidade. Enquanto seguia viajem ela ia pensando e refletindo sobre sua vida até ali, ela quase ouvia seus pensamentos a dizer:

“Vamos sim seguir sorrindo, festejando a vida, cantando, brincando e porque não? Afinal não cometemos nenhum crime, ao menos na nossa avaliação. Bem, é bom saber que justiça para nós pode não ser a mesma coisa para você. Entretanto, você pensa que seu mundinho, o mundo que criou, é perfeito e que tudo está respondido nele. Pensa que devemos acreditar em suas explicações e por isso diz que inventou a ciência.

Pensa que devemos acreditar na sua justiça, pois ela diz respeito a um direito globalizável e universal que deveria incluir todos os seres humanos. Entretanto, nem todos são considerados humanos pra você, nesse ponto estes jamais acessarão as regras da sua justiça.

Também dificilmente vocês dialogarão com os direitos daqueles que não são vistos como sujeitos dos seus direitos e para complicar existem também os seres invisíveis. Estes não foram criados na modernidade tardia, pois ao rever a sua história percebemos e conseguimos enxergar os invisíveis ali, no canto das páginas, escritas com tinta invisível em nota de rodapé, antes de sua pré-história universal ser pensada.

Com o tempo, nossos olhares foram ficando cada vez mais treinados em enxergar tais coisas, de tal modo que tem sido cada vez mais fácil antever o futuro, enxergar no escuro, ler o que não está escrito, ouvir o que não é dito, sentir o que não é percebido. Fomos nos especializando em decifrar velhos e novos mistérios de suas verdades universais e essencialistas.

Mas, preciso te confessar uma coisa: na nossa visão de mundo, o mundo não é bem assim, muitas vezes perdemos a paciência tentando traduzir coisas para que você possa nos entender, mas na grande maioria desses momentos desistimos. E por não termos uma palavra em sua língua capaz de te fazer compreender do que falamos é que te concedemos a explicação mais fácil, pois com ela você se satisfaz, na verdade porque a sua língua é restrita e limitada, mas o que te satisfaz é pensar que nós não pensamos e que temos uma visão boba, mágica e superficial de tudo.

Em parte você pode até estar certo, pois na sua visão de mundo só a mágica explicaria muitos fatos que nós sentimos e compreendemos pela intuição. Ao te olhar às vezes fico pensativa a imaginar como seu povo se esforçou e se esforça tanto, para ter certezas e explicações livres da mágica da vida. Como vocês podem querer viver uma vida sem mágica? Sem dúvida há um preço a pagar por essa escolha e tem também o livre arbítrio de se ter algumas escolhas. Porém, diante de tantas possibilidades você preferiu a mais fácil pra você, mas que tem sido a mais dura para nós.

Você escolheu reduzir nossas vidas a uma subvida no seu mundo, onde devemos nos inserir em um lugar previamente determinado por você. Escolheu ainda nos inferiorizar, nos odiar, você não consegue nos amar e resolveu imprimir em nós, todas as suas frustrações e ignorâncias diante da beleza humana da diversidade. No seu mundo o colorido, que é uma das coisas mais belas do universo, quase não existe. As cores que aparecem nas imagens que você projeta são as cores da moda, portanto você espera que tudo, todos e todas gostem das mesmas cores e utilizem o mesmo tom, pois só assim serão aceitos no seu mundo.

Porque o seu mundo só tem meia dúzia de cores como também no nosso, mas nós conseguimos, com meia dúzia de cores, transcender na variedade de possibilidades de uma mesma cor e suas especificidades infinitas, pois fomos nós que inventamos a matemática, a lógica e a análise combinatória através do jogo de búzios, antes mesmo de você pensar em civilizações e de se aventurar com suas  invasões bárbaras.

Em nossa visão de mundo, mesmo vocês e mesmo a cor branca tem uma variedade enorme de tons e uma diversidade infinita de brancos. Isso nossos olhos vêm, entretanto você não consegue enxergar nem mesmo a cor preta com sua diversidade de tons de preto e possibilidades de misturas com outras cores, muito menos a idéia de que o preto é também a ausência de todas as cores. Como poderíamos te fazer entender o que você nem se permite pensar? Como você poderia nos conhecer se não consegue ao menos nos enxergar?

Por outro lado, não quero mais te fazer entender nada, prefiro te deixar a pensar o que te parecer mais fácil, pois acredito que nesse ritmo que vai, pode levar tempo, mas você mesmo irá descobrir, por conta própria, o tamanho das bobagens e absurdos que cometeu. Pode parecer até que valeu a pena, que são experiências da existência humana e você pode até tentar conectar tudo com o seu entendimento do divino, mas lá no fundo sabes que não é bem assim, existem prejuízos irreversíveis que você causou e que jamais cicatrizarão sem reparação.

Você simplesmente colocou tudo que difere da sua compreensão em um lugar no andar de baixo, por isso resiste diante da necessidade de recorrer a esse lugar para buscar respostas sobre você mesmo. O fato de não querer saber de mim só denuncia que você já sabe algo, que te assustou e diante do medo desta revelação, você se viu e não quis encarar o espelho. Certamente esta é uma miragem difícil e para muitos da sua espécie é um legado do qual não sabem mais como se desvencilhar e, portanto, buscam manter tudo como está exclusivamente por medo do seu próprio reflexo.

Eu queria que meu povo não se preocupasse tanto com o seu, que investisse sua energia em nosso próprio povo e não perdesse mais tempo tentando acreditar no seu jogo. Um jogo que está viciado, pois você roubou todas as peças importantes e foi assim que sempre ganhou as guerras, além de nos fazer acreditar que nós jamais poderíamos e que tínhamos guerras internas a resolver, mas que foram guerras criadas também por você para nos manter apartados e em conflito.

Muitas vezes desacredito que tenha uma saída, pois vejo que a melhor alternativa seria algo que também te contemplasse e que te fizesse repensar valores, admitir equívocos, pedir desculpas, ou, mais que pedir desculpas, defender a reparação como algo que te fizesse um enorme bem também, mas creio que isso ainda está longe de acontecer, ou pior, vejo que isto te colocaria num lugar que você jamais quis estar, mesmo diante de sucessivas experiências desastrosas que prejudicaram a nós todos, você não consegue reconhecer esses danos e não vê que também se prejudicou.”

Lazara pensava coisas dessa natureza enquanto olhava pela janela do ônibus que a levava para o interior da Bahia. Pensava no tempo em que acreditou na escola, nas histórias dos brancos e mesmo que, até a escola se creditava como um local capaz de produzir conhecimentos, que promovessem mudanças, transformações nas realidades da sua comunidade. Isso sem dúvida era possível, pois foi na escola que ela conheceu pessoas incríveis, com histórias de vida enriquecedoras, foi na escola que ela teve acesso aos primeiros livros de sua vida. Pena que tais livros contavam coisas do seu povo que a envergonhavam, intimidavam e a faziam sentir-se menos capaz. Agora ela era professora e estava se dirigindo para o interior com o compromisso de contar uma história diferente, de descobrir e revelar novas histórias.

Pois é, algumas coisas mudaram desde então. Agora ela aprendeu que é uma mulher negra, pois durante muito tempo a fizeram acreditar que isto não tinha valor, que ela não deveria dizer essas coisas, “afinal ela era tão inteligente” e essa era “uma cor tão feia e suja”. E por pensar assim Lazara, produziu muito cedo uma metamorfose no seu corpo começando pelo cabelo. Assim que chegou a capital ela era freqüentadora assídua do salão de beleza, aonde ia sempre alisar o seu pixaim.

Ao se olhar no espelho ela via uma mulher sem valor, não se aceitava e acreditava que só embranquecendo teria alguma chance, principalmente na capital. Ela tinha coleções de revistas femininas que traziam informações valiosas sobre como parecer com as estrelas de novela e de cinema, todas loiras e brancas. Mas o que Lazara mais admirava eram os olhos azuis e os cabelos lisos e loiros das modelos. Ah, se ela tivesse olhos azuis...

Outra coisa que ela não revelava e preferia que ninguém soubesse era sobre a origem humilde de seus pais e irmãos que ficaram no interior, para que ela pudesse vir estudar em Salvador. Sua família vivia em uma comunidade remanescente de um antigo Quilombo no interior da Bahia, eram agricultores e não tinham a posse da terra, mas já viviam naquele local há bastante tempo.

Lazara estudou lá enquanto foi possível, mas teve logo que mudar para o povoado mais próximo para dar continuidade a seus estudos, pois isso dava muita alegria a seus pais, que sonhavam em ter uma filha formada. Com o tempo foi necessário vir para a capital e felizmente ela conseguiu chegar à universidade, beneficiando-se do programa de cotas que foi implantado em algumas universidades públicas. Ela se tornou a primeira pessoa da sua região a entrar em uma universidade, de modo que os moradores locais tinham muito orgulho e a citavam como exemplo para os mais jovens.

Mas, foi na capital que Lazara conheceu o Movimento Negro, participou de algumas reuniões e se encantou com as idéias e atitudes dos militantes. Ela viu ali algo que estava faltando dentro dela para complementar as questões que trazia sobre seu povo e sobre seus conhecimentos negados e invisibilizados.

A partir daí ela estudou cada vez mais e voltou para o interior cheia de ideais e de novidades para sua comunidade. Logo que chegou as pessoas a desconheceram, pois Lazara deixou o cabelo encrespar, mudou o estilo de roupas de quase sem cor, para roupas coloridas com temas africanos e falava de coisas sobre direitos humanos que as pessoas dali jamais imaginaram, mas gostaram e também se engajaram.

Viam que sua fala ecoava em seus corações, respondia questões que foram por muito tempo silenciadas. Ela dava aulas durante o dia às crianças e adolescentes e à noite fazia reuniões com os adultos e mais velhos. Nas reuniões que promovia cada vez mais gente comparecia e dali saíam decididos a buscar seus direitos, reconhecendo-se como Quilombolas e lutando com orgulho por tudo isso.

A luta tem sido árdua, pois os grandes latifundiários inventaram papéis e não pretendem abrir mãos de seus privilégios. Por isso Lazara vinha no ônibus pensando aquelas coisas, agora ela precisaria buscar apoio para ampliar a escola e conseguir melhorias para sua comunidade. Começou buscando refazer a história do povoado para ser contada na escola, encontrar seus heróis locais e os saberes preservados pela cultura de matriz africana que só os mais velhos conheciam.

Então ela procurou Dona Fininha, a mulher mais velha da comunidade, que era uma rezadeira com mais de cem anos de idade, as duas conversaram muito, deram muitas risadas e ela soube de muitos casos, soube também da sua origem. Que seu bisavô fora escravizado, mas nunca aceitara aquela condição, brigou muito e foi ferido no pé, de modo que perdeu parte da perna por conta da infecção e que sua bisavó trabalhou vendendo peixe na feira até conseguir a libertação dela e de seus irmãos.

Soube que sua bisavó cultuava Obaluaiê e Oxum, ela era feita e era meje, tinha suas coisas em casa e era em sua casa mesmo que tudo se dava. Lá ela tinha um assentamento e todas as coisas que vieram da África para cuidar do seu orixá. Lazara entendeu a importância de seus antepassados e o seu legado, não era a toa que ela estudou história e não era a toa que se chamava Lazara, agora tudo realmente se encaixava e quanto mais pensava assim, mais ela se emocionava.

Seguindo seu raciocínio Dona Fininha falava: “Minha filha quando você viajou fizemos uma sessão aonde Obaluaiê chegou e disse estar feliz com sua ascensão”. Agora ela compreendia que sabedoria seu povo sempre teve inclusive para antever o futuro, enxergar no escuro, ler o que não está escrito, ouvir o que não é dito, sentir o que não é percebido e que de um povo assim não se pode imaginar que não saibam lutar, ou melhor, que não saibam das peças importantes que vocês roubam do jogo, tornando-o um jogo perdido para nós.

Entretanto, jogamos um contra jogo onde observamos até onde você é capaz de ir e o que é capaz de fazer até reconhecer que por sua causa ninguém nunca ganhou esse jogo, muito menos você.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Uma mulher, uma mãe e as águas que choramos...

 



Uma vida se configurava frente aos seus olhos através das revelações que se apresentavam nas situações vivenciadas por ela naquele ano. Quanto tempo ela percebeu que tinha passado até chegar a essa condição? Teria sido um tempo perdido, ou um tempo necessário de aprendizado, que se bem analisado deveria ser incorporado às suas experiências e aos futuros ensinamentos que por ventura viesse a repassar a outras pessoas?



De verdade, até ali ela não tinha respostas, logo imaginava que ainda teria que percorrer outros caminhos misteriosos de sua existência na resolução deste enigma. Esses caminhos pareciam às vezes não dar em nada, quando de repente as situações surgiam e ali diante do ocorrido tudo passava a fazer sentido. Outras vezes, o sentido era bem mais simples e rapidamente as coisas se tornavam auto-explicativas.



Querido(a) leitor(a), não quero lhe confundir com minhas confusões, mas escrever, para mim, na maioria das vezes é muito complicado não só por não saber se sou entendida, ou mal interpretada, mas por perceber que as palavras escritas nos colocam frente a um espelho e nos fazem penetrar em mundos que desconhecemos e não imaginamos em momento algum aonde podem nos levar, isso me excita e assusta com a mesma intensidade.



Eu, particularmente, não gosto de correr riscos, nem de me colocar frente ao abismo. Se estiver às cegas, prefiro dar um passo de cada vez e esperar meu coração desacelerar, nesse intervalo olho no entorno, bebo um pouco d’água, respiro, planejo e só então volto a caminhar. Mas esse meu sentido de sobrevivência muitas vezes me puxa o tapete e embora procure sempre cair com elegância, eu caio e me quebro toda, me machuco e choro. Certas vezes nem sei se consegui me erguer novamente, então permaneço lá e me deixe!



Em outros momentos somos provocadas a seguir um caminho que é bem mais nossa opinião e desejo do que, o que o fato em si nos oferece, e, na maioria das vezes, precisamos de um desfecho mágico que nos faça sentir poderosas diante da mesmice dos destinos trágicos a que nós todas estamos sujeitas. Por isso, penso que deve ser mais fácil escrever uma tragédia, pois a vida se encarrega de levar boa parte dos fatos a desfechos trágicos e toma pra si os créditos.



Não sei se saberei ser trágica o bastante, porque sou muito mais envolvida por histórias alegres e com finais felizes, como forma de compensar o peso da realidade, que já se escreve por si e é onde cada um pode completar o raciocínio no final de suas frases.



A história dessa mulher negra, em particular, é parte da história de todas nós e quanto mais falo dela, mais pessoas se identificam e se sentem narradas. Tanto é assim que dessa vez, eu nem vou nomeá-la e tenho certeza que você sabe de quem estou falando. Ela vive dentro de muita gente, ao mesmo tempo em que ainda vai nascer muitas vezes, ela já morreu demais também, mas caminha seguindo em busca de respostas sobre si e não desiste fácil.



Muitas vezes ela se enrola toda e precisa de ajuda para desfazer o novelo, outras vezes cochila na sala diante da novela. Nessas horas ela é doce, meiga e não nos assusta. Entretanto, na maioria das vezes, nós a perdemos de vista e a encontramos ali sentada, pronta para começar a falar e nos contar mais uma de suas histórias que nem sempre queremos ouvir.



Portanto leitor (a), não me faça perguntas nem me peça para parar agora, pois eu mal comecei. O que você pode fazer pra ajudar é me falar mais de você ou mesmo dar outra versão a um fato, pois isso ajuda quem escreve a ver em perspectiva. Isso porque, de onde estou, tenho uma visão que pode ser privilegiada, ou prejudicada, com o retorno da sua contribuição pitoresca, mas nunca mais será a mesma visão que tenho agora.



Não se importe com identidades, elas são múltiplas mesmo, por isso em alguns momentos emergem as que estão mais próximas e em outros momentos as que se aproximam com força. Mas essa mulher é extremamente forte, tanto que nem sei se quero falar dela, simplesmente porque eu não sei se suportarei, nem sei se você suportaria conhecê-la. Que dirá mirá-la!



Ela deixou de caminhar pelas ruas da cidade que sempre amou. Ela amava acordar cedo e sair para ir a lugares distantes da cidade, com a desculpa de que tinha que ir a uma missa lá em São Lázaro ou lá na Igreja de São João em Brotas. Eram desculpas para caminhar por sua cidade. Pois a cidade é dela, ela é sua propriedade e ao caminhá-la, a sente e percebe como pulsa, sofre e reage a soteropólis. Muitas vezes desconheceu-a, algumas vezes surpreendeu-a, mais recentemente assustou-a, pois sua cidade não era assim.



Agora se pergunta sobre o que fizeram com ela, onde estão suas árvores? Porque sepultaram seus rios? Dizem que agora irão transformá-la em uma cidade mais rápida, mas para chegar aonde? Seus filhos não precisam correr para serem escravos, mas precisam de árvores e rios para  serem libertos, senão quem irá socorrê-los diante de uma nova escravidão? As questões sobre a cidade a fazem ficar pensativa e se sentir impotente. Os lugares que tem percorrido ultimamente estão diferentes e lhe dizem: “Ali mãe, ficava a casa de tio Zé Pinto, lembra?”, ela franze a testa e tenta imaginar o cenário com a antiga casa no mesmo local daquele prédio... Por quê?



Nos momentos de cochilo ela sonha com o tempo em que foi uma mulher poderosa, comprava coisas no mercado, ia a Feira de São Joaquim e lá chegando jovens Iaôs se jogavam ao chão para tomar sua benção. Seus fregueses sabiam como agradá-la apresentando sempre os melhores obis, tecidos, animais, incensos e folhas. Ela gostava de percorrer a feira e depois sentar cansada na barraca de Zezinho do Quiabo, enquanto isso sua Ekedy continuava a fazer as compras. Ali na barraca ela ouvia inúmeros casos de outras mães-de-santo conhecidas e atualizava as notícias de gente que não via há bastante tempo.



Certa vez foi a uma festa num Candomblé em Dias D’Ávila, gostou demais do lugar, cheio de mato verde, água cristalina e a viagem até que não foi tão cansativa. Desejou ter um cantinho naquele vilarejo, mas suas obrigações não permitiam se afastar por muito tempo e teve que voltar.



Desejou ter uma família, um companheiro e filhos, mas os homens que se aproximaram dela não a amaram como mulher só a viam como mãe, pois ela tinha se tornado Iyalorixá muito cedo, seu marido era Xangô e seus filhos, todos aqueles que ela tinha iniciado: homens, mulheres, crianças, adês, idosos, sua família era muito extensa e diversa. Ela conhecia perfeitamente o caráter de cada filho e filha que tinha feito nascer para o Axé, mas não sabia o que era gerar, parir e amamentar um filho do seu ventre.



Inicialmente aquilo não foi um problema porque ela aceitava orgulhosamente a incumbência que os orixás trouxeram, mas com o tempo aquilo foi se tornando um desejo sublimado que de vez em quando doía profundamente, principalmente quando ficava sozinha em seu quarto, na cama. Com o tempo ela resolveu esse problema criando os filhos de outras mulheres, educando-os. Todos lhe tomavam a benção e realmente a tinham como mãe, mas ela não os carregou no colo, não ninou ou pôs pra dormir em seus braços...ah!



Andar pela cidade a permitia observar a vida de pessoas estranhas e imaginava estar em seus lugares, mães que arrastavam crianças, xingavam e queriam castigar meninas teimosas. Ela se chateava com pessoas que maltratavam crianças, pensava que estes eram privilegiados e não sabiam como educar, muitos até se mal diziam e praguejavam diante da sorte de ter um filho, “os ignorantes são pessoas de sorte”, pensava.



A cidade era um sentimento para ela, sua brisa forte, suas águas, seu cheiro úmido, seu ritmo tão cadenciado, ela não saberia viver em outro lugar. Outros lugares que visitou pareciam cartões-postais, não eram cidades de verdade, não eram Salvador. Aqui ela pertencia e se sentia parte das suas águas, matas, brisas, cheiros e de seus conflitos. Afinal o que era orixá?



Como filha de Oxum, ela aprendeu desde muito cedo a ver a cidade de uma forma única. Aprendeu a ser mãe e a guardar seus mistérios, pois muito do que sabia não poderia ser facilmente revelado, poucos suportariam.



Com o tempo ela se acostumou a seu destino de falar para ajudar os outros, de orientar as pessoas para que fossem felizes, de contribuir para o equilíbrio físico e espiritual de tanta gente, mesmo falando pouco. Mas os filhos não pareciam ter a mesma preocupação com ela. Será que isso se dava por não serem seus filhos biológicos? Essa era a questão que a atormentou por toda vida.



Ela teve alguns namorados, poucos, mas os que teve não tiveram coragem de tirá-la dali, muitos se aproximaram inclusive por estarem inebriados com o seu  poder, pelo desejo de usufruírem da sua companhia e de se apoderarem da sua força, mas quando isso acontecia os orixás a avisavam e ela logo percebia, então se afastava e permanecia sozinha. Mas seu desejo mais calado era de que um dia alguém a levasse e a fizesse desobedecer, sabia que certamente sofreria, mas saberia viver a loucura que os que amam vivenciam? Isso ela nunca saberia.



Agora ela está idosa e acha graça de coisas que ninguém ri, imagina cenários que ninguém vê, conversa com pessoas que ninguém escuta e responde perguntas que ninguém fez. Seus dias passam sem novidades e ela não sai mais para ver a cidade. As notícias sobre as mudanças chegam até sua casa e a fazem imaginar a tristeza em que o lugar aos poucos se transforma. Agora todos eles é que vêem lhe visitar e aproveitam pra lhe falar. Ela diz que as histórias chegam no seu tabuleiro, ela não precisa buscar!



Às vezes é Xangô que vem a seu quarto conversar e lhe fala das injustiças que tem tido que enfrentar. Outras vezes é Ogum que vem lhe visitar e lhe fala das guerras que teve que travar, das armas potentes que precisou usar e do valor da sua companhia a lhe guiar. Nessas horas ela é feliz, coça a cabeça, bate palmas e comemora como quem torce por um time que acabou de fazer um gol.



Nas noites Iemanjá chega entoa uma canção de ninar e a faz adormecer tranqüila, outras vezes é Nanã que acaricia sua face, cabelos e conversa baixinho no seu ouvido mandando recados pra seus filhos queridos. Semana passada foi Oxaguian que estava zangado falando do seu jeito mole, mas muito bravo, firme com seus mandados, pediu pra ela anotar e não esquecer de cuidar.



Ontem foi Oxumaré que veio como uma cobra mesmo, as pessoas da casa até se assustaram, correram, gritaram, mas ela ficou muito calma, entendeu o recado e conversou com a serpente, depois a levou até o matagal e a deixou seguir em frente.



Outro dia foi a vez de Irôco que sacudiu sua árvore, balançou e arrancou as raízes, para revelar que outra árvore estava renascendo, ela tomou aquilo também como um aviso, chamou sua filha mais velha e levou horas conversando com ela. Depois foram as crianças que deram pra fazer perguntas inoportunas e intrigantes deixando que ela ficasse preocupada com seus futuros, num mundo sem respostas.



Às vezes chegam todos de uma vez, ai ela se agita, pois não consegue ouvir direito, nessas horas ela grita pede silêncio e respeito tentando organizar o conflito. Nos dias de chuva e trovoada ela ouve Iansã feliz, dando suas gargalhadas e quando a chuva é fininha ela fica calma falando com voz de meninazinha, pois é Oxum a dona da sua cabeça, sua rainha, aquela que está sempre ao seu lado, a que nunca a deixou sozinha.



Certa vez foi Oxossi que passeou pelo seu quarto a cavalo, trotando e cantando desafinado, falou de suas caçadas e que na vida não iria deixar jamais lhe faltar nada. No mesmo dia veio Logunedé que lhe tomou a benção e adormeceu, ajoelhado a seus pés.



Falam que ela adoeceu, para os médicos são sintomas da degenerescência que a fazem inventar histórias grotescas e que não diz coisa com coisa, nem nada com nada. Dizem que isso é da idade, portanto se vivermos bastante teremos a oportunidade de ver o que ela vê, ouvir o que ouve e talvez saber dos segredos que sabe. São momentos das vidas de nossas mães, guardados só para aqueles privilegiados que tiverem a sorte de vê-las envelhecer.



Tem momentos em que ela me olha e espera ansiosa minha fala. Então eu lhe conto das lutas travadas e perdidas, das doenças vencidas, do meu corpo cansado, do sono sobressaltado, das viagens a lugares sem mares. Ela se assusta, pois sabe que sem mar eu não vivo, nem respiro, daí ela me abraça e fala “que bom minha filha que você voltou e vive em Salvador, pois com nosso mar ah! vai ser difícil acabar!”



Axé!