domingo, 25 de março de 2012

O Homem, o Menino e o Cavalo



Hoje ela teve que ouvir que os homens também têm boas histórias, incríveis histórias de grandes, fantásticos homens. Essa avaliação veio, é claro, de pessoas de quem ela gostava muito e que sabiam valorizar bons casos a partir do caráter singular, que cada um de nós pode apresentar. Mas estamos na Bahia onde gente com tais características são maioria, homens e mulheres repletos de belas e tradicionais histórias, disso não tenho dúvidas. O interessante são as coisas que se perdem, as histórias que não registramos e não nos chega se não houver registro.

Numa sociedade como a nossa é preciso se dar ao trabalho de registrar tais histórias, mesmo porque não há interesse dos grupos hegemônicos em determinados fatos e para os contra-hegemônicos existem poucos espaços onde essas narrações ecoem e despertem curiosidade. Ou seja, não podemos esperar que queiram saber sobre nossas histórias, mas nós precisamos conhecê-las. Portanto, se não quiser que ninguém saiba não me conte suas histórias.

Ela despertou seu interesse pelas experiências das mulheres, por ser mulher e por estar mais próxima destas. Mas os grandes homens também fazem histórias que mudam o rumo dos ventos, até porque todos eles saíram de grandes mulheres. Um destes homens de quem ela ouviu falar foi alguém assim.

Diante dele peço licença às mulheres e busco na memória algumas de suas façanhas que já me contaram, ou ouvi faz muito tempo. O leitor pode estar curioso, mas pode também não acreditar que já existiu alguém assim na Bahia. Mas, o mais fantástico é que ainda existem e nascem todos os dias pessoas como essa.

Ele pertencia a uma família católica e quando criança foi coroinha da igreja do Paço, numa pequena cidade do Recôncavo baiano, mas quando nasceu era muito fraco e sua família achava que ele não sobreviveria à próxima epidemia, por conta disso levaram-no para ser iniciado no Candomblé para, como se diz até hoje, “ser cuidado”. Ele foi feito numa casa Angola de uma Iyalorixá bastante respeitada e famosa na cidade de Cachoeira.

Depois com a morte de sua Iyalorixá, refez o santo numa casa Ketu, mudando de nação ainda criança. Menino foi morar na capital abandonando cedo à casa dos pais. Mesmo indo de encontro à vontade de seu pai ele fugiu de casa e na capital foi tentar sobreviver começando cedo a trabalhar, em um armazém no Pelourinho. Um homem no corpo de um menino, alguém que não veio ao mundo a passeio e que sabia para onde ir, viveu intensamente seu destino e, portanto sua trajetória começou bem cedo. Seu nome era João e como era baixinho e muito jovem chamavam-no de Joãozinho.  

Entretanto, Joãozinho sofria de fortes dores de cabeça e passou muitas noites em claro chorando e sofrendo sem conseguir dormir. Muitas vezes acordava assustado com os sonhos que tinha onde aparecia sempre um menino pequeno e preto correndo e sorrindo, indo ao encontro de um homem montado a cavalo que seguia na direção da lua.

Certa vez, contou seu sonho a uma baiana de acarajé que tinha um ponto em frente a loja onde ele trabalhava e ela resolveu levá-lo num terreiro de Candomblé, no Engenho Velho da Federação. Ainda adolescente ele se assumiu como homossexual, pois percebeu-se fascinado pelo professor de geografia e literatura, no Colégio Central da Bahia. Depois que provou do amor de um homem ele não quis mais saber de mulheres, pois como amante se entendia muito melhor com os homens.

Muito jovem começou a receber um caboclo. Os caboclos não são Orixás, mas espíritos encantados, originários das religiões indígenas, sem relação direta com a África. Esses candomblés de caboclo foram alvo do desprezo do povo de Ketu, zelosos de sua “pureza” africana porque, nessa época, havia um empenho por parte de influentes intelectuais em firmar a idéia de que havia nos terreiros Ketu uma certa “pureza” e maior “nobreza”, com relação às raízes africanas e isso deixava Joãozinho muito triste.  

Ele era um dos poucos homens que frequentava o salão de beleza na casa de Cora. Ia lá sempre que podia, para pintar o cabelo, afim de mudar o visual, às vezes espichava a ferro, outras vezes fazia tranças em Nagô. Ele era um homem vaidoso, muito belo e cobiçado. As mulheres ficavam ouriçadas com a presença dele no salão, todas queriam paquerá-lo e ouvir suas histórias de experiências picantes. E embora João gostasse muito das mulheres, admirava-as, mas não como amantes.

O certo é que ele foi considerado um homem adiante de seu tempo: negro que alisava e pintava os cabelos por vaidade, sem se preocupar com a polêmica de poder ou não colocar ferro quente na cabeça de um iniciado; homem que não se envergonhava de ser homossexual na homofóbica Bahia; pai-de-santo que afrontava os princípios de que homens não podiam “receber” o Orixá em público, tornando-se famoso pela sua dança; incorporava ao Candomblé a entidade indígena do Caboclo Pedra Preta; adepto de Angola, numa cidade dominada pela cultura jeje-nagô; babalorixá jovem, numa sociedade dominada por iyalorixás mais velhas o que, segundo seus filhos-de-santo, ativou o despeito das mães de santo tradicionais da Bahia.  

Seu sonho era ser famoso, artista, bailarino, ou jornalista. Assim ele foi até a rádio Sociedade da Bahia e por lá começou um programa de rádio que ia ao ar todos os domingos, pela manhã. Nesses programas ele respondia cartas de ouvintes e recomendava tratamentos diversos para todos os tipos de males, de acordo com a recomendação de seu caboclo. Dessa forma tornou-se mais famoso que o Cardeal da Silva. Suas recomendações eram repassadas de boca em boca e a Feira de São Joaquim passou a vender mais que nunca as ervas recomendadas por ele.

Seu primeiro terreiro foi num bairro chamado Ladeira de Pedra. Lá, tocava indiferentemente Angola e Ketu, o que contribuía – e muito – para aumentar o escândalo em torno de seu nome. Um dia despediu-se de Salvador e foi morar no Rio de Janeiro, na sua despedida fez uma festa no Teatro Jandaia, apresentando ao público pagante danças típicas do Candomblé, escândalo final para os adeptos baianos, e mudou-se para o Rio de Janeiro, onde abriu casa em Duque de Caxias, Baixada Fluminense.  

Seu terreiro era feito com modestas instalações, no entanto aquele local na Baixada Fluminense, foi ficando cada vez mais famoso, pela presença dele e pela grande quantidade de templos afro-brasileiros que ali passaram a se localizar. No novo endereço atendia políticos, embaixadores, consules, presidentes artistas e pessoas ricas da sociedade carioca.

O próprio João nunca revelou os nomes de seus filhos ou clientes; seus filhos de santo é que espalharam essas notícias, orgulhosos do status da casa de seu pai. Costas quentes ou não, o caso é que ele nunca teve seu terreiro invadido pela polícia, nem jamais foi preso, ao contrário do que acontecia com diversas casas naquela época.  

Contam que chegou a fazer despacho para Exu em plena Praça XV, no Rio de Janeiro. O caso é que tornou-se o primeiro pai-de-santo realmente conhecido no Brasil. Sabia do poder da imprensa e manteve relações com publicações importantes, deixando-se fotografar com os trajes dos Orixás.

Utilizando-se deste recurso, foi um dos primeiros que mandava colar nas paredes dos mercadinhos de Nilópolis, Nova Iguaçu e Duque de Caxias papéis e cartazes onde se divulgava todo o calendário semanal do terreiro, como por exemplo: Segunda-feira: dia de distribuições de sopas e agasalhos aos pobres, festa para Obaluaiê e Gira para Exus. Quinta-feira: dia de festa à Iansã, Oxóssi e Ogum. Sexta e Sábado: Festas de confirmação de Iaôs e atendimento médico, sábado à tarde.  

A comunidade aparecia em peso, e mesmo os que não freqüentavam o Candomblé iam para ver as festas. Ele transformou sua casa num centro comunitário onde o povo da Baixada livremente frequentava e encontrava abrigo. Grande parte daqueles que freqüentavam não eram filhos de santo, e sim pessoas que estavam naquele momento fascinadas pelo grande movimento de popularização do Candomblé na cidade do Rio de Janeiro e pela figura de João.

 A noção de pertencimento ao culto dos Orixás era visível no terreiro, era uma espécie de associação mística ao campo religioso, em que os laços de associação do indivíduo, com a forma de culto se redefinia a cada divulgação das festas de Candomblé, tanto na imprensa carioca como nos mercados populares da Baixada Fluminense. E dessa forma a população assumiu cada vez mais este pertencimento, com orgulho, auto-estima, devoção e admiração por aquele fascinante pai de santo.  

Certa vez João resolveu participar do carnaval carioca vestido de mulher. O assunto rendeu uma polêmica terrível com outros babalorixás e chefes de terreiros da Umbanda. Ele brigou pelo seu direito ao livre-arbítrio, declarando que jamais permitiria que qualquer outro pai ou mãe de santo se intrometesse em sua vida.

Ele nunca deixou de atender através do seu caboclo, que segundo ele: “o caboclo me deu tudo, se como e bebo foi ele que me deu, ele é meu marido, meu pai, meu filho, sem ele não saberia quem sou e na presença dele muitas vezes me confundo, pois somos um único ser habitando este cavalo, muitas vezes em um só tempo”.


Quando completou vinte e cinco anos de santo ele voltou a ter seu misterioso sonho com o pequeno menino correndo atrás do homem a cavalo em diração à lua. Daí resolveu voltar à Bahia e deu “obrigação” com uma famosa mãe de santo daqui. Veio fazer a obrigação dele; tirar a mão de Vumbi e fazer bodas de prata. Mas ele não só fez sua obrigação com esta Iyalorixá, como foi o primeiro homem que ela permitiu que vestisse o Orixá e dançasse em público “virado” no santo em sua casa.


Porém, é fato que, embora até o fim da vida continuasse tocando tanto Angola quanto Ketu, a partir desse processo passou a orientar seus filhos de santo para que seguissem uma orientação única, optando entre Ketu e Angola.


No dia 18 de março teve novamente aquele sonho, mas dessa vez viu o menino que o levava até o homem montado a cavalo, em direção à lua e viu seu rosto no rosto do homem que conduzia o cavalo. João entendeu que não havia mais mistérios, era Oxóssi, era seu caboclo e era ele. O homem, o menino e o cavalo.

 Morreu aos 56 anos, 40 dos quais dedicados ao Candomblé. Cofou no dia 19 de março, dia de São José, dia de plantar milho na Bahia, oito dias antes de completar 57 anos. Por estranha coincidência, no dia de sua morte sua roça em Duque de Caixas iria promover o Lorogun - uma das grandes cerimônias do Candomblé que significa o fechamento do terreiro para o período da Quaresma.

Foi sepultado no cemitério de Duque de Caxias, num dia em que uma chuva de proporções míticas caiu sobre o Rio de Janeiro e exatamente na hora em que seu ataúde baixava à sepultura raios e trovões rasgaram o céu. Para os adeptos, uma manifestação de Iansã recebendo seu filho, que culminou com muita gente “virando no santo” em pleno cemitério.

Depois, os assentamentos de Joãozinho da Goméia foram transferidos para uma nova Goméia, em Franco da Rocha, São Paulo, onde os ibás de seu Oxóssi e de sua Iansã estão sendo devidamente cuidados e “alimentados”, e podem ser visitados pelos adeptos que fazem parte da familia de santo até hoje.

Essa é parte da história de um grande homem, que se fez homem ainda menino, renascendo a partir de uma nova iniciação, recriando um universo a partir de seus sonhos, reorganizando a sociedade a partir da possibilidade de novas vivências comunitárias, reinventando o conceito de ser e tempo no seio da mais tradicional das religiões e em plena ditadura.  

Tudo isso, meu caro leitor, só pra você lembrar que não existem limites para alma do povo negro da Bahia.
 

 

domingo, 11 de março de 2012

"UMA HOMENAGEM ÀS MULHERES NEGRAS"


A cada dia que passava ela sentia-se mais diferente e distante das outras. Suas amigas não percebiam, mas ela sabia que seria difícil continuar com aquelas amizades por mais tempo, pois muito do que elas apreciavam não fazia mais parte do elenco de coisas pelas quais ela  se interessava agora.

Andava distraída e se aborrecia com situações aparentemente bobas, nesses momentos seu coração acelerava e sua mente avisava que continuar naquela direção não seria bastante prudente.

As piores coisas que presenciava, ouvia, ou lhe relatavam e o que chamava a sua atenção eram as situações de racismo, de discriminação de mulheres, homens, crianças e idosos negros.

Aquilo parecia inadmissível de acontecer, mas ainda assim, acontecia. E o mais interessante é que as pessoas conhecidas, aparentemente boas pessoas, que se consideravam brancas, ou quase brancas, não viam dessa mesma forma. Com estes pensamentos e com lágrimas nos olhos, por ter passado por uma situação de discriminação racial, ela entrou naquela tarde de sábado no salão de beleza.

O espaço da casa onde as mulheres faziam o cabelo foi sendo modificado com o tempo. Se antes era só um canto na cozinha de Cora, agora era um vão inteiro. Os serviços também se ampliaram e mesmo mantendo a tradição do clássico espichamento a ferro, surgiram também penteados feitos de tranças, chamados de “afro”, produtos químicos poderosíssimos, entrelaces, mega hair, implantes com fibra e com cabelo natural, “Black-power”  etc.

O salão cresceu e a clientela também aumentou: crianças, adolescentes, mulheres adultas e idosas, todo tipo de mulher preta passou a procurar o estabelecimento. Apareceram novidades para cabelos crespos em produtos químicos e técnicas afro-americanas, que passaram a fazer parte do mundo das mulheres negras baianas. Era como se o universo de tais mulheres e de seus cabelos fosse o mesmo em todo o globo.

Posso afirmar que a partir do cabelo, iniciou-se um diálogo perdido no corte produzido pelo processo de escravização, entre as mulheres negras da diáspora e da África, uma comunicação, diria eu, interplanetária, bem acima do pescoço e do raciocínio lógico, pura intuição?

Havia nessas novas formas de utilizar os cabelos, aproximações com países africanos, jamaicanos, latino-americanos e com os EUA, numa comunicação transatlântica. As mulheres negras baianas pesquisavam em revistas importadas, filmes, internet, telenovelas, enfim, o mundo poderia ser descrito a partir de suas cabeças. E dessa forma, quase intuitiva, estabeleceu-se o diálogo silencioso das madeixas crespas, que, para quem quisesse entender a partir daí, muitas interpretações poderiam ser feitas.

Assim, quando uma de nós encontrava uma mulher com o cabelo espichado a ferro, entendia que havia ali uma tradição, talvez um motivo justo, ou uma questão de auto-estima mal resolvida. Já aquelas que usavam cabelo rastafári, andavam de cabeça erguida e entendia-se que sabiam algo que compartilhavam entre elas. As mulheres com cabelo Black dialogavam bem com as de cabelo trançado, como se pertencessem a grupos diferentes, mas ao mesmo tempo muito próximos.

Já as que faziam implantes, para muitas outras, estavam ainda num processo de procura da identidade, perdida entre sua imagem real e a projetada, mas sem dúvida, a imagem projetada muitas vezes era bastante real e com esta, para tais  mulheres, o diálogo era bem mais fácil.

Meu caro leitor, realmente não é fácil entender as mulheres negras, não fomos feitas para sermos facilmente definidas, somos extremamente complexas e demasiadamente a frente dos tempos, para certos padrões socialmente impostos de mulheres.

Fomos feministas antes de tal conceito ser pensado, reinventamos uma religião para o nosso povo não enlouquecer, ou perder seus laços. Sobre as sociedades matriarcais somos  nós que experienciamos, guerrear ao lado dos homens até hoje estamos, viver nossas sexualidades, corajosamente tentamos, assumir solitariamente as famílias e a criação de nossos filhos nós majoritariamente lideramos.

Mas, o espaço de se entregar a outras mulheres no momento em que seus cabelos são transformados é um espaço mágico, atua como nosso divã, chega a ser terapêutico. Quando o penteado nos agrada saímos do salão curadas e felizes.

Outras vezes, quando o tratamento capilar não é satisfatório saímos do salão derrotadas, por isso, nesse momento se alguém perguntar algo idiota pode receber uma resposta bastante calorosa e violenta e não vai nem entender o porquê. Mas, o salão também era o lugar onde ela ouviu naquela semana inúmeros casos de racismo que se passaram entre as mulheres.

Quando uma delas acabava de contar uma coisa, a outra logo emendava com algo mais terrível ainda. Isso a fez refletir em tomar a decisão de que algo precisava ser feito em termos de denúncia, pois não cabia mais aceitar esse tipo situação. De fato, muitos dos casos já traziam em si a solução, pois as mulheres contavam a reação e a atitude que tiveram e isso servia também de aprendizado, de lição para as demais.

Ela começou a pensar que seria interessante ter um lugar que fizesse essa transformação unindo as mudanças na estética com as modificações numa atitude mais posicionada em torno da negritude, pois tudo isso junto fortalecia a auto-estima das mulheres negras.

Um caso interessante foi contado por Nadja. Ela era uma mulher negra muito bonita, tinha uma pele aveludada e brilhante, suas formas eram muito cheias e arredondadas, uma mulher gordinha e aparentemente muito alegre. Nadja usava um cabelo Black power, ela contou da situação que vivenciou em uma loja de departamento quando procurava comprar uma roupa e no momento em que foi fazer o pagamento enfrentou uma fila enorme. Mas na hora em que ia pagar uma mulher branca, tomou a sua frente e ignorou completamente o objetivo da fila. Nadja tocou na mulher e disse a ela que havia uma fila, que ela não poderia ignorar isso, mesmo porque, ela era uma mulher negra, grande e não era possível que não estivesse sendo vista.

Diante desta fala, Nadja contou que a mulher branca a agrediu jogando a roupa na cara dela, que se assustou frente a tal reação, mas também reagiu empurrando a mulher que se desequilibrou e caiu. Ao levantar a mulher ainda tentou agredi-la com xingamentos racistas, dizendo que não admitia ser tocada por uma negra, fedida e mal educada. Nadja então partiu pra cima da mulher sem enxergar mais nada. Elas foram separadas pelos seguranças da loja e logo após se acalmarem seguiram seus caminhos separadamente. Ela não prestou queixa de racismo, pois não sabia onde procurar tal serviço.

Ao ouvir essa história todas deram risadas e falaram já ter presenciado ou vivido coisas parecidas. Dora, que usava seu cabelo trançado em Nagô, relatou que foi ao médico e que foi muito mal atendida, que o profissional mal a olhou e já foi logo dizendo que pessoas da sua raça tinham muitos problemas de saúde, trazidos da África. Diante desta situação ela afirmou que saiu do consultório sentindo-se bem pior do que quando entrou.

Inês contou que estava ali exatamente fazendo o cabelo para melhorar a aparência, pois foi procurar emprego e disseram a ela que uma pessoa com aquele cabelo “duro” jamais conseguiria um bom trabalho em Salvador.

Joelma, que usava seu cabelo alisado a ferro, disse que foi tentar estacionar seu carro em um local público, mas o guardador não deixou afirmando que estava ali guardando a vaga para “alguém”, portanto ela não poderia estacionar ali. Ela então ficou surpresa de saber que ela não era “alguém”, com o perfil esperado pelo guardador para ocupar aquela vaga.

Isabel afirmou que uma “gringa” perguntou a ela onde comprar cabelo rastafári, pois ela queria utilizar aquele cabelo e não sabia onde consegui-lo. Ao que Isabel respondeu que existem coisas no mundo que não são vendidas e mesmo que fossem não teriam o mesmo valor, muito menos o mesmo resultado...

Luiza, que usava mega hair no cabelo, contou que foi a uma delicatessen e sentou em uma mesa para lanchar, quando foi abordada por uma mulher branca idosa, que a mandou sair por ser esse o lugar onde ela sempre sentava para ler seu jornal. Luiza respondeu dizendo que de agora em diante ela deveria aprender a sentar-se em outro lugar. A mulher branca ficou descontrolada por ter sido confrontada por uma negra e começou a gritar xingamentos racistas, ao que Luiza calmamente respondeu dizendo: Bom, agora a senhora vai aprender mais duas coisas: 1. Racismo é crime e 2. A justiça também foi feita para punir pessoas brancas, dito isto partiu indo a delegacia mais próxima, onde deu sua queixa, ao que a mulher branca teve que posteriormente se defender e responder até hoje.

Denise, que usa seu cabelo com dreads, foi ao banco, retirou tudo que era de metal da bolsa e colocou no lugar apropriado para tais itens, mas mesmo assim a porta giratória não permitia sua passagem. Ela ficou extremamente irritada, principalmente ao perceber que outras pessoas, inclusive com chaves e outros objetos metálicos nas mãos passavam tranquilamente, pela referida porta. Ela então bloqueou a passagem e disse que só sairia dali depois de falar com o gerente da agência. Criou dessa forma, uma fila enorme e quando o gerente chegou ela disse-lhe poucas e boas sobre a situação que se caracterizava como racismo. O gerente mandou abrir a porta e silenciou diante do vexame causado.

Vilma, que usa o cabelo rastafári, relatou que foi a uma loja, utilizando seu turbante branco, pois estava de obrigação. Por conta disso as atendentes da loja se recusavam em  atendê-la, quando uma delas finalmente se aproximou, foi logo informando o preço do objeto, como se ela não tivesse condições de comprar.

Karine, que usa alisante no cabelo, falou que trabalhava como psicóloga em uma unidade de saúde municipal, onde os pacientes não acreditavam que ela fosse “a psicóloga”.

Enfim, muitas foram as situações relatadas e ela começou a registrar tais casos e a freqüentar cada vez mais o salão de beleza, recolhendo essas informações e elaborando aos poucos artigos que trouxessem para o público em geral, as histórias e experiências de vida na perspectiva das mulheres negras baianas.

Assim, meu caro leitor, se você conhece outros casos ou mesmo vivenciou tais situações, por favor, nos relate, pois sua experiência pode servir de referência para esse levantamento e através da socialização dessas informações podemos nos fortalecer cada vez mais, refletindo e aprendendo com nossas próprias vivências.

Mas, uma coisa realmente já vem acontecendo. E essa é uma percepção do ponto de vista das mulheres negras, graças as transformações estéticas, principalmente a partir de seus cabelos, elas observam que as pessoas agem de forma diferenciada diante de mulheres que usam certos tipos de penteados. Então, nossos cabelos também integram nosso repertório de lutas e emancipação diante de uma sociedade negra, mas secularmente sexista e racista como a de Salvador.

Por esse ponto de vista, temos que considerar os espaços dos salões de beleza, como o da casa de Cora, como espaços de empoderamento das mulheres negras.

Tais espaços sempre existiram desde quando nossas ancestrais trançavam os cabelos de suas filhas, ou de quando aprendemos sozinhas a cuidar deles, ou quando nos iniciamos como Iaôs e os cabelos passam também por um processo de renovação e renascimento, fortemente ligado ao renascimento de nossas identidades.

Meu caro leitor é muito importante perceber tais transformações como históricas. Elas se realizam a partir de um processo de questionamentos e de novos entendimentos que só ampliam nossos diálogos. Um diálogo interno com nós e nosso corpo, externo com as outras mulheres e com a sociedade de forma geral ou com o Atlântico Negro, que sempre nos pertenceu e nos atravessa.

Viva nós, nossa força e a força das águas!