sábado, 18 de junho de 2011

“O Caruru dos Ibêjis da Rua do Barro Vermelho”


Hoje ela estava preocupada, nervosa, entrava e saía da casa onde tinha ido espichar o cabelo sem conseguir esperar. Rosa ficou encabulada com um de seus filhos. O mais velho dos filhos adotados de Rosa, Raulino, era um jovem negro, alto e magro que tinha muitos amigos na mesma faixa de idade dele e todos gostavam de jogar bola num campinho próximo dali da invasão.

Fazia algumas semanas que carros estranhos estavam rondando o bairro, e a comunidade já tinha identificado que eram pessoas de fora dali, pelo comportamento deles dentro dos carros. Todos eram homens, eram dois carros e em cada um deles quatro homens, dois à frente e dois no fundo. Os homens do fundo ficavam com uma das mãos fora, na janela do carro. Eles percorriam as vielas da invasão e perguntavam nomes de ruas e endereços que as pessoas fingiam não conhecer.

Acontece que quando este tipo de situação aparecia a comunidade já sabia, por várias experiências anteriores, que estes eram matadores de criancinhas, geralmente policiais civis a mando do crime organizado, aliás, o crime só era organizado por conta da colaboração deles. Comportavam-se dessa forma quando uma gangue queria ocupar o território de outra. A gangue invasora pagava aos policiais para fazerem o trabalho de “limpeza” da área que ambicionavam ocupar e isso, inevitavelmente, representava a morte para muitos jovens que estivessem envolvidos, ou não, com atividades ilícitas.

Nesses momentos, as mães ficavam nervosas, sofriam de dores de cabeça intermináveis, falavam sozinhas, vestiam os seus vestidos pelo lado do avesso e deixavam seus cabelos por fazer. Andavam como loucas pelas ruas da comunidade, praguejando para o vento, com olhos arregalados pelas noites perdidas de sono, pareciam antever o inferno de Edir Macedo. Quando alguém as chamava não respondiam, choravam por qualquer coisa e mentiam diante de qualquer pergunta. Havia medo estampado no rosto das mães.

Nesses dias a unidade de saúde mais próxima da comunidade ficava superlotada de mulheres negras, mães de jovens meninos negros. Elas se queixavam de nervoso, de uma dor que andava pelo corpo todo, insônia, arrepios e zonzeira na cabeça. Elas sabiam os sintomas que deveriam referir para receberem dos profissionais de saúde medicamentos, que as deixassem entorpecidas e sonolentas. Nessas horas elas precisavam de tais remédios como quem precisa do alimento.

Houve um tempo que muitas mães negras desejaram que seus filhos estudassem no colégio militar, para quem sabe um dia, se tornar policiais militares, com fardas bem engomadas e botinas reluzentes. Desejavam vê-los entrando nas ruas do bairro com suas vestimentas de coronel, como Ogum, altivos e de cabeça erguida.

Agora, esse tempo ficou pra trás, pois ser policial se tornou algo vergonhoso e até humilhante. Para a comunidade estes representavam à injustiça, a crueldade, a perversão e um tipo de gente com quem não se podia mais contar ou mesmo se orgulhar de conhecer. Pois os policiais que chegavam ali eram extremamente mal educados, truculentos, e já chegavam quebrando tudo, invadindo as casas, de modo que deixavam os barracos pelo avesso. Não respeitavam as mulheres, os mais velhos nem as criancinhas. Por onde passavam deixavam um rastro de injustiça, impunidade e de sangue. Em determinadas épocas essa era a rotina daquela comunidade.

A rua em que Rosa morava tinha sido parte da maré e agora estava aterrada. Ela mesma gastou muito do seu pouco dinheiro em caminhões de entulho para aterrar aquela parte do mangue onde construiu seu barraco. Agora o lugar tinha se transformado em uma rua com nome de político conhecido, que os moradores nem sempre acertavam pronunciar, por isso todos continuavam a chamá-la de “Barro Vermelho”.

Na Rua do Barro Vermelho moravam apenas duas famílias de brancos, as demais eram todas famílias negras, boa parte delas chefiadas por mulheres negras, trabalhadoras domésticas. Os brancos tinham as melhores casas, eram os únicos dois sobrados rebocados. Na rua, as crianças brancas se misturavam às crianças negras em suas brincadeiras. Mas nas casas das crianças brancas, as mães proibiam a entrada das crianças negras, mesmo nos dias de festa.

Ás vezes as famílias brancas festejavam o aniversário de seus filhos e nós crianças negras apenas observávamos o movimento alterado da rua nesses dias, pois vinham outros brancos da cidade alta, da mesma família, alguns de carro, todos traziam presentes embrulhados em caixas com papéis coloridos, lindos!

Eles eram todos parecidos, com suas peles descoradas e seus cabelos ao vento. Eles nos olhavam, mas não nos viam, mesmo com nossas peles negras; eles não nos enxergavam, pois às vezes seus carros passavam pelas poças de lama e nos encharcavam de barro vermelho, se suas crianças acenavam para um de nós eles reclamavam e se um de nós se aproximasse deles, eles arregalavam os olhos como se fôssemos atacá-los e fugiam desesperados.

No dia seguinte, muitas crianças negras pegavam as caixas de presentes e seus papéis coloridos, do lixo das famílias brancas e transformávamos em brinquedos, com os quais todos brincavam. Em nossas brincadeiras geralmente imitávamos o comportamento observado no dia anterior dos brancos da cidade alta, alguns conseguiam imitações quase perfeitas e ríamos muito de tudo aquilo, sem saber o que representava.

Já as famílias negras festejavam de forma diferente, geralmente ofereciam caruru aos Ibêjis e quando as crianças sabiam, todas corriam pra casa mais cedo, para tomar banho, colocar bastante talco e sua melhor roupa. Nós sabíamos que caruru não se fazia sem crianças e logo a dona da casa chegava à porta procurando-nos, principalmente pelos meninos, pois sem eles não se começava a comer o caruru e não havia festa. Depois era a vez das meninas, que achavam aquilo uma injustiça, mas não reclamavam.

Vale lembrar aos desinformados que os Ibêjis são divindades da mitologia africana, sobreviventes à escravidão dos corpos, mas não das mentes e almas de homens e mulheres negros da diáspora. Os Ibêjis regem a alegria, a inocência, a ingenuidade da criança. Sua determinação é tomar conta do bebê até a adolescência, independente do orixá que a criança carregue.

Ele representa a criança que temos dentro de nós, as recordações da infância. Quando fechamos os olhos e lembramos de uma felicidade, de uma travessura estamos vivendo ou revivendo uma lenda dessa divindade. Pois, tudo aquilo de bom que nos aconteceu em nossa infância, foi regido, gerado e administrado por Ibêji. Porque, ele já viveu todas as felicidades e travessuras que todos nós, seres humanos, vivemos.

Naquela época os mais velhos nos avisavam para não comer em casa de estranhos, mas o cheiro do caruru de Ibêji era um chamado irresistível. A estratégia era chegar devagar, primeiro na porta da casa do desconhecido, depois ir entrando se arrastando pela parede da sala e ali ficar imóvel que nem lagartixa, até ser notada. Nesse momento meu coração batia mais rápido e em seguida vinha a pergunta fatídica “Já comeu menina?” ao que eu imediatamente e meio displicentemente respondia “Nããããããããão, eu não!”, logo vinha o prato quentinho cheiroso, delicioso, coisa de preto!

Não precisava nem fazer faculdade para compreender Segurança Alimentar naquela comunidade, era isso, todos de alguma forma ajudavam a alimentar os filhos uns dos outros (Ubuntu?).

Mas o filho mais velho de Rosa tinha apenas treze anos e saiu de casa aquela tarde, com seu amigo branco, para ir a um aniversário na casa do camarada e até àquela hora não havia retornado. Com o clima estranho que estava sentindo na comunidade, Rosa até teve calafrios e só pensava em dar uma dura nele e em castigá-lo quando voltasse, por tê-la feito ficar tão preocupada.

Anoiteceu e nada de Raulino, o marido de Rosa chegou do trabalho e nada do menino, o tempo passou e fiou muito tarde. Então Rosa saiu com seu cabelo sem fazer, sem lenço, com seu vestido pelo avesso e foi procurar seu filho perdido.

Ela foi à maré, pois muitos meninos se jogavam lá pra tomar banho e se afogavam por não saber nadar, mas Raulino não estava lá. Ela foi ao campinho onde as crianças jogavam bola e nada do garoto. Rosa foi à casa do menino branco que brincava com Raulino e o menino não sabia de nada, disse apenas que viu o amigo entrar no matagal para pegar folhas a pedido de um senhor da rua de cima e não mais voltou.

Ai foi que Rosa perdeu o juízo, deu pra chorar, gritar, correr e a pedir ajuda de outras mulheres da comunidade. Era seu menino, quase um rapaz, prestativo, educado, alegre e que sonhava em ser jogador de futebol, era ele, um jovem tão carinhoso que estava desaparecido. Rosa temia não ver mais o sorriso de Raulino, seus olhos vivos e sua pele tão quente que parecia estar sempre com febre.

Então, no momento de maior aflição de sua vida Rosa fez uma promessa aos Ibêjis, que se eles trouxessem seu menino de volta ela daria dali em diante, um caruru todos os anos, naquela mesma data até o dia em que Raulino se tornasse homem e fosse viver por sua própria conta.

Rosa estava com o coração apertado, pois tinha amor a todos os seus filhos adotados, se dedicava demais para criá-los de forma honrada, ficava muitas vezes sem comer para não faltar no prato de cada criança. Não era justo perder seu filho daquela forma. As outras mulheres também ficaram preocupadas, algumas já tinham filhos perdidos e podiam falar daquela experiência dolorosa. Todas passaram a ajudar Rosa na sua procura por Raulino.

Decidiram ir à casa do homem da rua de cima e procurar saber o que ele mandou Raulino fazer e onde estava o menino. Ao chegar a casa, uma mulher bem velha atendeu-as e disse que o homem não estava ele tinha ido a uma festa de Caboclo no Subúrbio Ferroviário.

Rosa ficou desorientada sem saber o que fazer quando avistaram dois meninos, vestidos com a mesma cor de roupa, que vieram correndo em sua direção e disseram que viram Raulino tocando numa festa de Caboclo. Os meninos se ofereceram para levar Rosa até o local, onde ela pôde ver com os próprios olhos, seu filho mais velho tocando os atabaques, enquanto os Caboclos dançavam no meio do barracão. Quando Rosa se virou e procurou os meninos pra agradecer, eles tinham desaparecido, mas do meio do salão um dos Caboclos se aproximou e lhe disse “Para o ano, o samba é na sua casa, pode deixar que eu levo os meninos”.

Por isso todo ano na Rua do Barro Vermelho tem samba de Caboclo, Caruru dos Ibêjis, e a casa de Rosa fica cheia de crianças do jeito que ela gosta!