domingo, 10 de novembro de 2013

AS INTOCÁVEIS

A vida dos brancos é diferente da vida das famílias negras, em muitas coisas, em outras são muito parecidas, muitas vezes não nos conhecemos e, portanto, não sabemos em que diferimos ou em que nos parecemos. Arbitrariamente acreditamos que os brancos têm uma vida melhor, que compartilham ideias comuns, alguns pensam que eles se reúnem para tramar contra os negros, que aproveitam melhor a vida e que provam, comem e saboreiam as melhores coisas do mundo só por serem brancos.

 
Acredito que muitas dessas coisas realmente acontecem, ou que pelo menos, muitos assim agem e fazem acontecer, daí não ser esse um sentimento arbitrário. Nós, pessoas negras trazemos em nossos corpos/pele e espirito, histórias e marcas dessa relação covarde, maléfica e muitas vezes determinante em nossa condição de vida. Experiências que ouvimos contar, presenciamos e até passamos e que nos tornam brancos e negros seres quase intocáveis.

 
Por isso os brancos deveriam entender quando alguém que mora em uma comunidade majoritariamente negra, como a do Barro Vermelho, que vive e se relaciona com as coisas comuns que acontecem às pessoas negras dessa comunidade, compartilham os mesmos sonhos e projetos de superação, de luta pela sobrevivência diária, de fé em divindades, saberes reinventados para driblar as armadilhas impostas pelas relações desiguais, para vencer a ausência de políticas públicas.

 
E mesmo que terminam por compartilhar misérias, infortúnios e vitórias, deveriam compreender como tais pessoas dividem um universo próprio, simbólico, com linguagens para além das barreiras da língua, encruzilhadas onde nos encontramos para entoar canções que dizem respeito a nossos sentimentos mais profundos, nossa “arte”, música, dança, literatura, nossas expressões culturais, representam de diferentes formas nossas histórias e a história dessa relação, são armas contra a discriminação e para a superação imaginária e factual das desigualdades.

 
De tal modo que quando nos colocamos diante dessas artes, as interpretações são diversas, as leituras, são múltiplas, mas de uma coisa sabemos: não há folclore em nenhuma delas.

 
É impressionante como os brancos se dedicam em minimizar essa produção cultural foclorizando-a para servir de produto de exportação, ou para comercializá-la. Outras vezes, na maioria das vezes, tratam de certo modo que transformam aquela produção em algo que lhe sirva de abrigo, renomeando, se apropriando dessa arte como de sua criação e ai investindo e capitalizando-a para obterem, como sempre, lucro e mais valia da produção negra.

 
Acontece que nós negros também nos apropriamos de muita coisa da cultura “branca” reinterpretando e ressiginificando para nossa visão de mundo, a diferença é que isso não gera para nós um valor a mais, lucro, ou seja, verdadeiramente, não nos apropriamos de seus produtos e sim de suas sobras, daquilo que não lhes serve mais, ou que no final acabam por dar lucro a eles mesmos, pois não perdem nada com isso.

 
Pensando assim Conceição manteve-se quase calada naquele sábado. Enquanto fazia o cabelo de algumas mulheres, ela só cantava. O feijão estava no fogo e o cheiro da feijoada se misturava ao de cabelo quente, o dia também estava quente e ela gostaria de estar na praia ao lado de uma cerveja bem gelada.

 
Conceição imaginava que a cerveja era um produto criado pelos brancos, era de origem alemã, então ela pensava que essa foi uma boa criação, uma bebida que se adaptava tão bem ao calor dos trópicos, que não era muito cara, de modo que muitas pessoas poderiam ter acesso a dita cuja. Uma cerveja bem gelada sempre caía bem em dias como aquele, o problema é que muitos homens negros gastavam todo seu salário no consumo desta e de outras bebidas alcoólicas e isso invariavelmente resultava em conflitos nas famílias negras, pois esse era um gasto que muitas não poderiam ter.

 
Mas como viver essa realidade sem uma droga? Ou melhor, como enfrentar um dia atrás do outro sem uma alegria artificial por alguns momentos, fornecida por algo além, algo saboroso, inebriante, que lhe enchia de coragem, sonhos, ilusões? Naquele momento Conceição compreendeu os homens negros e ai ela cantou outra música. Quando cantava sempre tinha um significado, suas canções eram recados, mensagens pra quem entendia seus pensamentos e seu coração.

 
Quando estava triste ela cantava músicas tristes, sua entonação era quase um choro, um lamento, nesse momento ela cantava boleros, Cartola, Pixinguinha, Nelson, Angela Maria. Quando saudosa ela cantava Gonzagão, forrós, Marinês e sua Gente, Dominguinhos. Quando feliz ela cantava sambas Noel, Elza, Dorival cantava e muitas vezes dançava com o ferro de cabelo na mão. Gosto de me lembrar dela assim, porque nesse momento ela me tirava pra dançar, rodopiava e me largava na sala e dizia: samba neguinha! E eu inventava minha dança e todas riam de meus passos desengonçados.

 
Assim nos socializamos nas comunidades negras, sempre ao lado de nossas mais velhas. Quando recebia o primeiro pagamento me mandava ir correndo comprar uma cerveja, bem gelada e todas bebiam, cantavam e contavam seus casos.

 
Dona Ondina estava preocupada com o caso de seu filho menor o Dirceu, ele estava com uma coceira que não passava com nada, depois de amanhecer em frente ao posto médico ela conseguiu uma consulta e descobriu que o menino tinha “Bicho Geográfico”, coisa que se pega em terreno onde tenha outros bichos como gato, cachorro, coisa de menino que brinca na terra. Todas ficaram assustadas, pois onde mais suas crianças iriam brincar? Teriam que aprender a conviver com o Bicho Geográfico, quem sabe assim aprenderiam geografia, mas era preciso tratar da tal enfermidade e foi o que Dona Ondina ensinou a todas.

 
Dona Arminda começou a falar dos seus patrões os “B” da cidade alta, esse sem dúvida era um assunto que todas gostavam, pois compartilhavam experiências comuns. Arminda também era lavadeira e você não tem ideia, meu caro leitor, da ciência que era preciso ter para lavar as roupas dos brancos antes da máquina de lavar. Nessa época a máquina de lavar eram elas, as mulheres negras do Barro Vermelho. Arminda contava que as roupas vinham muito fedorentas, pois ficavam guardadas, misturadas, inclusive com toalhinhas de menstruação das mulheres, pois naquele tempo não havia absorventes.

 
As lavadeiras lavavam tudo, desde pano de chão, de prato, a roupas das mais delicadas e intimas. As toalhas de menstruação eram fervidas com ervas aromáticas e alvejantes naturais que as lavadeiras conheciam, as camisas de linho também eram alvejadas com outras ervas, anis, alfazemas, muitas roupas brancas ficavam quarando ao sol e depois elas levavam para o rio e enxaguavam com bastante água corrente. Depois de todo esse trabalho vinha à fase de engomar a roupa com goma feita bem fininha, daí colocavam pra secar para só depois passar o ferro que era a brasa, pesado e muito quente. Ainda bem que dona Arminda tinha os braços grossos e fortes e suas filhas ajudavam a engomar, os meninos iam entregar as trouxas. Ela tinha quase uma lavanderia em casa.

 
Nesse momento Conceição cantava Clementina “Ensaboa mulata ensaboa...tô ensaboando” e elas brindavam com cerveja. Cora contava das suas idas e vindas nas casas da cidade alta em minha companhia. E eu repassava minhas experiências nas casas dos brancos para as demais crianças do Barro Vermelho, eram como histórias, as crianças queriam saber o que os brancos faziam para ter aqueles cabelos lisinhos? Ou como fazer para ter tantos brinquedos, o que eles comiam, bebiam ou faziam pra se divertir?

 
Sim meu caro leitor, aprendíamos desde cedo a diferenciar a vida dos brancos de nossas vidas, aprendíamos que erámos intocáveis, e eu relatava de forma segura que:

 
“Eles comem comida fraca, arrozinho, macarrão, poucos comem feijão, a carne que eles comem é sempre molinha, nunca comem carne com osso. O peixe quase não tem espinha e a galinha sempre é de granja, nunca de quintal como a nossa.” Eles não comem miúdos, charque, café preto, sempre tem leite e eles comem diariamente queijo, coisa que nós criança do Barro Vermelho só comíamos no natal, quando minha tia fazia um caixa que ela pagava o ano inteiro para comermos um queijo cuia no final do ano, com um prazer inenarrável.

 
“Para cuidar do cabelo elas têm uma infinidade de shampoos, cremes e loções e não precisam passar pelo ferro quente, ele é lisinho assim naturalmente, lavam esse cabelo quase todo dia, mas não adianta muito, pois sempre estão com piolho e minha tia me manda tomar cuidado e não encostar minha cabeça na delas, aliás não posso encostar muita coisa nelas: minha mão, meu pé, meu corpo, somos intocáveis, apenas, olho, reparo e sinto. Um dia uma delas me tocou, pegou minha mão e me levou pra brincar com elas, foi um choque minha pele quente naquela pele fria. Olhei pra minha tia e ia pedir ajuda pelo susto, mas ela balançou a cabeça afirmativamente e me deixou ir com a menina.”

 
No seu quarto “cachinhos dourados” tinha todos os brinquedos possíveis, parecia uma loja, mas o que mais chamou minha atenção foi uma vitrola onde ela colocava discos e ouvíamos músicas: Noel, Cartola, Gonzagão, Pixinguinha, Angela, Elza, ela só não tinha Clementina. Fiquei estarrecida imaginando o que Conceição iria pensar daquilo e cantei, cantei, dancei e tirei “cachinhos dourados” pra dançar, rodopiei com ela na sala e a soltei gritando: dança neguinha!

 
Daí, não vi mais nada, foi só o choro da menina que caiu no chão e Cora me pegando pelo braço e dizendo mais uma vez: eu não te disse pra não tocar nela?
 
Éramos e ainda somos intocáveis.