domingo, 18 de setembro de 2011

Quantos Anos tem a Rainha do Mar?


Que idade devemos ter para nos apaixonar? Que idade deve ter a pessoa amada para merecer esse amor? O que o tempo nos acrescenta além de cabelos brancos, dores no corpo e experiências a serem lembradas?

Questões dessa natureza invadiram a cabeça de Cora enquanto fazia o cabelo. Hoje ela pintou as madeixas brancas, lavou o cabelo retinto bem lavado, enxugou e ficou aguardando pacientemente sua vez de entregá-lo às mãos experientes de Conceição, que iria espichá-lo. Queria ficar bem arrumada para ir à festa à noite.

Cora era a mais velha das clientes do salão de beleza e muitas vezes as outras mulheres pediam sua opinião sobre os fatos mais inusitados, por considerarem sua experiência algo de um valor inestimável para elas.

Com o passar do tempo ela foi se dando conta desta condição imposta pelo tempo. Cora percebeu que a juventude era muitas vezes cruel com as pessoas mais velhas. De repente as pessoas começaram a chamá-la de “tia”, mesmo sem serem seus sobrinhos. Ela achava que estava muito bem de aparência, exceto pelo surgimento de alguns cabelos brancos, ela olhava no espelho e não percebia tanta velhice assim.

Mas as pessoas eram implacáveis, nas filas a deixavam passar em suas frentes afirmando que este era seu direito conquistado. Nas festas a chamavam de “coroa animada” quando ela dançava o passo da nova coreografia aprendida. A todo o momento a faziam lembrar que não era mais uma menina e embora ela bem soubesse disso, achava que não precisava ser lembrada desta forma.

Por conta dessa situação, que começou a irritá-la, Cora traçou um plano sórdido, ela iria sair à procura de conquistar um homem mais jovem, iria fazê-lo se apaixonar por ela, para com isso não deixar dúvidas em ninguém do absurdo deste marcador cronológico em sua vida.

E por pensar assim ela pintou e fez o cabelo, a sobrancelha, as unhas e pernas, colocou três camisinhas na bolsa e partiu para a festa da Conceição da Praia. Disse às outras que ia a missa, mas foi mesmo pra festa de Largo e procurou a barraca mais lotada a fim de ser paquerada. Ela estava bastante perfumada e com uma maquiagem bem pesada.

Muitos homens se aproximaram dela naquela noite, mas eles não tinham a idade que Cora procurava. E foi quando ela já estava quase desistindo, pensando mesmo em ir embora, pois já era meia noite, que apareceu aquele belo rapaz. O jovem era um homem forte, parecia um capoeirista, tinha um sorriso largo e os olhos extremamente vivos e pretos. Quando ele sorriu pra ela, seu coração disparou a galope, era ele o moço a quem ela iria se entregar naquela noite.

O moço logo puxou conversa e Cora percebeu que ele tinha pouco estudo, pelos erros do português que o jovem falava. Em seguida percebeu que ele tinha pouco dinheiro, pois na hora de pagar a conta ele deixou que ela sozinha pagasse. Mas, ele deveria ser um bom amante, pois suas mãos seguraram o braço de Cora com bastante firmeza e determinação que há muito tempo ela não sentia.

Foram a um motel na Barroquinha e lá o jovem não resistiu ao uso da camisinha e Cora teve uma longa noite de amor e orgia. Pela manhã o rapaz disse a Cora que tinha sido roubado e por isso não poderia pagar a conta do motel e Cora pagou sozinha. Depois desta noite eles se encontraram muitas vezes, no mesmo motel e agora Cora nem esperava mais que ele pagasse a conta ela já se adiantava e fazia.

Um dia o rapaz pediu pra conhecer a família de Cora e ela ficou preocupada, afinal o que as amigas iriam pensar? Ela mesma não sabia o que pensar, estaria ela apaixonada a ponto de revelar esse sentimento e compartilhar daquela experiência com as outras pessoas? Cora disse ao moço que iria pensar, pois ainda tinha dúvidas do seu sentimento. O moço jurou estar apaixonado por ela e até ficou zangado com seu descaso.

O que Cora queria não era se apaixonar era simplesmente demonstrar sua teoria para as amigas e vizinhas. Mas o rapaz não entendeu se zangou e desapareceu e Cora ficou semanas sem notícias dele. Cora sentiu muito sua falta e quando se reencontraram ela pediu que ele falasse mais um pouco de sua vida, pois mal se conheciam para que dessem um passo mais ousado como aquele.

O rapaz contou que era filho de Cachoeira, que veio pra Bahia trabalhar vendendo fumo na Feira de São Joaquim, ele era Nagô.

Nesse ponto meu caro leitor cumpre-me explicar o significado de ser Nagô na Bahia, faço isso por considerar que a identidade afirmada de um povo deve ser respeitada e embora aos olhos racializados todos os negros possam parecer iguais, enganam-se aqueles que assim pensam e furtam-se em compreender a diversidade de mundos que aportou e convive na Bahia. Desconhecer a riqueza presente nessa diversidade é o mesmo que sufocar até a morte um grande destino.

Milhões de negros e negras encobertos por suas peles retintas, trazendo dentro de si e em seu imaginário inúmeros símbolos e significados, que os diferencia em minúcias, invisíveis aos olhos, mas extremamente imprescindíveis de serem consideradas por aqueles que desejam conhecê-los.

Os Nagôs formaram-se a partir de um tronco comum de povos que falavam uma mesma língua, o iorubá. Muitos se instalaram no Recôncavo baiano e trabalharam no comércio do fumo, pois este era um artigo muito apreciado pelos negros, por isso era utilizado pelos europeus para pagamento dos traficantes no comércio de escravizados da época colonial.

Tal comércio fez da Bahia a capital mundial do fumo e da população negra uma presença de ponta a ponta neste estado. Assim, Ketu, Egba, Egbado, e Sabé são alguns dos segmentos Nagôs que vieram para a Bahia provenientes da grande área iorubá que compreende sul e centro da atual República do Benin, ex-Daomé; parte da República do Togo: e todo sudoeste da Nigéria. Ou seja, caro leitor, a Bahia recebeu uma África diversa em suas terras.

E todos eles - com destaque para os Kètu contribuíram decisivamente para e implantação da cultura Nagô neste Estado, reconstituindo suas instituições e procurando adaptá-las ao novo meio, com o máximo de fidelidade aos padrões básicos de origem, fidelidade essa em parte facilitada pelo Atlântico Negro, intenso comércio que se desenvolveu entre a Bahia e a costa ocidental da África durante todo o século XIX até os primeiros anos que se seguiram à Abolição e mesmo até os dias de hoje.

Enquanto os europeus mandavam seus filhos estudar na Europa para tornarem-se doutores, os negros mandavam seus filhos para a África para tornarem-se doutores, tradutores e mantenedores de sua cultura, aqui, bem próximo da sua casa, caro leitor.

Para entender o predomínio da etnia Iorubá-nagô na Bahia é necessário recordar que, nas últimas décadas do tráfico negreiro, um enorme contingente de escravizados dessa região foi trazida para Salvador. Nesse momento, os núcleos familiares também não foram tão desmembrados como no início da escravatura, permitindo uma maior manutenção da cultura e dos costumes. Famílias e reinados inteiros foram transplantados para o Recôncavo.

Nos dizeres de Edison Carneiro, no clássico “Candomblés da Bahia”: "Os nagôs logo se constituíram numa espécie de elite e não encontraram dificuldades de impor à massa escrava a sua religião". A própria Màe Aninha Obá Biyi era filha de um casal de africanos da etnia Grunci, os negros Aniyó e Azambiyó, mas foi iniciada no candomblé pelos Nagôs da venerável Casa Branca do Engenho Velho da Federação.

Histórias do povo da Bahia, meu caro leitor, coisas que não se aprende na escola tradicional, coisas que aprendemos nos terreiros de Candomblé, nossa verdadeira escola.

Mas, esse moço se interessou realmente por Cora, ele se chamava Jorge e disse ser Nagô, comerciante de fumo vindo de Cachoeira. Ele foi roubado na Feira de São Joaquim e quando saiu para procurar aquele que lhe roubou, encontrou Cora, mulher bonita, perfumada e carinhosa como nenhuma outra. Jorge logo se encantou e ficou com ela o tempo que ela quis. Agora estavam finalmente conversando e se conhecendo.

Ele era Ogã de um Terreiro Nagô em Cachoeira, era um homem de Xangô. Cora se encantou com sua história e resolveu assumir seu romance com Jorge. Então levou-o para conhecer sua família e suas amigas. As pessoas logo se admiraram com a diferença de idade do casal, mas não se importaram por ver Cora feliz, como nunca a tinham visto antes.

Ele veio morar com ela em Salvador, aqui tem uma barraca de fumo na Feira de São Joaquim e passou a frequentar o Ilê Axé Iyá Nassô Oká, a nossa catedral, a venerável Casa Branca do Engenho Velho da Federação.

Para lá ele levou Cora e agora ela é Ekedy de Oxaguian, cuida do jovem Oxalá, pois de juventude ela entende e sabe como agradar!

domingo, 11 de setembro de 2011

A História de Conceição ou: “De quando Dandalunda encontra Nzila”

 
 
Conceição começou a contar que tudo começou naquela semana, ela não estava muito afim de trabalhar, muito menos de ficar em pé o dia todo, fazendo o cabelo das outras mulheres, estava cansada e triste. Ela não costumava se entristecer com qualquer coisa, pois era uma mulher forte e destemida, mas mesmo as mais fortes e destemidas mulheres negras têm seus dias de reflexão em torno de si mesmas, e ai fazem uma conta de subtração de tudo que viveram e fizeram até ali, a partir de tudo que acreditaram, planejaram e desejaram vir a ser.
Nas suas contas Deus estava lhe devendo algumas coisas e isso a entristecia, pois, em sua avaliação, ela vinha sendo uma boa pessoa, com bastante saldo na conta da vida. No domingo mesmo, ela foi à Igreja do Bonfim e assistiu cinco missas seguidas e nada, ninguém interessante apareceu, ninguém a cortejou e ela mais uma vez voltou para casa e se entregou a rotina de outra semana de trabalho e a fazer o cabelo das outras mulheres, mas dessa vez até queimou o cocuruto de algumas delas.
Neste sábado, ela decidiu não fazer o cabelo de ninguém e resolveu ir a um terreiro de Candomblé, a convite de Rosa. Fazia muito tempo que Rosa já lhe convidava para ir até seu terreiro na Mata Escura, mas Conceição sempre inventava uma desculpa, pois achava que Candomblé não era religião, gostava das festas mas, religião para ela era frequentar uma igreja ouvir ladainha e falar sobre a vida de Jesus Cristo, seus exemplos, suas recomendações, tentando aplicar o que fosse possível a sua própria vida.
Mesmo assim, ela ouviu Rosa por meses contar vários casos de mulheres que conseguiram encontrar o equilíbrio, a saúde e o amor, após seguir as orientações de sua Mametu de Inquice, uma mulher forte e poderosa da Mata Escura. Por isso, Conceição pensou que não custava nada tentar, e resolveu acompanhar Rosa naquela semana. Também porquê, a tristeza que a acompanhava nos últimos tempos a estava fazendo chorar escondido e até mesmo desejar sumir do mundo, tudo isso já tinha passado por sua cabeça.
O terreiro que Rosa frequentava era uma casa de Candomblé de nação Bantu. Vale pontuar aqui, que as religiões afro-brasileiras, nascidas a partir da escravidão no Brasil, são na verdade um tipo de organização sócio-religiosa inspirada em padrões comuns de tradições africanas, baseadas em um sistema de crença, visão de mundo e linguagens. Essas religiões já nasceram diferenciadas das demais, pois seu objetivo nunca foi capturar fiéis, mas sim devolver a África mítica ao povo da diáspora.
Tal visão de África cumpria um papel parecido ao ideário de paraíso cristão, mas com muitas diferenças, uma delas era a de poder ser reconstruído em terras brasileiras, além do fato de não ser habitado exclusivamente por brancos e pessoas “boas”. O Candomblé tem uma estrutura eclesial que remete a reinados africanos, e sua hierarquia reproduz os modos de vida de tais reinados. Na maioria das casas a liderança é feminina e tais mulheres administram o espaço mítico como verdadeiras rainhas. Os Candomblés de nação Bantu no Brasil ficaram conhecidos por denominações muito amplas, que encerram um sem número de etnias e línguas, que têm sua origem distribuída entre os atuais territórios do Congo e de Angola.
Para os negros escravizados, reconstruir a África no Brasil através dos Candomblés foi sua forma de não enlouquecer, adoecer ou mesmo de não se deixar morrer. Inicialmente doenças como depressão e loucura, eram bastante comuns entre os negros, afinal de contas perder sua referência, sua terra, sua família, seus amores e ser jogado em um outro mundo, numa realidade imunda, perversa, por um povo embrutecido e ignorante como os europeus, no cenário da escravidão, não era uma condição nada salutar.
Particularmente porque os negros, apesar de terem sido animalizados pelos brancos, eram essencialmente seres sensíveis e espiritualizados, daí inventaram o Candomblé, o Samba, o Quilombo, a Capoeira, o Afoxé.. para defesa de um legado, além disso possuíam um desejo de liberdade que nenhum outro povo jamais teria e esse desejo precisava de espaços.
Essa liberdade não deveria se confundir com libertinagem, ela era o sonho de viver sua própria negritude, de compatilhar com as forças da natureza sua essência sem repressão, de poder ouvir o silêncio sem hora marcada, de poder amar sem culpa ou pecado, e  de criar seus filhos como pessoas livres e felizes. Coisas difíceis de alcançar diante da realidade vivenciada. Mas, ainda assim, foi possível reinventar a liberdade e transubstanciar a dor através de uma visão de mundo ímpar e extremamente complexa, além de possuírem criatividade e sensibilidade inclusive para isso.
Uma das formas encontradas foi sacralizar tudo que remetesse a essa África perdida e sufocada dentro de cada negro e negra. Isso só foi possível por conta da religião: o Candomblé. Essa religiosidade dava respostas e significados novos a suas existências e espaço para que essa África sufocada fosse libertada, nomeada e ressignificada em seus corpos.
A vida religiosa em um Candomblé na Bahia está centralizada nos terreiros, espaço sacralizado comumente chamado de roça, a maioria fica situada em locais afastados do centro urbano, antigos mocambos, prováveis remanescentes de Quilombos. Esses espaços sofreram perseguição policial contra a liberdade de existirem até os idos de 1976, a partir daí foram desobrigados de solicitar permissão de delegacias de polícia para realizar suas celebrações, mas não deixaram de sofrer com a intolerância, o ódio, o desrespeito e o preconceito religioso, principalmente os Bantu, os primeiros a chegarem aqui na condição de povos escravizados.
As pessoas de fora não entendiam o papel civilizatório e terapêutico do Candomblé, pois o que viam eram negras e negros entoando cânticos em uma língua desconhecida e dançando uma dança frenética e sem sentido. Acontece que tais pessoas jamais poderiam ou poderão ver o que é invisível aos olhos, sentir o que só sente quem compreende a dimensão perversa da prisão de almas e as possibilidades de multiplicação de todas essas energias viabilizadas pela mistura de culturas negras, visões de mundo, saberes milenares e concepções de divino que ultrapassam o humano, grupos diversos, que nesse convivio precisavam dialogar e construir outras fronteiras no universo de um imaginário afirmativo comum: a África de seus ancestrais.
Portanto, naquela época ir ao Candmblé era também uma forma de catarse, de terapia e ir a um Candomblé na Mata Escura era algo muito perigoso pois ainda precisava ser feito de forma disfarçada. Conceição e Rosa sairam à tarde e só pretendiam voltar de lá no dia seguinte. Como já tinha ido em algumas festas de Candomblé, Conceição já sabia como se comportar e toda a etiqueta que um terreiro exige. Mas, ela não conhecia essa casa e nunca tinha ido em um terreiro de angoleiros, por isso estava curiosa e ansiosa para observar as diferenças e as belezas referenciadas por Rosa.
Para chegar até o local na Mata Escura era muito complicado, pois tiveram que pegar dois ônibus, caminhar por quilômetros e seguir por uma estrada de barro em meio a matagais. Só Rosa conhecia o caminho, mas outras pessoas também estavam seguindo naquela direção, o que as deixou tranquilas. Num certo ponto do caminho um homem forte, negro, de meia estatura se aproximou delas e ofereceu ajuda, pois Rosa levava consigo muitas sacolas com suas roupas, folhas e dois galos brancos que seriam oferecidos a Nzila antes da festa.
Rosa não se fez de rogada e aceitou a ajuda do simpático rapaz, que em seguida passou a puxar conversa com as duas mulheres e a assobiar uma canção inquietante que Conceição desconhecia. Ele disse que se chamava Procópio e que era Caçanje, ou seja, ele era proveniente de uma das nações de angoleiros e que também estava indo para uma festa de Candomblé, pois ele era um Tata Mavambu.
Muita coisa que ele falava Conceição não entendia, mas disfarçava. Ela ficou encantada com a gentileza, simpatia e beleza do rapaz e queria saber mais coisas sobre ele, mas de repente o tempo fechou e começou a chover. Então elas tiveram que acelerar o passo para não deixar a chuva molhar seus cabelos, recém espichados no ferro. O rapaz também correu, só que correram em direções opostas e quando chegaram no terreiro Rosa estava virada em Bamburucema, e Conceição percebeu que ele havia desaparecido com as sacolas e todas as suas coisas.
Sua preocupação maior eram os galos de Nzila, que elas tinham prometido trazer. Daí Conceição falou com as pessoas da casa sobre o ocorrido e sobre o rapaz que conheceram no caminho e todas disseram não saber de nenhum homem por nome de Procópio. Ela ficou aborrecida e se sentiu enganada pensando ser aquele, certamente, um malandro da região, que através deste golpe ficou com as suas coisas.
As pessoas da casa estavam todas atarefadas na organização da festa e ela passou a colaborar nesta realização. Conceição foi ajudar outras mulheres a engomar as roupas que seriam vestidas à noite. Em um momento, uma das mulheres solicitou a ajuda dela para ir até o rio buscar água para lavar os pratos e panelas. No caminho Conceição perguntou o que significava ser um “Tata Mavambu”.
A mulher lhe explicou que ser “Tata” compete apenas aos homens e exige anos de aprendizado, a pessoa fica um tempo sendo observada para se perceber se tem perfil e aos poucos os Inquices indicam os escolhidos para tal função. São homens honrados, guerreiros, defensores incontestáveis das tradições e da cultura Bantu onde quer que ela se expresse.
Os atabaques do Candomblé, por exemplo, só podem ser tocados pelo Tata Xicarangoma, que é o responsável pelo Rum (o atabaque maior), e pelos Ogans nos atabaques menores sob o seu comando, é ele que começa o toque e é através do seu desempenho no Rum que o Inquice vai executar sua coreografia, de caça, de guerra, ou de amor sempre acompanhando o floreio do Rum.
Na nação Angola existem várias denominações para estes senhores, além de Tata Xicarangoma, eles podem ser: Tata Nganga Lumbido -  que é o guardião das chaves da casa; Tata Kisaba -  responsável pelas folhas; Tata Kivanda ou Tata Pocó - responsável pelos sacrifícios animais; Tata Muloji - preparador dos encantamentos com as folhas sagradas e cabaças e Tata Mavambu -  que é o que cuida da casa e das oferendas de Nzila/Exú.
Ao ouvir tais palavras Conceição perdeu os sentidos e desmaiou na beira do rio, sendo socorrida pela mulher com quem ela estava e outras pessoas que vieram ajudar. Ela foi recolhida neste mesmo dia só acordando semanas depois. Rosa voltou pra casa no dia seguinte e relatou o fato às outras mulheres, que ficaram todo esse tempo sem sua cabeleireira.
Na festa da saída de Conceição muitas mulheres que faziam o cabelo com ela acompanharam Rosa e foram assistir e acolher a cabeleireira, agora também angoleira. No caminho passaram pelo matagal e saíram em uma encruzilhada, no mesmo ponto onde Rosa e Coceição tinham se perdido do rapaz da outra vez. Neste ponto as mulheres ouviram o assobio da canção cantada por Procópio e ficaram arrepiadas pois ele não estava ali, Rosa recebeu Matamba e as outras a levaram até o terreiro, onde ela só acordou depois da festa.
À noite, na festa, o barracão estava cheio, lindamente enfeitado e perfumado. Dandalunda fez suas três saídas, no corpo de Conceição, ela tinha perdido sua linda cabeleira e parecia uma menina meiga, serena e Rosa de Bamburucema bailava no barracão invocando os ventos. A ventania se apossou de todo o espaço e os Alabês na hora do nome dobraram no couro os atabaques, pois tinha adentrado o barracão um grande Tata de Inquice da região. Era Procópio, ele foi convidado para dar o nome da nova muzenza. Procópio puxou o cântico da música que ele assobiava na estrada, agora cantando com sua voz rouca e afinada a música de Dandalunda, nessa hora muitas pessoas da platéia viraram no santo. Bamburucema e Dandalunda bailavam em seu entorno.
Procópio perguntou então no ouvido da muzenza de Dandalunda qual o seu nome ao que ela gritou bem alto “Aduni” (aquela que traz a douçura ao mundo). A festa foi até o amanhecer do dia e quando Conceição acordou estava deitada ao lado de Procópio, em uma cabana próxima a encruzilhada de um matagal. Ela não lembrava da noite anterior, mas ele lhe falou que agora ela era uma iniciada no Candomblé de nação Angola. Ela então perguntou porque as pessoas disseram que não o conheciam ao que ele respondeu “E vc onde estava? Porque demorou tanto de vir ao meu encontro e de trazer meus galos? Ninguém aqui me conhece pelo nome de Procópio, aqui eu sou Aluvaiá um Tata Mavambu e agora seu servo”.
 

domingo, 4 de setembro de 2011

“Joanete: Cabelo de Fogo”

Todo mundo tem suas manias, elas sabiam reconhecer isso e mais que isso elas gostavam de reafirmar suas diferenças. Mulheres negras, moradoras daquele bairro pobre e periférico, com seus pensamentos e reflexões sobre o mundo. Aliás, uma das coisas que mais as intrigou essa semana foi o fato de terem visto nas ruas, nos bailes, praias, nas festas de Largo e em muitos outros espaços públicos, tantas crianças trabalhando.

As crianças faziam inúmeros serviços: catavam latinhas, garrafas e papel usado nas festas, ou carregavam coisas para vender em pequenas porções como: amendoim, castanhas, pipocas, picolés, roletes, enfim, as mais variadas manufaturas fabricadas em casa por suas mães. Eram crianças, na sua grande maioria filhas só de mães, os pais não gostavam destes filhos (as), por isso eles abandonavam a casa logo que eles (as) nasciam. Em Salvador, a grande maioria das famílias era mantida por tais mulheres negras, que utilizavam de todos os seus conhecimentos para criar seus filhos com dignidade e produzir manufaturas era uma dessas formas.

Entretanto, meu caro leitor se uma dessas mulheres abandonasse seus filhos toda sociedade as condenava, os juízes criavam leis para prendê-las, puni-las, as organizações de mulheres brancas, que zelavam por certo modelo de família, ficavam horrorizadas com esse tipo de mulher. Achavam que tais famílias eram realmente ameaçadoras. Por conta disso, essas mulheres evitavam freqüentar alguns lugares e procuravam não chamar a atenção para sua condição de solidão. Já as crianças não tinham muita alternativa: ou ajudavam trabalhando, ou também sofreriam com a escassez dos recursos.

Joanete, quando criança, também trabalhou. Felizmente em sua rua tinha uma fabricação caseira de bolsas de couro. Neste lugar eles pagavam dez centavos por cada bolsa pintada com desenhos da Bahia. Ela era uma das crianças pintoras: era Elevador Lacerda, Praia de Itapoã, Farol da Barra, Baianas de Acarajé etc. Usava o pincel com uma habilidade extrema, permitida por sua pequena mãozinha afiada e motivada pela necessidade de ajudar sua mãe. Muitas vezes batia o recorde de bolsas pintadas por dia, tinha seu próprio pincel e gostava demais do cheiro da tinta.

Enquanto trabalhava Joanete pensava que se o governo trabalhasse tanto quanto as crianças de Salvador, talvez as coisas não fossem tão difíceis assim. Sobre as crianças havia uma cobrança das mães, dos mais velhos e do governo quem cobrava?

De vez em quando sua mãe a levava na casa dos brancos, onde trabalhava, e recomendava a Joanete que observasse como os brancos viviam. Como suas crianças eram educadas e limpas, como as casas eram perfumadas e ventiladas. Ela até tentava observar essas coisas para depois comentar com a mãe o que mais gostou e o que jamais aprovaria. Entretanto, na grande maioria das vezes, Joanete se distraia observando o pai das crianças.

Não por ele ser um homem bonito ou atraente, ela não achava isso, mas ele era “o pai” e essa era uma figura que Joanete jamais conheceu. Ao vê-lo agir com seus filhos e filhas ela ficava encantada, buscava fotografar aquela imagem. Geralmente as crianças brancas pediam dinheiro ao pai, para levar a escola e o pai dava dois reais! Joanete pensava em quantas bolsas ela teria que pintar para ganhar aquele dinheiro, talvez uma semana inteira de pintura...

Quando voltava para sua casa a mãe ia perguntando do que mais gostou e ela falava dos aparelhos eletrônicos, que nem sabia que existia: uma máquina que lavava os pratos, outra que lavava as roupas, chuveiro com água quentinha, esse ela até conhecia, mas em sua casa não tinha. A mãe balançava a cabeça afirmativamente e achava que dessa forma sua filha aprenderia mais sobre outros estilos de vida e que isso ajudaria em sua educação.

Porém, isso fez com que Joanete pensasse que ter educação era ter aquelas coisas e que para ter direito a essa vida ela teria que ser branca. Pois, esse tipo de realidade ela só conheceu no mundo dos brancos.

Ao voltar para sua comunidade outras crianças queriam saber: como foi a experiência, o que gostou, o que comeu, o que viu, o que fez, o que trouxe pra elas? Essas eram situações comuns entre as crianças daquele lugar, pois a maioria das mães eram empregadas domésticas em casas da orla e todas, quando iam com suas mães, sempre voltavam trazendo alguma novidade. Geralmente eram brinquedos quebrados que os brancos as deixavam levar, roupas usadas, sobras de comida, garrafas vazias, revistas, remédios vencidos, caixas, objetos quebrados, enfim tudo que eles já não queriam mais em suas casas e por serem muito “caridosos” faziam essas pequenas doações.

Mas, o que Joanete mais gostava de trazer eram histórias sobre as famílias, coisas que ela ouvia e estranhava e sobre a figura do pai. Como ele era, como se comportava, como tratava as crianças, a esposa e os empregados. As outras crianças também gostavam, as meninas brincavam de bonecas e inventavam um marido assim. Os meninos brincavam com seus carrinhos e também queriam ser um homem assim.

Foi dessa forma que sua mãe lhe ensinou, segundo ela, “a gostar do que é bom”.  Assim o bom para Joanete era o que fosse aprovado e utilizado no mundo dos brancos. Por conta disso, começou a alisar o cabelo desde menina. Ela não tinha medo do ferro, não se importava com o calor na cabeça, não fazia questão de ir à praia, não tomava banho de chuva e não brincava de outra coisa que não fosse ser a patroa.

Joanete queria embranquecer. Então evitava o sol, aprendia com as novelas, copiava as modelos e estudou mais que qualquer outra criança da sua comunidade para ser professora. Suas bonecas eram todas loiras, em seus desenhos da escola ela também se desenhava branca e loira e era assim que representava toda sua família.

Sua mãe freqüentava um Terreiro de Candomblé em Cosme de Farias, ela era Ekedy do orixá da mãe de santo da casa. Joanete freqüentou o mesmo local em sua infância, levada pela mãe, mas não gostava. Achava que era coisa de preto, que o barulho era muito grande, que as comidas eram gordurosas e que nada ali prestava. Por isso passava mal todas as vezes que a mãe insistia e a levava. Ficava enjoada e tonta, queria sair logo dali, sentia dor de cabeça e até sua perna cansava.

Quando ficou mocinha passou a freqüentar um Centro Espírita, para ela isto sim era religião, pois havia ensinamento, doutrina, livros, pessoas e mesas brancas e era esse o meio que ela queria estar. Quando ia fazer o cabelo no salão de sábado sempre trazia histórias do Centro, livros de poesia, charadas de almanaque, revistas de manequins com vestidos para serem copiados. Depois que seu cabelo era espichado ela colocava uma touca e um lenço, para conservar o espichamento por mais tempo.

Joanete era meio desbocada e falava muitos palavrões e ousadias, coisas que as outras mulheres gargalhavam e não acreditavam que uma professora diria. Ela cantava em voz alta canções que aprendeu no Centro, falava um português bem explicado e pronunciado como os brancos. Daquela forma de falar ela muitas vezes assustava as outras, pois parecia até outra língua pelas palavras que ela conhecia e quando alguém falava algo errado ela sempre corrigia.

Certa vez foi numa festa de Largo na companhia de uma amiga e lá conheceu um marinheiro bem afeiçoado (branco). O homem a cortejou e a levou pra dançar na barraca da Cabocla Jurema, lá eles namoraram, bebeu muito vinho de palma, dançou de rosto colado e comeu bolo de carimã, comprado nas mãos de uma criança do bairro. Joanete convidou o rapaz para ir ao Centro Espírita que ela freqüentava, o moço aceitou e no sábado seguinte lá mesmo eles se encontraram.

E quando a sessão começou um “Preto Véio” se apresentou no corpo do marinheiro que Joanete levou. Falou que queria charuto ou cigarro de fumo, que conhecia mulheres de todos os lugares do mundo, mas que se encantou com a “negona do cabelinho de fogo”. Ao ouvir aquilo Joanete se assustou e não aceitou que era dela que o “Preto Véio” falava, pois negona ela achava que não era e isso era um desagravo que ela não aceitava.

Saiu correndo do Centro se sentindo enganada, chorou muito frente ao espelho desesperada e cansada, viu que não era Branca de Neve, Cinderela, Gata Borralheira, nada.

Ela era só Joanete uma negona bonita, mas muito da mal educada.